Canção ao Colonizado
Publicado em 09 de dezembro de 2008 por Helio Rocha
CANÇÃO AO COLONIZADO
Helio Rodrigues da Rocha
I
Irmãos, venham comigo e juntos cantemos
Um hino de libertação nacional!
Venham comigo pelas trilhas das florestas,
Das ilhas, das terras e de águas longínquas,
Das regiões outrora colônias de povos não libertos
Da ganância, da injustiça, da maldição,
Da desgraça e covardia a outros povos
Que, vistos como inferiores,
Sofreram tamanha agressão.
II
Nossas terras, lagos e rios ? plantações e nossas representações
Foram submetidas não apenas à escravidão
Daqueles que dali em diante, seriam os nossos "senhores",
Donos de nossos destinos - pior ainda postos à submissão -
Ao colonialismo, que desvaloriza o passado dessas vozes,
Empreendendo a desvalorização da história pré-colonização.
Contra esse convencimento do colonizado
É que precisamos lutar, responder, agir:
Livres da alienação - somente poderemos existir!
III
Irmão, não reproduzas o discurso
Daquele que se julga o "senhor"
Detentor de toda a verdade,
Representante de uma "raça superiora"
Que, pelo que nos conta a História,
Fora incapaz da sublimação.
Antes, rumou contra outros povos
E os submeteu - à força bruta ? à sua colonização,
Por isso, companheiros, busquemos nossa libertação!
IV
Libertemos-nos de certos chavões, mitos e paradigmas
Pelo colonialismo arquitetados.
Pois, somente assim seremos nós mesmos.
São sórdidos e denigrem nossa imagem.
Sejas esperto e não assumas essa política colonial
Se eu falo outra língua, por que tu não podes falar?
Possui-se essa ferramenta, como não a utilizar?
Vamos! Avante! Não és pior nem melhor que ninguém,
Mas és singular e representas a parte da massa refém.
V
Se caboclo és chamado
Não negais a procedência,
Seja você mesmo essa caboclice
Malandro, desconfiado e omisso,
Pra que ajudar o patrão? Tu te perguntas - inteligentemente.
Respondo-te com orgulho que tu és um representante
Da amargura e da ganância
Filho da noite e do dia porque trazes esperança
De uma Amazônia liberta, de um caboclo risonho
Feliz com suas gentes, seus costumes e bonança
Porque trazes no sangue a garra, a força, a esperteza e o sonho.
VI
Não te rebaixes, mas mistura-te a esses invasores
Escuta, escavaca, fuxica, repuxa,
Muna-se com as palavras daquele a quem serviste
Use-as, mais tarde, para rir-se, escarnecer, zombar,
Maldizer, esses parasitas.
Jamais nos admiremos dos modos desses covardes
Eles são tão somente diferentes,
Mas tão pouco atraentes,
Não achas que são alienantes?
VII
Venha, formemos um batalhão,
E rememos contra essa correnteza,
Afinal, que pororoca não conhecemos?
Que tempestade não enfrentamos?
Que trovoadas, raios, enchentes, banzeiros,
Varedas, varadouros, picadas e trilhas
Deixamos de experienciar?
Tantas chuvas, enxurradas, remansos,
Redemoinhos e inúmeros barrancos
Ultrapassamos, com respeito e ligeiro,
Pois, como sabes, somos febris e ao mesmo tempo mansos.
VIII
Rio Mari acima, às cachoeiras do Ituxi
Rumo às matas entrecortadas,
Pelas nuvens das chapadas
Pelos lugares encharcados, não andaste?
Então, filho da noite e do dia!
Por que choras tua sina?
Se arigó, és chamado,
Orgulha-te, és um grande lutador,
Pelas florestas úmidas amazônicas,
Não deixaste o teu suor e amor?
IX
Ah, sei, também deixaste ao pé da embaúba,
Teus presentes divinos enterrados,
Mas não és o único, camarada!
Sabes do Zé da Preta, do Tião, do Zebedeu?
E da Martinha e seu João, com seis filhos de uma vez
Enterrados nas barrancas, após horrendo naufrágio,
Nas cabeceiras do Punicici?
Ah, são tantos os meus irmãos,
Espalhados pelo Grande Vale!
Eu não saberia contar,
X
Porém, neste solo verdejante,
Nessas terras de matas exuberantes,
Dormem heróis pra dedel...
