Andrea Tavares Ishimoto

Heloísa Helena Siqueira Correia (Orientadora)

RESUMO

Esta pesquisa centrou-se na observação e análise das estratégias utilizadas por Adolfo Caminha para abordar o homossexualismo na obra Bom-Crioulo. O objetivo principal foi analisar a obra Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, averiguando sua recepção pela sociedade da época, principalmente no que toca à reação dos leitores em relação ao homossexualismo. Partimos da hipótese de que a obra retrata um paradoxo, uma vez que o homossexualismo é retratado no interior da obra como algo bem natural, principalmente para o protagonista, porém a sociedade da época, inclusive outros escritores e críticos literários, não o viam com bons olhos. Seguimos a metodologia da pesquisa bibliográfica (qualitativa). Além da leitura do livro Bom-Crioulo, foi feito também o levantamento da fortuna crítica da obra, pesquisando em artigos e outros trabalhos científicos, além de revistas e jornais. Baseamo-nos na perspectiva da Estética da Recepção, que é uma reformulação da historiografia literária e da interpretação textual, cujo objetivo é estabelecer relações entre autor, obra e leitor. Como suporte teórico, buscamos embasamento em Leonardo Mendes (2003), Robert Howes (2005) e Rafaela de Queiroz Mendes (2012). As discussões proporcionadas ao longo deste estudo mostram que Adolfo Caminha foi um autor que não teve medo de ousar e de correr riscos ao publicar a obra Bom-Crioulo, de modo que tanto o autor quanto a obra entraram para a história da literatura brasileira.

Palavras-chave: Bom-Crioulo; Adolfo Caminha; Estética da Recepção; Literatura homoerótica.

 

ABSTRACT

This research focuses on the observation and analysis of the strategies used by Adolfo Caminha to talk about homosexuality in Bom Crioulo. The aim here is to analyze Bom-Crioulo, by Adolfo Caminha, verifying its reception by the society, especially in what concerns to the reader’s reaction in relation to homosexuality. We start with the hypothesis that the work represents a paradox, since homosexuality is pictured as something very natural, especially for the protagonist, but the society of the time, including other writers and literary critics, did not see it in a good way. We use the bibliographical method (qualitative) for reach our goal. Besides the reading of Bom Crioulo, we also have read the critical fortune on this work. We based this research on the perspective of the Aesthetics of Reception, which is a reformulation of literary historiography and textual interpretation, whose objective was to establish the relationships among the author, the work and the reader. As a theoretical support, we use Leonardo Mendes (2003), Robert Howes (2005) and Rafaela de Queiroz Mendes (2012). The discussions show us that Adolfo Caminha was an author who was not afraid to dare and to fight against some risks when publishing his Bom Crioulo, in the end both the author and the work came to the history of Brazilian literature.

Keywords: Bom Crioulo; Adolfo Caminha; Reception Aesthetics; Homoerotic Literature.

INTRODUÇÃO

O tema escolhido para esta pesquisa é a recepção do romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha. Nosso problema de pesquisa centrou-se na observação e análise das estratégias utilizadas por Adolfo Caminha para abordar o homossexualismo na obra Bom-Crioulo (1895). Considerando que o tema do homossexualismo era tabu na sociedade tradicional do fim do século XIX, também procuramos diagnosticar a reação/recepção da obra pela sociedade da época (finais do século XIX).

Partimos da hipótese de que, apesar da época em que o romance foi escrito, o homossexualismo, no interior da obra, é tratado como algo bem natural, principalmente para o protagonista. Tanto que a personagem D. Carolina sabe que Amaro (Bom-Crioulo) não se sente atraído por mulheres e ela não acha isso estranho ou repugnante, diferentemente do que a sociedade pensava em 1895. Em direção contrária à postura de D. Carolina, a partir da leitura de outros materiais e análises operadas por diversos pesquisadores, percebemos que a sociedade não viu com bons olhos a publicação da obra, não só pela presença da homossexualidade, mas também pelo fato do protagonista ser negro e dar ordens ao branco, o qual era representado como um sujeito fraco, covarde e submisso em contrapartida ao Bom Crioulo – forte, corajoso e altivo. Tal reação social por parte dos leitores é o que se supõe encontrar no estudo da recepção da obra.

