Sem dúvida, a figura feminina mais instigante da literatura brasileira, Capitu fascina os leitores com o seu mistério. Mais de um século após a publicação de “Dom Casmurro”, a obra ainda é exaustivamente pesquisada, analisada e revisitada em torno dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” desta magnífica personagem machadiana.

          Muito dessa verborragia provém da eterna dúvida sobre uma suposta infidelidade de Capitu. Em primeiro lugar, a temática de Dom Casmurro gira em torno do ciúme, e não propriamente da traição, como tanto se apregoa. Em segundo lugar, o principal intuito deste texto é investigar as características deste perfil de mulher que traz por si só tamanha complexidade, que o fato de Bento Santiago ter sido traído ou não se transforma num mero detalhe.

          Astuta, inteligente, ousada e desenvolta, Capitu demonstra, na imagem de menina precoce, uma mulher à frente de seu tempo. Em contraponto, tímido, medroso, fraco e até medíocre, Bentinho se mostra muito aquém da heroína do romance. Sendo assim, era natural que ele se sentisse diminuído diante dela. Numa sagaz intertextualidade que rendeu à obra referida a alcunha de “Otelo brasileiro”, assim como o Mouro de Veneza matou Desdêmona asfixiando-a, Bento asfixiou Capitu com seu ciúme e insegurança.
          Em suas memórias, já velho, o Dr. Santiago usa suas habilidades de advogado ao transformar o leitor numa espécie de júri popular para a sua rancorosa acusação contra Capitu. É pelo relato dele, portanto, que ela é apresentada ao público. Ainda que sob a perspectiva de um narrador terrivelmente parcial e pouco confiável, nas entrelinhas, insinuam-se diversos pontos a analisar.
          Publicado no fim do século XIX, o romance retrata o declínio de uma elite cujo poder, crenças e valores estavam se desmoronando. A sociedade ditava os papeis que cada um deveria representar, cabendo à mulher uma condição submissa, passiva e conformista. A denúncia de José Dias simboliza um aviso sobre a ameaça a esse império no qual Dona Glória, mãe de Bentinho, representa as tradições aristocráticas. Capitu é uma ameaça porque ela não se intimida perante estes ditames e, determinada, não mede esforços para alcançar seus objetivos.
          É Capitu quem primeiro insinua o interesse amoroso, quem seduz, é também ela quem toma a iniciativa do primeiro beijo, propõe uma fuga e planeja uma forma de Bentinho se livrar da promessa de ser padre – atitudes que, naquele contexto, caberiam ao homem. Porém, nestes e outros lances arriscados, ela não demonstra o menor acanhamento, pois é senhora de si, apesar de pertencer à sociedade patriarcal de sua época; o que faz dela uma transgressora nata.
          Capitu é apelido de Capitolina, seu nome de batismo, derivado do termo “capitólio”, como se chamava a coluna de Roma onde se situava o templo de Júpiter. Figurativamente, significa “triunfo, glória, apogeu, elevação”. Do latim “capitolium”, provém da palavra “caput”, que significa “cabeça”. Dessa forma, verifica-se a intencionalidade por trás do nome da personagem.
          Ela exerce domínio sobre Bentinho e o conduz para que o casamento se concretize. É nesse ponto que o narrador a representa como uma jovem maquiavélica que, em cada atitude, arquiteta seu plano sem, no entanto, deixar transparecer, sabendo manejar muito bem a farsa das convenções sociais: “Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?”.
           Porém, a dissimulação de Capitu, que tanto depõe contra ela na narrativa, é apenas uma arma contra uma sociedade hipócrita que restringia as atitudes femininas. Impossibilitada de se mostrar abertamente, ela age com cuidado, evita o embate direto, contorna as situações. E assim, transforma José Dias, de inimigo em aliado, e, mais tarde, conquista Dona Glória, a fim de ser aceita pela futura sogra.
         Muito madura para a idade e muito avançada para sua época, Capitu também apresenta grande densidade psicológica, característica muito explorada nas personagens de Machado de Assis, precursor do Realismo no Brasil. Tanta audácia e vivacidade fazem com que Bentinho viva à sombra de Capitu. Tanto é que ele mesmo admite: “Capitu era mais mulher do que eu era homem” [...] “Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabeça.”
