Burro Anônimo

(Inspirado no título "É duro manter-se burro", de um  dos textos do escritor Hugo Moura Leal.)

De fato é mesmo. E não sei se tal estado mental é privilégio do solo pátrio ou é carma inerente ao globo. A propósito, manter-se burro significa continuar a agir como burro? (Me parece lógico...) Porque já me disseram que ninguém ganha na loteria, que é tudo uma mamata, mas a cada bimestre eu gasto exatos R$2,00, no mesmo jogo, já há uns 5 anos...Caramba, dava pra ter dado entrado num apê do CDHU. Deixa de ser lenda, então, a obstinação dos muares. Nos anais da ciência ocidental conta-se que Newton colocou uma mula entre duas pilhas de feno, e que a mesma morreu de fome. Não sabia a qual pilha recorrer e já vou achando que "morreu de indecisão" seria o termo mais acurado mas o caso é que, no final das contas, morreu de burrice mesmo.

Bom, temos em mãos um assunto verdadeiramente fascinante, e o desgoverno das células cranianas, assim num relance, aponta cases territoriais e de além-mar. Exemplos: o velho e bom Mao, em meio a uma das suas intermináveis reformas, propôs em cadeia nacional, num tom doce, melódico, condescendente e amoroso, que todo aquele ou aquela chinesa  que discordasse das diretrizes do partido levantam-se a mãos, para que uma argumentação, no melhor sentido do termo, ocorresse entre as partes. E os burros que levantaram as mãos foram sumariamente executados.

Já aqui na terrinha, pouco antes de março de 1964,  a Marcha Pela Família e Tradição, organizada e executada pelas donas de casa, profissionais liberais, intelectuais, professores e crentes de toda sorte e de todos os credos queriam ordem na casa contra Jango e suas idéias demoníacas. E aplaudiram de pé quando o uniforme verde oliva tomou o galinheiro, mal sabendo que boa parte de seus pares  iria exibir seus dotes torturando e matando muito agregado daquela passeata. E assim a corrente fica clara: Jango, burro, em agir como um estadista para um país que queria um delegado de costumes, vide Jânio, classe média burra, porque entendeu tudo errado e apoiou a Força, que sem amor e sem sabedoria é burra e deglutiu intelectuais, igualmente burros, por acreditarem que, contra suas palavras, usariam verbo e não, chacina. Quando o político Rubens Paiva fez um discurso no Palácio 9 de Julho, não estava claro para ele que saindo dali havia uma Veraneio à sua espera e que o revide não seria gramatical. Testemunhas afirmam que ele chegou praticamente morto no Dops, tamanha foi a surra.

"Mas se a praça não é nossa, a farsa ninguém nos tira, nem a picardia dos palhaços a quem demos cria..." diz o autor.

Bom, mais ou menos em torno dos meus 18 anos fui no TUCA assistir Ivan Lins, que eu achava um saco e hoje tiro o chapéu, no show Picadeiro. Lá pelas tantas, todo mundo de pé cantando o refrão "vamos dançar mais uma vez o dobrado...", e o Ivan atrás do teclado, puxando o coro e fazendo com as mãos o gesto "Nos ferramos de novo". Naquela noite no Tuca, o grande mestre era o Ivan, que acenava para nós, palhaços medíocres, tão autores quanto ele dessa farsa, embora sem consciência de ambas. E cá entre nós, o sujeito precisava ser macho pra fazer um show daquele naipe, naquela época. Ou burro. Resta a legítima equação: a arte é a consciência da sociedade.

Tenho uma amiga cuja bisavó polonesa, viva,  ostenta a seguinte versão: nossos pais não queriam ir embora, diz velha com sotaque carregado, não avaliaram a insanidade dos nazistas... Ela era criança, Varsóvia um jardim, e seu extermínio já estava no script, não fosse uma tia, menos burra, (burrice tem a ver com graduação), que salvou-lhe a vida puxando a espada e bradando:fomos! E foram mesmo, em cima da hora.
Ficaram os pais e os tios. Parece que os primeiros, e não é lenda, saudaram os BB da suástica e tombaram na porta de casa. Os tios, um músico e outro historiador,  desfrutaram do Gueto. Nessa toada histórica não documentada, quando começaram as filas para recrutamento de trabalho escravo, os nazistas perguntavam a profissão do gajo – se ele tinha amigos, eles o aconselhavam: olha, diz que vc é torneiro mecânico, fresador, etc, que nem o filme do Spielberg (e dizem que o Spielberg dourou a pilula). Bom, os tios, "não sei se por orgulho ou se por amor", não viveram para contar a história.

Será que existe um momento em que todos os burros, seguem, como os elefantes, para o local do descanso eterno? Ou ao menos para uma reflexão? "Onde foi que eu errei" será que tem vez no manual do burro?

Irresistível citação momentânea: "E ontem, sonhando comigo mandou eu jogar, no burro, acertou na cabeça centena e milhar. Ai, quero me separar". (João Bosco e Aldir Blanc).

Na verdade, o autor Hugo Leal, no seu texto, vê a alternativas para esse transe do qual parece não há sobreviventes. Já a presente divagação pretende mesmo é divagar. Assim, e como disseram os nativos para a nossa Força Expedicionária – "andiamo".