Este trabalho justifica-se porque esse romance me impressionou na primeira vez que o li e percebi o quanto ele foi ousado na época em que foi lançado. Há bastante assunto para trabalhar, além de um protagonista homossexual assumido, há também uma inversão de papéis quando o negro, ex-escravo, manda em um rapaz branco e submisso, e o controla. Além disso, interessa estudar o contexto histórico da época de publicação da obra, resgatando o modo de pensar das pessoas naquele período e a reação delas diante de uma obra tão polêmica.

Esse estudo pode contribuir para entendermos como vivia a sociedade em 1895, que era patriarcal, preconceituosa com os negros e com relação aos homossexuais, os quais eram tidos como doentes pela sociedade médica.  Apresentar essa obra, que não é muito conhecida pelos leitores por trazer um tema novo na literatura brasileira, porém chocante para a época, pode lançar respostas ou novas perguntas para a questão dos preconceitos sociais atuais.

Assim, com esta pesquisa, objetivamos analisar a obra Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, averiguando sua recepção pela sociedade da época, principalmente no que toca à reação dos leitores em relação ao homossexualismo.

Como objetivos específicos procuramos fazer um levantamento acerca dos fatos históricos ocorridos em fins do século XIX, uma vez que a obra foi publicada em 1895; pesquisar sobre a literatura homoerótica, verificando se é possível encontrar características dessa literatura na obra Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha; fazer uma análise sobre a composição e perfil psicológico das personagens do romance.

Nesse estudo, seguimos a metodologia da pesquisa bibliográfica (qualitativa). Além da leitura do livro Bom-Crioulo, foi feito levantamento da fortuna crítica da obra, pesquisando em artigos e outros trabalhos científicos, além de revistas e jornais, a fim de formar uma tese a respeito da temática da obra para um melhor entendimento da mesma. Como o artigo Raça e sexualidade transgressiva em Bom-Crioulo de Adolfo Caminha, escrito por Robert Howes para a Revista de pós-graduação em Letras em UFPB. Ou a crítica feita por Valentim Magalhães (1895) que chama a obra de imunda e obscena.

            Como suporte teórico, buscamos embasamento em Leonardo Mendes (2003), Robert Howes (2005) e Rafaela de Queiroz Mendes (2012). Deste modo, este estudo foi organizado em três tópicos, quais sejam: A arte imita a vida? Ou não?; Conhecendo o romance; A recepção de Bom-Crioulo.

A ARTE IMITA A VIDA? OU NÃO?

            Algumas produções literárias do fim do século XIX como O Ateneu (1888), O cortiço (1890) ou O retrato de Dorian Gray (1890), possuem personagens bissexuais e os momentos homoafetivos são poucos, o que não os impediu de causar polêmicas. Bom-Crioulo é uma obra naturalista, escrita por Adolfo Caminha e lançada originalmente em 1895, se destacando por ser a primeira vez que o homossexualismo é o tema principal de um romance brasileiro, pois na literatura médica o homossexualismo era considerado uma patologia.

            O romance conta com três personagens principais de um triângulo amoroso: Amaro; um homossexual e negro de 30 anos, que atende pelo apelido de Bom-Crioulo; D. Carolina, uma portuguesa gorda, heterossexual, antiga prostituta e muito bonita e Aleixo, que era um jovem de 15 anos, loiro, de olhos azuis, franzino, virgem, bonito, ingênuo e que ainda está descobrindo a sexualidade.

