CANÇÃO AO COLONIZADO

Helio Rodrigues da Rocha

I

Irmãos, venham comigo e juntos cantemos

Um hino de libertação nacional!

Venham comigo pelas trilhas das florestas,

Das ilhas, das terras e de águas longínquas,

Das regiões outrora colônias de povos não libertos

Da ganância, da injustiça, da maldição,

Da desgraça e covardia a outros povos

Que, vistos como inferiores,

Sofreram tamanha agressão.

II

Nossas terras, lagos e rios ? plantações e nossas representações

Foram submetidas não apenas à escravidão

Daqueles que dali em diante, seriam os nossos "senhores",

Donos de nossos destinos - pior ainda postos à submissão -

Ao colonialismo, que desvaloriza o passado dessas vozes,

Empreendendo a desvalorização da história pré-colonização.

Contra esse convencimento do colonizado

É que precisamos lutar, responder, agir:

Livres da alienação - somente poderemos existir!

III

Irmão, não reproduzas o discurso

Daquele que se julga o "senhor"

Detentor de toda a verdade,

Representante de uma "raça superiora"

Que, pelo que nos conta a História,

Fora incapaz da sublimação.

Antes, rumou contra outros povos

E os submeteu - à força bruta ? à sua colonização,

Por isso, companheiros, busquemos nossa libertação!

IV

Libertemos-nos de certos chavões, mitos e paradigmas

Pelo colonialismo arquitetados.

Pois, somente assim seremos nós mesmos.

São sórdidos e denigrem nossa imagem.

Sejas esperto e não assumas essa política colonial

Se eu falo outra língua, por que tu não podes falar?

Possui-se essa ferramenta, como não a utilizar?

Vamos! Avante! Não és pior nem melhor que ninguém,

Mas és singular e representas a parte da massa refém.

V

Se caboclo és chamado

Não negais a procedência,

Seja você mesmo essa caboclice

Malandro, desconfiado e omisso,

Pra que ajudar o patrão? Tu te perguntas - inteligentemente.

Respondo-te com orgulho que tu és um representante

Da amargura e da ganância

Filho da noite e do dia porque trazes esperança

De uma Amazônia liberta, de um caboclo risonho

Feliz com suas gentes, seus costumes e bonança

Porque trazes no sangue a garra, a força, a esperteza e o sonho.

VI

Não te rebaixes, mas mistura-te a esses invasores

Escuta, escavaca, fuxica, repuxa,

Muna-se com as palavras daquele a quem serviste

Use-as, mais tarde, para rir-se, escarnecer, zombar,

Maldizer, esses parasitas.

Jamais nos admiremos dos modos desses covardes

Eles são tão somente diferentes,

Mas tão pouco atraentes,

Não achas que são alienantes?

VII

Venha, formemos um batalhão,

E rememos contra essa correnteza,

Afinal, que pororoca não conhecemos?

Que tempestade não enfrentamos?

Que trovoadas, raios, enchentes, banzeiros,

Varedas, varadouros, picadas e trilhas

Deixamos de experienciar?

Tantas chuvas, enxurradas, remansos,

Redemoinhos e inúmeros barrancos

Ultrapassamos, com respeito e ligeiro,

Pois, como sabes, somos febris e ao mesmo tempo mansos.

VIII

Rio Mari acima, às cachoeiras do Ituxi

Rumo às matas entrecortadas,

Pelas nuvens das chapadas

Pelos lugares encharcados, não andaste?

Então, filho da noite e do dia!

Por que choras tua sina?

Se arigó, és chamado,

Orgulha-te, és um grande lutador,

Pelas florestas úmidas amazônicas,

Não deixaste o teu suor e amor?

IX

Ah, sei, também deixaste ao pé da embaúba,

Teus presentes divinos enterrados,

Mas não és o único, camarada!

Sabes do Zé da Preta, do Tião, do Zebedeu?

E da Martinha e seu João, com seis filhos de uma vez

Enterrados nas barrancas, após horrendo naufrágio,

Nas cabeceiras do Punicici?

Ah, são tantos os meus irmãos,

Espalhados pelo Grande Vale!

Eu não saberia contar,

X

Porém, neste solo verdejante,

Nessas terras de matas exuberantes,

Dormem heróis pra dedel...

