Breve história da Educação Física: da atividade física à prática hegemônica esportiva

Giancarlo Roger Hilário

 

O ser humano sempre fez atividade física. É através do corpo em movimento que nos relacionamos com o mundo à nossa volta e nos fazemos presentes. O corpo é a nossa forma de existir, de estar no mundo, de nos fazermos presentes. É também o conteúdo de que trata a Educação Física (EF). Mas, diferente da atividade física, a E F é relativamente nova. Surgiu no século XIX. Antes disso quase todas as pessoas moravam no campo. E faziam bastante atividade física. Com a Revolução Industrial, o surgimento de uma grande quantia de indústrias exigiu que muitas pessoas mudassem do campo para as cidades, indo trabalhar como operários de máquinas. Pessoas que estavam acostumadas ao trabalho do campo (de colher, arar, caçar, pescar, plantar) tiveram de ser qualificadas para os novos trabalhos. Os sistemas públicos de ensino (escolas públicas) foram inventados para executar essa tarefa. 

Neste período, o crescimento muito rápido e desordenado das cidades originou doenças causadas pela falta de higiene e saneamento urbano. Além disso, o antigo camponês tornou-se sedentário em sua nova vida urbana. Ao lado das doenças causadas pela pouca higiene e saneamento das cidades, surgiram doenças hipocinéticas (causadas pela pouca movimentação). Essas doenças retiravam os operários de seus trabalhos nas indústrias, dando prejuízo aos patrões. Preocupados, os governos dos países solicitaram aos médicos da época uma forma para prevenir essas doenças. E então foi inventada, na Europa do final do século XIX, a disciplina da Ginástica no interior da escola, que depois veio a ser chamada Educação Física.    

Quando surgiu, a E F tinha a função de disciplinar os alunos e ensinar a necessidade da atividade física em suas vidas para a promoção e manutenção da saúde como forma de prevenção de doenças. A sociedade atual transformou a E F em uma prática hegemônica do esporte (só esporte). A ginástica, a dança, a luta e o jogo não competitivo, que o ser humano sempre praticou, perderam seu lugar na escola. A prática só do esporte (xadrez, vôlei, basquete, futsal e handebol) nas aulas de E F escolar ensina ao aluno a encarar a sociedade capitalista, de vencidos desprezados (pobres) e vencedores cultuados (ricos), como justa, natural e aceitável. Alunos que aprendem na quadra que vence no jogo o mais esforçado entenderão que vence na vida também o mais esforçado, o mais hábil e qualificado. Mas na competição social, as oportunidades não são iguais. O filho do rico sai na frente. Não tem que trabalhar de dia e estudar à noite. Faz cursos caros que aumentam sua condição social, intelectual e cultural; estuda em colégios caros e se prepara em cursos pré-vestibulares para ocupar, salvo raras exceções, as profissões mais rentáveis.

Além disso, uma boa parte das pessoas que freqüentaram a escola se lembram das aulas de E F como uma experiência prazerosa, de sucesso e habilidade, de muitas vitórias no esporte. Mas para uma outra parte bastante grande a memória é amarga, de sensação de incompetência, de falta de jeito, de medo de errar. Trabalhar não só com o esporte, mas também com a dança, a luta, a ginástica e o jogo cooperativo nas aulas de EF possibilita a todos os alunos desenvolver suas habilidades corporais, vivenciar sua corporalidade e conhecer atividades culturais de sua gente, de sua história, expressando, de forma consciente, seus afetos, medos e desejos.

Em detrimento da dança, do jogo, da ginástica e da luta, na grande maioria das vezes, nas aulas de EF os professores trabalham somente com esportes. Entender como se deu a construção desta situação pode balizar os rumos para a sua desconstrução. E para entendermos a EF tal como ela se encontra hoje é preciso olha-la com os olhos da historia, ou seja, precisamos buscar nos cantos muitas vezes esquecidos das páginas da história os elementos que a construíram.

Cada sociedade, em momentos históricos determinados, produz suas próprias necessidades e junto delas os meios que irão satisfazê-las. Assim, temos, historicamente, diferentes sociedades produzindo diferentes formas do movimento corporal, isto é, daquilo que Bracht (1999)1 chamou “cultura corporal de movimento”.