No triângulo que se forma, Amaro e D. Carolina disputam o amor de Aleixo. Portanto, podemos dizer que “a rivalidade em ‘Bom-Crioulo’ é entre um homem e uma mulher pelo corpo de um adolescente masculino” (HOWES, 2005. p.184). Outro ponto interessante é que na narrativa, as personagens Amaro e Aleixo são marinheiros. Adolfo Caminha serviu à marinha na juventude. Segundo Howes:

Magalhães e Veríssimo sugeriam que Bom-Crioulo refletia a experiência pessoal do seu autor, uma possibilidade que naturalmente surge quando se discute uma obra tão explícita. Caminha era branco e vinha duma família bem estabelecida do Ceará. [...] Quando cadete, protestou contra a prática de castigos de chibata na Marinha, um método disciplinar usado para controlar os marinheiros, que eram majoritariamente não-brancos e esta questão tem um papel importante no romance. (HOWES, 2005. p.175).

Na Marinha do Brasil era comum que os marinheiros fossem punidos com chibatadas, o que acontecia também no exército. Isso desencadeou um fato histórico em 1910, quando os marinheiros se revoltaram contra tais tratamentos. Este movimento ficou conhecido como a Revolta da Chibata que foi liderado por João Cândido, conhecido como Almirante negro. Caminha protestava contra esses castigos, tanto que “a Marinha que aparece em Bom-Crioulo teria que ser cruel, injusta, hipócrita”, [...] (MENDES, 2003. p. 42). Sodré (1992) fala pouco sobre o autor no livro O Naturalismo no Brasil (1992), mas o suficiente para entendermos suas motivações:

Com Adolfo Caminha, o naturalismo brasileiro avança um passo mais. [...] saiu da Escola Naval aos dezoito anos, tornou-se republicano e revoltado, escrevendo na Gazeta de Notícias escandaloso artigo sobre o castigo corporal na Marinha, sob o título “A chibata”[...] (SODRÉ, 1992, p. 225).

            Além disso, muitos acreditavam que os marinheiros, por passarem tanto tempo em alto-mar, precisavam suprir suas “necessidades” sexuais e, portanto, praticavam a homossexualidade entre eles mesmos. No romance de Caminha, é mostrado um marinheiro chamado Herculano, que fora flagrado se masturbando e acaba castigado com as chibatadas. A esse respeito, é possível notar no musical Les miserábles (2012), no início da música Lovely Ladies, as prostitutas no porto esperando os marinheiros desembarcarem para que possam satisfazê-los.

            Entretanto, o destaque mesmo vai para o protagonista Amaro (Bom-crioulo) justamente por este gostar de relações com pessoas do mesmo sexo. Porém, diferentemente do que as pessoas acreditavam na época, o personagem não se tornou homossexual depois que entrou na marinha, ele já era assim antes. Quando desembarcou, continuou o mesmo, e “a ideia de doença se desfaz diante da tranquilidade com que Bom-Crioulo parece aceitar sua homossexualidade” (MENDES, 2003. p. 39). Apesar de ser uma obra de ficção, muitos se perguntaram na época: Adolfo Caminha era homossexual? Segundo Howes:

[...] é impossível ter certeza sobre a sexualidade do autor mas a evidência deixada pela vida e obra de Caminha não indica que ele fosse homossexual. Inicialmente, começou uma promissora carreira como oficial naval mas aos 22 anos de idade se encontrou no centro de um escândalo em Fortaleza quando seu caso com a mulher de um oficial do Exército tornou-se púbico. Isabel deixou o seu marido para viver abertamente com Caminha que, pressionado pelas autoridades militares do mais alto nível, preferiu sacrificar a sua carreira, demitindo-se para levar uma vida de ostracismo social e miséria, a abrir mão de sua relação amorosa. As dificuldades que ele sofreu sugerem que foi um verdadeiro amor. (HOWES, 2005. p.175-6).