Dona Nina e seu Antonio,
Francisca Júlia e dona Izabel,
Dona Chiquinha e seu Raimundo,
Ah, o seu Claro e dona Custódia,
Tanta gente deu seu sangue
Para a Amazônia florescer
Por isso, venha comigo,
Eu te porei em altos planaltos,
E te farei reviver.
XI
Do rio Napo ao Amazonas
Do Purus ao Passiá,
Tocantins e o Negro
Não há nada com o que comparar
Nossas exuberantes paisagens
Gargantas, tocas e lagos,
Nossos lugares sagrados.
Mitos, lendas, relatos, histórias
Inigualáveis - não hás de duvidar.
XII
Se há esquadrinhamento das diversas Amazônias,
Como és sabedor,
Ora! Certamente já encontraste
Esses "exímios" medidores,
Coletores, usurpadores.
Não ouviste a história do roubo das sementes
Da árvore da fortuna?
Bom, se não sabes vou dizer-te.
No século 19, especificamente em 1876,
Um tal de Henry Wickham,
Um inglês muito safado,
Que por aqui perambulou
Roubou sementes de seringueiras
E nas colônias britânicas,
Especialmente na Malásia - jogou-as na terra.
E ainda foi condecorado cavaleiro (não seria ladrão?)
Pelo rei da Inglaterra.
XIII
Quantos outros saqueadores
Por esta região já passaram?
Alexandre Von Humboldt registrou
Como sendo de sua autoria
E não dos nativos,
A fórmula do curare,
Muito antes ainda, em 1865,
Outro roubo e a patente do quinino
Usado há séculos e que a malária curava
Foi o inglês Charles Ledger
Quem contrabandeou o produto para Java.
XIV
E as nossas belas e barulhentas araras
Seqüestradas por Cristóvão Colombo?
Não foram elas presenteadas ao rei de Portugal?
Acorda! Mãos à obra!
Nossos filhos, netos, bisnetos e todos os que estão por vir;
Agradecem comigo a proteção do Paraíso.
Não foi assim que Colombo primeiramente o designou?
Todos os indivíduos vindouros
Sopram-me, sussurram em meus ouvidos:
"Dizei aos meus pais e avós que estamos na fila para descer.
A Terra nos aguarda e somente a partir dela,
Com ela,
Poderemos sobreviver".
XV
Se Wallace, Bates, Spix e Martius
Dwyer, Reiss, O'Connor, Revkin, Shoumatoff,
Wagley, Hill, Tomlinson, La Condamine, Neville e muitos outros
Pela Amazônia circularam
Não foi à toa, companheiro!
Estavam atrás de fama, riqueza e glória...
Todos loucos por essas coisas efêmeras.
Quase todos biopiratas...
Todos grandes e corajosos,
Não achas? Pois bem, ouça-me, então.
XVI
Todo o material coletado,
Manipulado e re-elaborado
Conforme seus interesses,
Devem servir-nos de objetos
De análise, reescrita e reconstrução...
De certos paradigmas e mitos,
Ditos, parlendas e ditados,
Chavões, jargões e insultos...
Oh, mundo das Amazonas
Guerreiro desde o nascimento
Que passas em tuas entranhas?
Construístes grandes maravilhas
Tecuís em todos os lugares.
XVII
É assim que os indígenas referem-se às montanhas.
Espalhadas por entre grandes vales de verdes imensidões...
Lua! Iluminai as noites escuras!
Tira da penumbra meus irmãos!
Noite! Noite chuvosa e trovejante
Arrebenta as correntes
Quebra, destroça todos os desesperos;
Desce ao fundo das almas
Livrai-as de pequenos pensamentos.
Insulte-as para que ultrapassem o despenhadeiro...
XVIII
Curupira, Mãe da mata, Caipora,
Caboclinho, Boto,
Cobra Grande, Yara - a mãe d' água,
Mapinguari e Matinta Pereira
Venham auxiliar-nos,
Fecha estrada, fazei-os andar em círculos,
Venham todos os personagens e assombrações,
Gritos, esguichos, roncos e alardes
Assombrai esses vultos passados
Nossa mente, pensamento e corpo
Sejam todos revigorados.
Escreve, irmão, toma nota...
Não há passado nem presente,
tampouco há o futuro
Nossa mente, livre de toda desgraça do passado
Refeita e brilhantemente funcionando
Este é o aviso a todas as gentes...
Porto Velho/RO, dezembro de 2008.