No período Pré-civilizatório2 os movimentos eram feitos naturalmente3 com o objetivo de garantir a sobrevivência. Na Antiguidade, a atividade física esteve atrelada, principalmente, ao preparo do soldado para a guerra. A dança, o esporte, o jogo e a ginástica eram somente para os homens livres (cerca de 5% da população) e ricos. Na Idade Média4, praticamente toda a atividade física foi proibida como um grave pecado do corpo contra a alma. Somente eram permitidas aquelas atividades que preparassem o corpo do soldado para as chamadas “guerras santas”, feitas pelos povos católicos contra os povos muçulmanos, para ensinar ao servo o labor do campo ou que tivessem uma intenção católica qualquer. Os ideais clássicos (da Antiguidade Grega) de valorização do ser humano e de seus dons artísticos, científicos e lúdicos ressurgem na Idade Moderna5 satisfazendo as necessidades da classe burguesa - em ascensão - de uma lógica contrária aos dogmas medievais e que fosse capaz de balizar o crescimento da produção e dos lucros.

Com o colapso do mundo feudal e a consolidação da sociedade capitalista, o ideal de vida tornou-se, cada vez mais, a competição. As atividades físicas incorporam aos poucos os valores de uma sociedade de vencidos desprezados (pobres) e vencedores cultuados (ricos). Surge o esporte moderno em substituição ao jogo lúdico e cooperativo do período revolucionário da Renascença. A cultura corporal de movimento é sufocada por uma prática hegemônica do esporte (só esporte) e por um processo gradativo de esportivização das demais atividades físicas. As atividades pertencentes à cultura corporal de movimento ficam esquecidas caso não incorporem a competitividade dos esportes, funcionando, em última análise, como uma espécie de caixa de ressonância da sociedade capitalista.

Na Idade Média os estabelecimentos de ensino eram raros e o ensino era religioso e pago. Neles os meninos nobres ou ricos aprendiam rudimentos de aritmética e leitura de textos bíblicos em latim, enquanto as meninas ficavam em casa para o aprendizado das prendas do lar, à espera de um marido. A maioria absoluta da população continuava analfabeta.

Os sistemas públicos de ensino somente se consolidaram a partir da Revolução Industrial6 para atender a necessidade de escolarizar a população, pois a complexidade do trabalho necessitava de uma mão de obra mais qualificada. A escola tornou-se pública, gratuita e leiga, ou seja, não religiosa. Sua estrutura se dividiu em três níveis: o elementar: onde se aprendia a ler, escrever e contar; o secundário: no qual outras disciplinas eram estudadas; e o universitário ou superior.

Com a Revolução Industrial estabeleceu-se uma urbanização que empurrou os pobres para cinturões de miséria onde se proliferam epidemias de cólera e tifo, que só preocuparam as classes média e alta quando contagiaram seus filhos. Além disso, o trabalhador especialista, treinado, ao ficar doente ausentava-se do serviço dando prejuízo ao patrão. Houve, em meados de 1800, uma grande mobilização médico-sanitarista-higienista na Europa que culminou com a criação de diferentes sistemas e métodos de ginástica nos países mais desenvolvidos. Esses métodos depois se espalharam pelo resto do mundo, inclusive pelo Brasil, servindo de base ao surgimento da Educação Física (EF) como disciplina escolar voltada à educação preventiva de doenças para os filhos da população trabalhadora.

Para a classe dominante do final do séc. XIX, os burgueses, os exercícios físicos deveriam fazer parte da educação escolar, que passa a ser considerada instrumento de ascensão social capaz de proporcionar igualdade de oportunidades. Johan Basedow foi um pedagogo alemão que criou a primeira escola que incluiu a ginástica no currículo na segunda metade do século XVIII com a mesma importância das disciplinas teóricas. Introduzida na escola pública, a ginástica incorpora o objetivo de educar os filhos dos trabalhadores para a prática habitual do movimento como forma preventiva das chamadas doenças “hipocinéticas” (causadas pela pouca movimentação corporal) e consequentemente minimização dos prejuízos econômicos causados aos proprietários dos meios de produção (fábricas, indústrias e afins) pela evasão do trabalhador do local de trabalho por doença. O exercício físico torna-se educação.