            Ao que tudo indica, ele não era homossexual, como é possível perceber na citação acima. Porém, provavelmente se inspirou na vida real para criar seu romance, mais precisamente em dois casos, um deles aconteceu em março de 1888, quando o grumete pardo de 16 anos, chamado André Nogueira, foi supostamente assassinado na Rua da Misericórdia (onde se passa o romance de Caminha). Esse caso virou notícia na época, entretanto, ficou confuso e no final descobriram que ele tinha desertado e, portanto, não teria sido assassinado.

            O outro caso, que foi provável fonte de inspiração para o autor, não aconteceu no Brasil, mas em Portugal. Um cadete da prestigiada Escola do Exército, chamado Marinho da Cruz, de 24 anos, matou o colega António Candido Pereira, em 22 de abril de 1886. Conforme investigava-se o crime, suspeitava-se que os dois companheiros tivessem tido uma relação homossexual.

Segundo o jornal lisboeta Diário Popular (1886), Marinho da Cruz havia se afeiçoado com António Candido Pereira e o convidou para morarem juntos em um quarto que alugara. Pereira aceitou, pois era muito pobre, logo os dois se tornaram companheiros inseparáveis, o que gerou uma onda de boatos e comentários acerca dos dois. Por causa da reputação, Pereira decidiu ir morar só e cortou relações com Marinho da Cruz, que passou a odiar o amigo. Contudo, quando descobriu que Pereira havia se apaixonado e estava se relacionando com uma moça, Marinho o matou. No fim, Marinho da Cruz foi condenado pelo assassinato.

Essa história é semelhante ao romance de Caminha, que iremos ver com mais detalhes no próximo capítulo. De acordo com Howes “Bom-Crioulo é, contudo, muito mais do que um relato de fatos reais em forma de ficção(HOWES, 2005, p.179). Além disso, “Marinho da Cruz era de classe média alta e branco ao passo que Bom-Crioulo é negro e, como os outros personagens do romance, pobre(HOWES, 2005, p.180).

Vale enfatizar que a publicação do livro causou um enorme escândalo, sendo o romance chamado de imundo e obsceno por Valetim Magalhães (1895) no jornal A notícia. Meses mais tarde, Caminha respondeu as críticas com um artigo intitulado Um livro Condenado (1896).

CONHECENDO O ROMANCE                                                                        

            O romance de Caminha é narrado em tempo cronológico por um narrador em terceira pessoa onisciente seletivo que chama a relação homossexual de “delito contra a natureza” (CAMINHA, 1895, P. 48). O enredo é simples, porém interessante e curioso.

O personagem Amaro era um escravo que fugiu da fazenda de café aos vinte anos de idade e logo entra nas forças armadas, tornando-se marinheiro. Todos lá gostam tanto dele que recebeu o apelido de “Bom-Crioulo”. Amaro, além de forte, era muito bruto. Quando bebia em excesso, punha medo em todo mundo, sendo respeitado por todos. Logo se descobre homossexual, sem que isso afete seu porte de macho alfa.

Após dez anos na marinha, Bom-Crioulo agora está com trinta anos e ainda impõe respeito. Num período de embarque e desembarque de navios ele conhece um grumete de quinze anos chamado Aleixo. Ele é loiro, de belos olhos azuis, inexperiente e muito ingênuo.

Amaro apaixona-se por ele e fica a princípio com receio de tentar alguma aproximação. Porém, logo deixa de lado o seu receio e resolve fazer de tudo para conquistá-lo. Aleixo a priori tem muito medo do Bom-Crioulo e o repele sempre que possível, chegando até quase a chorar em determinados momentos, demonstrando o quanto o adolescente é covarde. Entretanto, o romance é ambíguo, pois o autor “legitima e condena ao mesmo tempo o desejo do protagonista Amaro” (MENDES, 2012, p. 3).