Me lembro de uma aula de música com um erudito, onde, grosso modo,  ele me falava da aplicação do arpejo na harmonia jazzística. Tempos depois encontrei com ele, justamente para mostrar como havia digerido seus ensinamentos. Ele me encarou com ar desconcertado, e no seu semblante não havia crítica de espécie alguma, só a constatação de que ele havia me indagado as horas e respondi com a temperatura.
Ou seja, burros interpretam.

O filósofo Demasi acertou em cheio quando, em 95, afirmou que todo aquele livre da esfera da pobreza ia se transformando numa ilha. Bastava o sujeito chegar em casa (pq naquela época as pessoas tinham emprego), ligar o Pc ou Mac, a superTv, o VCR e o CD player, (artigos de 95), e plasmava-se então uma ilha, que se conectava com outras infinitas ilhas, e na medida que o arquipélago cresce, mais se afirma a profecia de Marcuse: a sociedade não terá mais um ídolo global, como Lennon, por exemplo. Porque quem, em nome de Deus, poderia ser cultuado por essa turba descomunal interconectada, da Micronésia à Juazeiro?

Também em 95, Gilberto Dimenstein, jornalista com "J" maiúsculo proferiu, não com as palavras a seguir, que o ensino no Brasil estava formando médicos, engenheiros, advogados, etc..., de oitava categoria e que seriam estes um retrato 3x4 do futuro, (taí...), a nos servir com sua imperícia. E surge então o fantástico universo dos burros doutores. Sem falar do quase neologismo dos tempos modernos – Imperícia Adquirida!

Hoje, um grande amigo coordenador do curso Tecnologia da Comunicação em faculdade cujo nome o "com" senso me diz para calar, conta que o nível de desistência é de 50%. E o motivo que percentualmente prevalece nesse espectro traduz-se por "AD". Para ótimo entendedor essa sigla fala por si. Basta, pois, apertar o botão da registradora e ver o extrato: pais burros pagam, muitas vezes com sacrifício,  um ensino burro para adolescentes cuja freqüência no boteco das cercanias é 10 x superior ao da sala de aula, sendo que encher a cara, ali, é o menor dos, em aspas, prazeres.

Os burros, pois, se multiplicam. E à medida que se multiplicam o número de suas ações progridem e o resultado das mesmas ultrapassa quaisquer dimensões. Sobretudo o da compreensão. Qualquer compreensão.

Você sabia que, só para decorar essa estória que principia num sorriso de cinismo mas já não tem como fugir ao tétrico, lançaram mais uma novidade(!?) – a indústria da Carteira de Habilitação Legítima sem teste de aptidão, a preços inferiores ao da carteira legitima com auto-escola. E=mc2 foi concebido no Detran? Então, no resumo dessa opereta sem fim temos mais um incauto, necessariamente não imberbe, feliz da vida e de cara cheia depois da faculdade que ele cabulou, ao volante do seu popular 0km ostentando entre as orelhas o subtítulo "Máquina Mortífera".

Ora, se de um lado da linha os cascos trotam por um canudo, do outro, engedra-se mil requintes para minar-lhe o que tens de maior.
Os  adeptos do crime organizado mexem incessantemente com a sua boa vontade, sua capacidade de manifestar a centelha de amor divino e portanto incondicional, ao próximo. Que está ali, caído no chão, ao lado de uma caixa de engraxate, dizendo estar passando muito mal, que o médico do PS lhe deu um papel onde estão descritos seus males, que ele mal compreende, coitado, não teve instrução, ah, a palavra é hipoglicemia murmura ele, você mal entende, vc adivinha nas entrelinhas da palavra mal pronunciada, e daí você ouve fome, e naquela fração que a compaixão toma as rédeas e seus olhos se fixam na bula do Posto de Saúde, o caído já se recompôs, sacou uma 45 e um celu da pretensa caixa de engraxate e em 2 segundos seus amigos estão ali, com outras 45 e as piores intenções. De Acordo com a Policia Militar esse golpe bateu recorde na grande SP em jan/fev deste ano, apesar de um controverso número de vítimas fatais.

Burros os que arquitetam esse gênero de malefício, porque espalham um veneno que muitas vezes se volta contra os seus. Burros os crédulos, também contaminados, onde se voltam ainda mais para suas gaiolas cujas cores são  o medo e a revolta. Sentimentos asninos, é o que se colhe.

Mas então não sobra nada? Sobra. Sobra o Hugo, que ao acaso transforma um semi-desocupado como eu num viajante de plantão, concluindo ser nada difícil manter-se burro, até mesmo pelo contrario, achando mesmo que burro é legal, tão legal que deveriam criar um B.A. Burro Anônimo.

Primeiro passo: Sou impotente perante a minha burrice.
Segundo passo: entrego o resto do meu bom senso para o INSS e o pasto para o PCC.
Terceiro passo: peço a ambos que cuidem de mim, ou que dêem cabo de mim. Conforme eles conceberem
Quarto passo: faço um inventário das minhas burrices com a ajuda de um estenógrafo, um calígrafo e um vidente.
Quinto passo: Confesso a um igual minhas faltas, mas de olhos fechados e de cara para a parede.

Pronto. Mais do que isso, no que tange à assimilação, seria Utopia. E daí reuniões assiduamente.

"Boa noite, meu nome é tal, Burro em Recuperação, e hoje eu não pensei."
E todos na sala sorririam discretamente, trocariam entre si olhares, uns encolheriam os ombros, lá no fundo, entre cochichos, seria possível ouvir: coitado, não existe recuperação para burro.

Bernard Gontier