No período compreendido entre as suas origens e a década de 1960 preponderou na EF a ginástica pelo alinhamento da disciplina entre a biologia e o militarismo; na década de 1960 a EF esteve marcada por idéias humanistas e libertárias calcadas em conceitos psicológicos de busca de prazer7; a partir da década de 1970 se coloca à EF uma prática hegemônica desportiva na esteira, mais uma vez, das tendências européias. Obedecendo a lógica do capital a padronização motora, a obediência às regras e a busca de rendimento e de vitória acabam determinando os rumos da EF. A idéia de vencer através da prática dos esportes - ou das atividades físicas desportivizadas - se sobrepõe a qualquer outro objetivo. Referindo-se a esse processo Silva (1994, p. 33), considera que:

Essa forma esportivizada impõe novas características, gerando um novo movimento corporal e uma nova subjetividade humana. Gera, fundamentalmente, um novo homem que se movimenta porque tem novos valores éticos e estéticos que se estendem às demais atividades físicas, generalizando essas características a ponto de possibilitar a perda da identidade cultural e pessoal.

Aos poucos a EF passa a obedecer não só aos códigos da ginástica, mas, de modo incisivo, do esporte e da esportivização das atividades físicas. Bracht (1997, p. 9 -10), assim descreve o processo de surgimento e consolidação do esporte moderno a partir do colapso dos antigos jogos populares:

O esporte moderno refere-se a uma atividade corporal de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultura européia por volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo. [...] Resultou de um processo de [...] esportivização de elementos da cultura corporal de movimento das classes populares inglesas, como os jogos populares, cujos exemplos mais citados são os inúmeros jogos com bola. [...] Este processo inicia em meados do século XVIII e se intensifica no final do século XIX e início do século XX. O declínio das formas de jogos populares inicia em torno de 1800. Eles parecem ficar paulatinamente fora de uso, porque os processos de industrialização e urbanização levaram a novos padrões e novas condições de vida, com as quais aqueles jogos não eram mais compatíveis [..] Com isso os jogos tradicionais foram esvaziados de suas funções iniciais, que estavam ligados às festas (da colheita, religiosas, etc.) É importante observar também que os jogos populares foram muitas vezes reprimidos pelo poder público, como , aliás, também foi o caso de uma prática corporal das classes populares brasileiras, a capoeira, que sofreu uma perseguição violenta por parte das autoridades nas décadas de 1910 a 1930. [...] Vai ser nas escolas públicas que aqueles jogos (o caso clássico é o futebol) vão ser regulamentados e aos poucos assumir as características (formas) do esporte moderno.

Referindo-se aos jogos populares, Kishimoto (1992, p 25), faz a seguinte consideração:

Não se conhece a origem desses jogos. Seus criadores são anônimos. Sabe-se, apenas, que são provenientes de práticas abandonadas por adultos, de fragmentos de romances, poesias, mitos e rituais religiosos. A tradicionalidade e universalidade dos jogos assentam-se no fato de que povos distintos e antigos como os da Grécia e do Oriente brincaram de amarelinha, empinar papagaios, jogaram pedrinhas e até hoje as crianças o fazem quase da mesma forma. Tais jogos foram transmitidos de geração em geração através dos conhecimentos empíricos e permanecem na memória infantil.

Segundo a autora (KISHIMOTO, 1992), o jogo popular não é inato; é uma aquisição social passada do mais experiente para o menos experiente. Contudo, esse processo é interrompido pelo ingresso da criança na escola. Eis aqui um momento importante da EF no sentido de conceder à criança a oportunidade do jogo como resistência ao esporte que prepondera como mola propulsora das aulas de EF, transformada na base escolar da chamada “pirâmide desportiva nacional” (BRACHT, 1999).

Considerando que o papel da escola é o de levar o aluno a propor formas mais elaboradas de pensamento de forma a romper com o senso comum (SAVIANI, 2000) e o da EF o de tratar pedagogicamente a cultura corporal de movimento dentro de uma visão transformadora, a EF caminha na contramão desses papéis. É comum, na realidade das aulas de EF a predominância dos esportes: vôlei, basquetebol, handebol e futsal.

Embora as possibilidades de conteúdos, segundo o COLETIVO DE AUTORES (1992), sejam inúmeras (jogos cooperativos, ginásticas, lutas, acrobacias, mímica, danças, malabarismo e contorcionismo) ainda são muito pouco utilizadas. Isto colabora para a reprodução do ideal competitivo da sociedade capitalista. Uma sociedade injusta, dividida entre ricos e pobres, vencedores e vencidos, onde as oportunidades não são iguais e as relações sociais são baseadas na exploração de uns sobre os outros.