O grumete tinha um jeito meio afeminado e era medroso, ou seja, “[...] vivia sob o estigma de não corresponder aos padrões de virilidade masculina [...]” (ARAÚJO, p. 243. 2015) e havia boatos sobre sua sexualidade, que o tornavam alvo de provocações de outros marinheiros. Em uma dessas provocações, Amaro o defendeu, foi preso e açoitado com 150 chibatadas.

Logo os dois se tornam amigos inseparáveis, Amaro tomou a iniciativa para poder alcançar seu objetivo: fazer sexo com Aleixo. Bom-Crioulo passou a ensinar tudo o que era necessário para ser um bom marinheiro, além de dar presentes e tentá-lo com promessas.

O grumete, que ainda era virgem e ingênuo, acaba entregando-se a ele. E assim os dois tem sua primeira consumação carnal ainda dentro do navio, sendo Amaro o amante ativo e Aleixo o passivo:

[...] Bom-Crioulo, conchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer coisa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar. [...] lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abanonar-se-lhe para o que ele quisesse [...] (CAMINHA, 1895, p. 48).

 

Quando desembarcam, Amaro decidiu alugar um quarto para ele e o adolescente. Encaminharam-se à Rua da Misericórdia onde vivia D. Carolina, uma portuguesa gorda, bonita, antiga prostituta de 39 anos e que aluga quartos. Ela e Bom-Crioulo ficaram amigos depois que ele a salvou de um assalto.

Amaro alugou um quartinho e passou a viver com o amante, porém demonstrava ser um sujeito possessivo e animalesco em relação ao jovem, revelando claramente um aspecto dominador da relação. Logo no primeiro dia em que entraram no quartinho, Bom-Crioulo obrigou Aleixo a ficar completamente nu para que pudesse ser “examinado”. Quando fizeram sexo no navio, estava escuro e foi tudo na base do tato, agora Amaro queria ver o corpo. O grumete choramingava um pouco, mas obedeceu: “E o pequeno, submisso e covarde, foi desabotoando a camisa de flanela, depois as calças, em pé, colocando a roupa sobre a cama, peça por peça” (CAMINHA, 1895, p. 62)

Conforme Aleixo tirava cada peça de roupa, ficava evidente que Amaro demonstrava excitação, “dentro do negro rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea” (CAMINHA, 1895, p. 62). Ele pegou uma vela para iluminar mais de perto, porém Aleixo soprou a chama para que o outro não o visse e saiu correndo. Por essa passagem começamos a questionar que a atitude do adolescente não fosse só timidez, mas que provavelmente não estava à vontade em ficar nu para seu amante. Fica claro que o sentimento de Aleixo por Amaro era de gratidão, e não de amor.

Passou-se um ano e eles viviam em paz, até D. Carolina brincava com a possibilidade de eles acabarem tendo um filho. Porém, Aleixo estava aborrecido e cansado de ser possuído sempre que Amaro tivesse vontade e, como diz Caminha, “obrigava-o a excessos” (CAMINHA, 1895, p. 61).

Bom-Crioulo foi transferido para outro navio e teve que se afastar do jovem. D. Carolina, aproveitando-se da ausência do negro, resolveu seduzir Aleixo. Ela se sentia velha e queria se “revitalizar” ficando com alguém tão jovem e virgem (em relação a mulheres).

Ela propôs ao grumete que passasse uma noite com ela, e, da mesma forma como ele cedeu facilmente a Bom-Crioulo, também cedeu a ela, como se fosse um personagem sem vontade própria que fazia tudo o que os outros quisessem. O rapaz, pela primeira vez, deixou de ser o amante passivo e passou a ser o ativo.

No entanto, o que era para ser apenas uma noite, acabou evoluindo para um relacionamento sério. Como se vê, “Aleixo começa a assumir uma mais assertiva masculinidade e esquece Bom-Crioulo” (HOWES, 2005, p. 172). E de dominado, passou a ser o dominador.