          O capítulo “As curiosidades de Capitu” é o que mais revela os traços de sua personalidade. Capitu deseja saber de tudo, aprender tudo, transcender os limites do que foi designado às mulheres, as quais eram criadas apenas para mães e donas de casa. Até latim quer aprender, quando o padre adverte que “não era língua de meninas” – é a voz do patriarcado tentando em vão detê-la.
          E ela poderia estar condenada à obscuridade de sua posição, não fosse a sua astúcia. A diferença de classe social entre Bentinho e Capitu, tão destacada pelo narrador, poderia ser mais um impedimento. Cônscia desses obstáculos, com maestria, ela derruba todos e consegue se casar com o amigo de infância.
Conforme Meyer (1986, p.222): “[...], se considerarmos com atenção esse xadrez psicológico, veremos que Bentinho é quando muito uma boa peça nas mãos de um bom jogador. Ora, Capitu é um ótimo jogador.”
          Apesar de Capitu ascender socialmente com o casamento, isso não significa que Bentinho tenha sido para ela apenas um “trampolim”. No entanto, é preciso reconhecer que este era o único meio de que uma mulher em suas condições dispunha para conquistar seu espaço numa sociedade na qual lhe era vetado outras formas de ascensão como uma carreira, por exemplo.
          Capitu amou de forma obstinada, mas não foi correspondida à altura por seu amado que, motivado pelas suas desconfianças, acabou por condená-la ao degredo na Suíça. Se as suspeitas são infundadas ou não, pouco importa.
          Aliás, reduzir Capitu ao episódio de uma suspeita de infidelidade conjugal é limitá-la. Nos dois extremos, inocentá-la não deixaria de ser uma castração moral que, ao “santificá-la”, colocando-a acima de qualquer suspeita, a afastaria das características ambíguas que fazem dela uma personagem tão fascinante. Por sua vez, acusá-la, seria decair num viés machista que condena o adultério feminino como crime hediondo, e faz vista grossa para os delitos masculinos. Sem contar que, o simples fato de julgá-la, transforma o leitor num joguete do narrador, dando crédito à sua acusação, num relato autoritário no qual Capitu não tem voz ativa.
          Haja vista que, na literatura, como na vida, só o adultério feminino ganha tal ênfase desmedida; só o erro da mulher causa escândalo. Basta observar o número de obras sobre o tema: “Madame Bovary, Ana Karenina, Luísa (de “O primo Basílio) entre outras. O próprio narrador de Dom Casmurro, ironicamente, relata sem grande alvoroço a infidelidade de seu amigo: “Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo.”
          Covardemente silenciada, Capitu só tem maior representatividade na literatura através de escritores que fizeram recriações literárias nas quais não Dom Casmurro, mas Capitu é o foco de obras como “Capitu”, de Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes; “Capitu – Memórias Póstumas”, de Domício Proença Filho (no qual Capitu é a narradora) e “Capitu sou eu”, de Dalton Trevisan, entre tantas outras releituras do clássico, também adaptado para o teatro, a televisão e o cinema. Por que, afinal, Capitu é a verdadeira protagonista de “Dom Casmurro”. Ela é a razão da obra, a “cereja do bolo”, o encanto da narrativa.
          Ao final do livro, o narrador diz friamente que Capitu está “morta e enterrada”, na Europa. Porém, nas palavras de Ezequiel, ela “morreu bonita” e, triunfante, continua viva através das memórias de Bento Santiago, um homem solitário que, em sua “casmurrice”, remói antigas mágoas, sem conseguir esquecê-la.
          De um romance que é fonte inesgotável de análise, pode-se afirmar que a personagem saiu das páginas dos livros e se materializou, ganhando vida. Sua força magnética, como define Luiz Tatit, é: “a ressaca dos mares, a sereia do sul, captando os olhares, nosso totem tabu, a mulher em milhares”. Capitu é isto e mais um pouco, infinita e plena no fascínio que exerce.

_____________________________________________
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, São Paulo: Escala Educacional, 2008.
Capitu - Música de Luiz Tatit. Disponível em: https: //www.letras.mus.br/luiz-tatit/163882/ Acesso 23 abr 2016
MEYER, Augusto. Capitu In: Textos Críticos. São Paulo: Perspectiva, 1986.