Uma prática hegemônica esportiva em EF ensina ao aluno a lição de que ganha na quadra o mais esforçado. Assim, deve ganhar na vida também o mais esforçado. Mas a competição social é desigual. Ainda hoje a educação está dividida em escola para rico e escola para pobre – a particular e a pública: uma que forma médicos, engenheiros e empresários; e outra que seleciona e exclui da educação superior, formando uma mão de obra barata e oprimida. Os filhos dos ricos, ensinados nas melhores universidade – ironicamente as públicas e gratuitas - vão ser os administradores das empresas onde irão trabalhar os filhos dos pobres. Esta é a forma pós-moderna de escravatura, um trabalho sem garantias, sem direitos, com 100% de precariedade e com 0% de futuro.

 

 

Referências

ADORNO, T. HORKHEIMER, M. A Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do Esclarecimento. Zahar. Rio de Janeiro, 1985.

ADORNO, Theodor W. A Mínima Morália. Ática. São Paulo, 1993. 

BRACHT, Valter. Educação Física e Ciência: cenas de um casamento (in)feliz. UNIJUÍ. Juí, 1999.

BRACHT, Valter. Sociologia Crítica do Esporte: uma introdução. CEFDS – UFES. Vitória, 1997.

BRACHT, Valter. Educação Física e aprendizagem social. Porto Alegre, Magister, 1989.

BRUNNER, José Joaquin. Globalización cultural y posmodernidad. Santiago: Fondo de Cultura Econômica, 1998.

COSTA, Jurandir F. A subjetividade exterior. Disponível em: http://www.jfreirecosta.com/subjetividade.html. Acesso em: 01/08/2006.

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino da educação física, São Paulo: Cortez, 1992.

GARCIA, Wilton. Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos. SãoPaulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

KISHIMOTO, T. M. O jogo e a educação infantil. Livraria Pioneira Editora. São Paulo, 1992.

SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 7. ed. Autores associados. Campinas, 2000.

SILVA, Ana Marica. O Esporte: da luta pela igualdade à perda da identidade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Vol. 16. nº 1. outubro de 1994.

SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Autores associados. Campinas, 1994.

 

Notas de rodapé

1 Para Valter Bracht, o que qualifica o movimento enquanto humano é o sentido/significado do mover-se. Sentido/significado mediado simbolicamente e que o colocam no plano da cultura. Cultura que só o ser humano faz. Assim, a cultura corporal de movimento refere-se àquelas atividades corporais produzidas historicamente pela humanidade e que devem ser trabalhadas nas aulas de EF: dança, jogo, ginástica, luta e esporte; mas não só o esporte.

2 O período da história chamado aqui de Pré-civilizatório vai de 3,5 milhões de anos, com o surgimento do primeiro ser humano, o Australopithecus afarensis, até o surgimento da civilização, há l0 mil anos, pelo advento da agricultura.

3 Os movimentos corporais do homem do período Pré-civilizatório constavam de movimentos naturais tais como andar, correr, pular, subir, escalar, lutar, escalar e trepar.

4 A Idade Média ficou conhecida como “a noite de mil anos”, tamanho o obscurantismo de idéias e o desmesurado uso de dogmas. Teve início no séc. V e fim no séc. XV.

5 A Idade Moderna foi do séc. XV ao séc. XVIII. Nessa época renascem a arte e a ciência. O antropocentrismo substitui o teocentrismo da Idade Média.

6 A Revolução Industrial foi um conjunto de mudanças tecnológicas aplicadas ao processo produtivo com profundo impacto social e econômico. Iniciada na Inglaterra do séc. XVIII e ex pandida pelo mundo a partir do séc. XIX, exigiu uma urbanização radical da vida social, isto é, uma migração em massa do povo do campo para as cidades, transformando o camponês em operário. O trabalho humano foi substituido drasticamente pela máquina; o capitalismo tornou-se o sistema economico vigente; novas relações competitivas entre as nações e entre as pessoas dentro delas se estabeleceram; e surgiu, entre outros eventos, o fenômeno da cultura de massas e a indústria cultural.

7 A partir de 1960, a EF brasileira incorpora os ideais escolanovistas de uma educação baseada no “faz o que quer” e no “faz quem quer”. O prazer das atividades substitui a importância dos conteúdos.