O jovem não parava de pensar nela e percebeu que estava apaixonado. Se para Amaro ele parecia tão tímido, para D. Carolina ficou bastante assanhado. Sua mudança de comportamento ficou evidente no trecho que evidencia que ele nunca mais queria ver seu amante masculino, preferindo a mulher:

Aleixo nesse dia estava de folga, [...] veio a terra impelido por uma grande saudade que o fazia agora escravo da portuguesa. Receava encontrar Bom-Crioulo, ter de suportar com seus caprichos, com o seu bodum africano, com os seus ímpetos de touro, e esta lembrança entristecia-o, odiando-o quase, cheio de repugnância, cheio de nojo por aquele animal com formas de homem, que se dizia seu amigo unicamente para gozar. (CAMINHA, 1895, p. 93).

Segundo a teoria de Forster (1879-1970) em seu livro Aspects of the novel (Aspectos do romance), Amaro é um personagem plano, pois continua o mesmo do começo ao fim, enquanto Aleixo é um personagem redondo, sendo o mais versátil do romance. Vemos que ele vai perdendo a ingenuidade no decorrer da narrativa e como vai descobrindo a própria sexualidade, até chegar à conclusão de que é na verdade heterossexual. Pois era virgem e teve os dois tipos de relações, optando por ficar com a mulher. Para Howes:

As assimetrias do poder são mais claramente mostradas no retrato do adolescente masculino Aleixo, onde as relações entre gênero e sexualidade são sutilmente contrastadas. [...], passa do complacente parceiro passivo numa relação homossexual para o papel ativo numa relação heterossexual. (HOWES, 2005, p. 185).

Agora Aleixo se enquadrara aos padrões da época, tendo deixado de lado Bom-Crioulo, homem e negro, e passado a ficar com D. Carolina, mulher e branca. Amaro ficou impedido de desembarcar do navio por ser considerado “perigoso” e quando arranjou uma oportunidade, correu direto para o quartinho que havia alugado e descobriu que o grumete não estava lá. Encaminhou-se para um bar, tendo ficado bêbado e arranjado confusão, foi levado de volta ao navio e preso. Na prisão do navio, começou a ter alucinações de que Aleixo estava ali só para ele. Amaro foi açoitado novamente e ficou tão ferido que precisou ser levado ao hospital.

Enquanto Bom-Crioulo estava acamado, Aleixo estava muito bem e feliz ao lado de D. Carolina. Logo Amaro começou a ouvir boatos de que o grumete estaria enamorado de uma mulher e ficou doente de raiva, querendo até possuí-lo novamente só para vê-lo sofrer.

Não aguentando mais, fugiu do hospital e voltou à Rua da Misericórdia, pedindo informações sobre o rapazinho e descobriu que a tal mulher com quem Aleixo se relacionava era D. Carolina. Tendo ficado completamente transtornado, quando viu Aleixo andando na rua, agarrou-o e, em seguida, matou-o com uma punhalada, sem se importar com a presença de várias pessoas.

Para Howes (2005), o assassinato de Aleixo pode ter sido motivado por dois fatores: o primeiro seria que Bom-Crioulo não teria suportado a traição do jovem. E o segundo pelo fato de saber que o grumete não dependia mais dele, pois no começo o adolescente era um indefeso dentro de um navio e agora estava firme e forte como um acrobata. 

Seu trágico final também foge dos padrões quando se trata desse assunto, pois “narrativas explicitamente homoeróticas, [...] terminam sempre com a morte violenta do homossexual” (MENDES; 2003, p. 41). Nesse caso, porém, quem acabou morto foi Aleixo e não Amaro.

A RECEPÇÃO DE BOM-CRIOULO      

O romance Bom-Crioulo não foi bem recebido devido ao seu conteúdo homoerótico, sendo uma obra naturalista. A escola naturalista foi iniciada por Émile Zola, tem como características a zoomorfização dos personagens, que são influenciados pelo meio, o pessimismo e a abordagem de temas tabus da época, o que causava certo incômodo nas pessoas mais tradicionais, “também é conhecido por ser uma radicalização do Realismo, com abordagem de uma aproximação ainda mais real do homem, [...]” (MENDES, LIMA, 2012, p. 142). Sendo seus autores acusados constantemente de imoralidade.

