Daniel Medeiros*

Em um cenário no qual até as mais altas autoridades institucionais do país estimulam, com discursos de ódio, ações preconceituosas e violentas contra negros, homossexuais e mulheres, é preciso observar, por outro lado, a surpreendente capacidade que tantas pessoas têm de serem influenciadas por esses discursos tão mal formulados, sem amparo nos fatos e sem consistência argumentativa. Embora essa rapidez em aceitar tantas estultices - e reproduzi-las como se fossem o estado da arte da excelência do pensamento - possa chocar aos mais sensíveis, a  razão para isso é simples: assim como há um machismo naturalizado por séculos de estrutura social patriarcal e um racismo entranhado nos corações e mentes de milhões de brasileiros incapazes de refletir sobre suas ações discriminatórias, há também uma espécie de burrice estrutural, fruto de uma escolarização que, até aqui, não tem sido capaz de reverter a força histórica e cultural desses preconceitos perversos.

A  responsabilidade por esse estado de destruição cognitiva, que vem de  tão longe quanto os demais preconceitos enraizados, é dos adultos que se recusam a exercer o papel de responsáveis pelo aprendizado de um dos pontos fundamentais da educação para todas as crianças: a construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária, sem preconceito de qualquer natureza. O aprendizado desse conjunto de ideias não é uma tarefa fácil, convenhamos. E a primeira barreira para um ensino para a cidadania democrática é, em boa parte, as próprias famílias, carregadas que são da linguagem e da prática racista e patriarcal, por vezes sem sequer perceberem, como os peixes não percebem a água. As crianças aprendem no seu cotidiano como enxergar e se comportar no mundo. Assim, o pai que grita com a mãe, a mãe que xinga o negro, a piada sexista contada na mesa, o tratamento desigual de irmão e irmã, o horror manifesto à hipótese do filho gay, têm uma força pedagógica intensa.

E então, a criança vai para a escola e lá, na absoluta maioria dos casos, os professores, gestores e funcionários agem como iguais aos seus pais e não como adultos responsáveis por apresentar o mundo e explicar como esse mundo poderia funcionar melhor. Quando muito, consegue-se uma suspensão provisória do exercício da discriminação durante o período da aula. Pátios, cantinas, banheiros e portões de saída são terrenos minados, áreas de tiro e de caça a negros, gays, meninas, gordos, e o que mais estiver na mira da prática desse treinamento de cidadania às avessas.

A divisão disciplinar das aulas, com muito pouca interdisciplinaridade, faz com que os temas da cidadania e da democracia circunscrevam-se - quando isso se dá -  às Humanas, como se os preconceitos não atingissem matemáticos, biólogos, físicos. E mesmo quando há alguma orientação, ela é revestida de um caráter deontológico, moralista, como uma lista de certo e errado. Esquece-se que os fundamentos básicos da democracia são dois: isonomia e isegoria. O direito de ser igual, mesmo sendo diferente; o direito de ter voz e ser escutado.

Essa experiência de ouvir os alunos e alunas, suspendendo a hierarquia, permitindo que a visão de mundo deles circule e seja acompanhada por todos os atores da escola e depois sirva de reflexão para reorganizar as práticas escolares, é um exercício que pode ser reivindicado por muitas poucas instituições de ensino. Quando há, é em caráter excepcional. Quase nunca como prática cotidiana. Essa é a fonte suprema da burrice estrutural. Sem um referencial de vida democrática, as crianças tornam-se burras para essa realidade possível. O “burro" aqui não traz nenhuma carga pejorativa, mas trágica. Trágica porque é uma escolha da qual as crianças não são capazes de perceber que podiam participar de uma construção de realidade diferente, com menos ódio e com menos medo.

Hannah Arendt, no texto de 1957, "A crise na Educação", atrela a educação a um exercício de autoridade e de respeito à tradição. E a crise exatamente a essa quebra de autoridade e esquecimento da tradição. A autoridade é a do professor que mostra para as crianças como o mundo é. Daí deriva a sua responsabilidade, ou seja, o seu dever de responder por essa tarefa. A tradição é a da existência de um mundo comum, compartilhável, que precisa ser mantido, embora, ao mesmo tempo, precise das novas gerações para ser modernizado.

Adultos responsáveis, crianças educadas para manter e melhorar um mundo comum tem sido o projeto de civilização que os gregos esboçaram há tantos séculos e que vem sendo esquecido - ou pior -, criminosamente dilapidado. Mas há saída. Como ensina a filósofa alemã: "uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão”. E ela alerta: "qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-las de tomar parte em sua educação”.

Assim como o machismo estrutural e o racismo estrutural, a burrice estrutural pode ser revertida, mesmo que saibamos que isso vá exigir um grande esforço de todos os que vêem a eminência do desastre. Essa tarefa é para agora.

 

* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.