Resumo: Quando não der para ler um livro, que seria tão bom que você lesse, faça o seguinte: borboleteie. 

Borboleteio 

Nada cansa mais que ficar girando em círculos, embora seja exatamente esse o destino da humanidade, ironicamente alojada numa esfera compelida a girar o tempo todo até a consumação dos tempos. 

Quando a conta fica no cansaço, menos mal; ruim é quando o giro tonteia e de repente afloram sintomas de náusea. 

Aí o jeito é reagir, pular fora e dar boa acolhida a distrações menos pesadas, ou preferentemente maneiras, como este mote de Mario Quintana: a alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe.

 Ou est’outra: livros. Como as árvores, como as estrelas, como o céu, como o mar, como a vizinha que se despe para tomar sol, os livros podem ser encarados de diversas maneiras, segundo o ponto de vista do observador. 

Ao final do capítulo LXXI de Memórias Póstumas, lê-se isto: “Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...” 

O capítulo seguinte, LXXII, (vede que não havia necessidade de, em nome da concisão, e em cortesia da lógica, escrever LXXII, porquanto depois de LXXI, em ordem crescente, há de ser necessariamente LXXII o número do capítulo seguinte. E nada me faria mais feliz se alguém, ainda que por desfastio, contestasse o meu parêntese. Todavia, sendo improvável que tal aconteça, explico que tudo aí vai desse jeito, simplesmente porque o desenho romano me evoca um relógio de pulso Cyma que eu menino namorava em braço alheio). 

O capítulo seguinte, dizia eu, abre assim: “Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.” 

A crítica do futuro é um bibliômano, desenhado como “um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra cousa além de livros.” 

Assim, apresenta-se um ponto de vista, através do qual os livros podem ser encarados, como as árvores, as estrelas, o céu e o mar, a vizinha: o ponto de vista do bibliômano. 

De mim devo dizer que ainda não cheguei lá. Se busco diversão em livros, tenho duas ordens de motivo. Uma é comum, qual seja, manter sob controle o índice de solidão filosófica. A outra vai pelo imaginativo ¾ uma espécie de curiosidade semelhante à curiosidade das borboletas, cujo exame não vai além da superfície ou, quando muito, alcança a entrecasca. 

Por isso, borboleteia (se tanto) quem, por exemplo,  sem tempo nem jeito de ler,  expõe na estante da sala coleções inteiras de obras clássicas, vermelhas, em letras douradas. 

Eu borboleteio, mas borboleteio pouco e sobre livros de aparência obscura. Um há, adquirido em 1960 na Livraria Acadêmica do Rio de Janeiro, que não penetrei além do avant-propos,  do avertissement de l’auteur e da notice historique. Se eventualmente ensaiei alguns passos pelo território da obra em si, fi-lo em borboleteio platônico, como se estivesse deliciosamente visitando o museu do Vaticano. 

O livro intitula-se Phonétique historique du latin. Autor: Max Niedermann, professor honorário da Universidade de Neuchâtel, Suíça. Prefácio de Antoine Meillet, professor do Colégio de França, membro do Instituto, e presidente da seção histórica da Escola de Altos Estudos. Editora : Librairie C. Klinc’ksieck, 11, Rue de Lille, 11, Paris. 

É mole ou quer mais? 

Aqui um trecho do avant-propos de Antoine Meillet: Le petit livre de M. Niedermann avait ainsi, pour le linguiste,

une valeur plus profonde qu’il ne semble au premier abord. 

Aqui um trecho da obra propriamente dita: devant une occlusive palatale, toute occlusive labiale ou dentale s’est changée en occlusive palatale. Ces changements se résument dans le schéma suivant: 

Bg

pg>bg      ý gg

dg

tg>dg

 

pc

bc>pc      ýcc

tc

dc>tc

De notar a extraordinária semelhança do desenho esquemático com o plano de vôo das borboletas. 

Verdade é que podia estender um pouquinho mais a série de esquemas, mas o artigo há de ser breve. 

De qualquer modo, corro a esclarecer que, sendo o borboleteio uma prática universal, aplica-se a outros ramos de atividade. Sirva de exemplo o mundo político, à cuja volta, em cujo seio, à cuja sombra impera absoluto o borboleteio institucional. Também nas escolas e universidades, salvo honrosas exceções, é possível contemplar o álacre volteio das borboletas, roçando aqui, cheirando ali , em sua indefectível órbita de superficialidades.

 E como existem áreas e livros talhados ao borboleteio, todo cuidado é pouco, para não se cair no conhecido caso daquele sujeito que, indagado a respeito de certa enciclopédia, respondeu que gostara muito, apesar de não lhe haver entendido o enredo. 

Para encerrar, e mergulhar em quietude,  conjugo o verbo borboletear no futuro do pretérito, que não deixa de ser um tempo verbal cuja designação, como o mote de Quintana, como a náusea do mundo, como o céu (a vizinha fica fora) tem recheio metafísico.

Eu borboletearia ,

Tu borboletearias,

Ele borboletearia,

       Nós orboletearíamos,  

     Vós borboletearíeis,

                                        Eles borboleteariam.

   

Repeti comigo: eu borbo.... tu borbo... isso! .... eles borbo... nós... vós... eles...