A primeira obra naturalista brasileira foi O mulato (1881), de Aluísio Azevedo, obra na qual o autor aborda o tema do racismo, vivido pelo personagem Raimundo que, por causa da cor de sua pele, é impedido de viver um amor com Ana Rosa e termina assassinado. Essa obra causou polêmica, e era apenas o começo do naturalismo no Brasil.

            Outra obra que chamou atenção nesse período por causa de sua temática foi A carne (1888) de Júlio Ribeiro por mostrar o relacionamento amoroso entre Lenita e Manuel, mas regado a muito sexo que é descrito em detalhes nunca antes vistos, retratando até o momento do orgasmo da personagem. Mais uma obra escandalosa! Mas, tanto Raimundo como Lenita eram heterossexuais, a primeira obra a mostrar um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo foi O cortiço (1890) com um casal de lésbicas. Porém, este relacionamento é descrito em poucas páginas e não é o tema principal da narrativa.

            Embora as obras naturalistas fossem escandalosas, a que mais causou comentários foi Bom-Crioulo (1895). Isso decorreu do fato de que o personagem Amaro é muito mais que um homossexual masculino, ele é o protagonista do romance. E como isso era considerado uma patologia, personagens literários que tinham tendências homoafetivas eram descritas como fracas e doentes. Caminha segue a linha contrária ao mostrar Amaro como sendo forte, saudável, que não foge de uma briga e com um bíceps de fazer inveja a qualquer um:

[...] e a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado – foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma ideia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. (CAMINHA, 1895, p. 30-1)

A sexualidade de Amaro não foi a única característica que incomodou as pessoas, mas também pelo fato dele ser um negro puro. Muitos literatos colocavam os escravos mulatos em suas obras, sendo eles livres ou não. Como a mãe de Isaura em A escrava Isaura (1875), Vidinha de Memórias de um Sargento de Milícias (1853), Raimundo em O mulato (1881), e muitos outros. Um personagem sendo mulato, significa que ele é a mistura de branco com negro.

            Apesar de o naturalismo abordar temas ousados, “a obra não foi recebida com bons olhos, pois se opunha ao discurso moralista daquela sociedade,” [...] (MENDES, LIMA, 2012, p. 143). A recepção da obra não foi boa, os críticos a rotularam de obscena. Dentre esses críticos, destacam-se Valetim Magalhães, que escreveu sua crítica na coluna “Semana Literária”, na edição 20-21 do jornal A notícia, em novembro de 1895. Segundo ele,

[...] o Bom Crioulo excede tudo quanto se possa imaginar de mais grosseiramente imundo. [...] não é um livro travesso, alegre, patusco, contando cenas de alcova ou de bordel, ou noivados entre as hervas, a lei do bom Deus, como no Germinal... nada disso. É um livro ascoroso, porque explora – primeiro a fazê-lo, que eu saiba – um ramo de pornografia até hoje inédito por inabordável, por anti-natural, por ignóbil. Não é pois somente um livro Faisandé: é um livro podre; é o romance vômito, o romance-poia, o romance-pus. [...] Este moço inconsciente, por obcecação literária ou perversão moral. Só assim se pode explicar o fato de haver ele achado literário tal assunto, de ter julgado que a história dos vícios bestiais de um marinheiro negro e boçal podia ser literariamente interessante. (MAGALHÃES, 1895, p. 1 apud HOWES, 2005, p. 173-4)

            Apesar de tudo, Caminha respondeu as críticas em um artigo intitulado Um livro condenado (1886) que foi publicado em A nova Revista. Mais tarde, enquanto escrevia sua última obra Tentação (1897), incluiu um personagem chamado Valdevino Manhães, um poeta bêbado, pelo qual Caminha satiriza Valetim Magalhães.