Dona Nina e seu Antonio,

Francisca Júlia e dona Izabel,

Dona Chiquinha e seu Raimundo,

Ah, o seu Claro e dona Custódia,

Tanta gente deu seu sangue

Para a Amazônia florescer

Por isso, venha comigo,

Eu te porei em altos planaltos,

E te farei reviver.

XI

Do rio Napo ao Amazonas

Do Purus ao Passiá,

Tocantins e o Negro

Não há nada com o que comparar

Nossas exuberantes paisagens

Gargantas, tocas e lagos,

Nossos lugares sagrados.

Mitos, lendas, relatos, histórias

Inigualáveis - não hás de duvidar.

XII

Se há esquadrinhamento das diversas Amazônias,

Como és sabedor,

Ora! Certamente já encontraste

Esses "exímios" medidores,

Coletores, usurpadores.

Não ouviste a história do roubo das sementes

Da árvore da fortuna?

Bom, se não sabes vou dizer-te.

No século 19, especificamente em 1876,

Um tal de Henry Wickham,

Um inglês muito safado,

Que por aqui perambulou

Roubou sementes de seringueiras

E nas colônias britânicas,

Especialmente na Malásia - jogou-as na terra.

E ainda foi condecorado cavaleiro (não seria ladrão?)

Pelo rei da Inglaterra.

XIII

Quantos outros saqueadores

Por esta região já passaram?

Alexandre Von Humboldt registrou

Como sendo de sua autoria

E não dos nativos,

A fórmula do curare,

Muito antes ainda, em 1865,

Outro roubo e a patente do quinino

Usado há séculos e  que a malária curava

Foi o inglês Charles Ledger

Quem contrabandeou o produto para Java.

XIV

E as nossas belas e barulhentas araras

Seqüestradas por Cristóvão Colombo?

Não foram elas presenteadas ao rei de Portugal?

Acorda! Mãos à obra!

Nossos filhos, netos, bisnetos e todos os que estão por vir;

Agradecem comigo a proteção do Paraíso.

Não foi assim que Colombo primeiramente o designou?

Todos os indivíduos vindouros

Sopram-me, sussurram em meus ouvidos:

"Dizei aos meus pais e avós que estamos na fila para descer.

A Terra nos aguarda e somente a partir dela,

Com ela,

Poderemos sobreviver".

XV

Se Wallace, Bates, Spix e Martius

Dwyer, Reiss, O'Connor, Revkin, Shoumatoff,

Wagley, Hill, Tomlinson, La Condamine, Neville e muitos outros

Pela Amazônia circularam

Não foi à toa, companheiro!

Estavam atrás de fama, riqueza e glória...

Todos loucos por essas coisas efêmeras.

Quase todos biopiratas...

Todos grandes e corajosos,

Não achas? Pois bem, ouça-me, então.

XVI

Todo o material coletado,

Manipulado e re-elaborado

Conforme seus interesses,

Devem servir-nos de objetos

De análise, reescrita e reconstrução...

De certos paradigmas e mitos,

Ditos, parlendas e ditados,

Chavões, jargões e insultos...

Oh, mundo das Amazonas

Guerreiro desde o nascimento

Que passas em tuas entranhas?

Construístes grandes maravilhas

Tecuís em todos os lugares.

XVII

É assim que os indígenas referem-se às montanhas.

Espalhadas por entre grandes vales de verdes imensidões...

Lua! Iluminai as noites escuras!

Tira da penumbra meus irmãos!

Noite! Noite chuvosa e trovejante

Arrebenta as correntes

Quebra, destroça todos os desesperos;

Desce ao fundo das almas

Livrai-as de pequenos pensamentos.

Insulte-as para que ultrapassem o despenhadeiro...

XVIII

Curupira, Mãe da mata, Caipora,

Caboclinho, Boto,

Cobra Grande, Yara - a mãe d' água,

Mapinguari e Matinta Pereira

Venham auxiliar-nos,

Fecha estrada, fazei-os andar em círculos,

Venham todos os personagens e assombrações,

Gritos, esguichos, roncos e alardes

Assombrai esses vultos passados

Nossa mente, pensamento e corpo

Sejam todos revigorados.

Escreve, irmão, toma nota...

Não há passado nem presente,

tampouco há o futuro

Nossa mente, livre de toda desgraça do passado

Refeita e brilhantemente funcionando

Este é o aviso a todas as gentes...

Porto Velho/RO, dezembro de 2008.