Portanto, o fato de o personagem Amaro, de Bom-Crioulo, ser negro e homossexual já o deixava duplamente odiado. E para piorar, ele dava ordens a um rapazinho branco, que o obedece sem reclamar. Além de ser um relacionamento homossexual, também era inter-racial, no qual o branco era retratado como submisso, dependente e covarde. Quem também fez críticas severas foi José Veríssimo, no Jornal do Comércio, na edição de 27 de novembro de 1895:

Bom Crioulo é pior que um mau livro: é uma ação detestável, literatura à parte. [...] Como quer o Sr. Adolfo Caminha que seja respeitado e estimado um homem que, sem utilidade alguma social, passou longos dias ocupado em analisar e discutir a psicologia improvável de nauseantes crimes contra a natureza e tenta depois com isso despertar em nós o arrepio da curiosidade impura e mórbida? (VERÍSSIMO, 1895 apud HOWES, 2005, p. 174).

Mesmo que em 1895 os escravos já fossem livres, era inadmissível que um branco virasse “escravo sexual” do negro. A obra foi recebida com escândalo pela crítica literária, mas tornou-se um marco da literatura por ser o primeiro romance com a homossexualidade como tema central. Segundo Dalcastagnè:

Afinal, além de gay, ele é negro e trabalhador braçal. Juntam-se aí três características que, isoladas, já seriam suficientes para torná-lo invisível nos discursos predominantes que circulam pelos variados espaços sociais. No discurso literário, uma personagem com essas marcas de classe, raça e orientação sexual poderia até compor o pano de fundo de alguma narrativa, como representante de uma “diversidade” que é necessário reconhecer. (DALCASTAGNÈ, 2017 p. 147).

            Após a morte de Caminha, Bom-Crioulo caiu no esquecimento por meio século, sendo redescoberto na segunda metade do século XX, sendo republicado várias vezes no Brasil e foi traduzido para o italiano, espanhol, alemão, francês e inglês com o título Bom-Crioulo: The Black Man and the Cabin Boy (Bom-Crioulo: o homem negro e o menino da cabine). Com uma narrativa simples e trágica, essa obra ainda é destaque na literatura brasileira, por ser o primeiro romance a abordar o homossexualismo como tema principal e apresentar um negro como protagonista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Obras ousadas que tratam de raça e sexualidade sempre causaram reações  nas pessoas, o que é seguido por uma série de comentários alarmantes. Antigamente nem se falava sobre questões como homossexualidade, homoafetividade e homoerotismo e poucos que se atreveram a colocar tal tema eram vistos como provocadores e indignos de respeito. Na Inglaterra foi até feito um abaixo-assinado contra a obra O retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde (SHOWALTER, 1993, p. 225), mesmo esta não sendo puramente homoerótica.

Então, eis que um literato brasileiro faz um romance cujo protagonista é homossexual e aceita sua condição na maior tranquilidade! Era para explodir a cabeça das pessoas que liam naquela época. Como se não bastasse o personagem do romance se relacionar com pessoas do mesmo sexo, ainda era negro e ativo, num período pós-escravocrata, cheio de preconceitos e no qual a raça branca era considerada como a raça “superior”. 

            O Brasil estava passando por mudanças, pois havia ocorrido recentemente a Abolição da escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889), e essas mudanças também ocorreram no campo literário com novos temas e ideias, mesmo que elas fugissem dos padrões românticos que predominavam naquele século.

Pode-se dizer que Adolfo Caminha, em termos de literatura, foi avançado para sua época. Atualmente vemos tantos trabalhos que falam sobre o mesmo assunto e ainda surgem comentários de repulsa. Na época de Caminha, práticas homossexuais eram condenáveis pela igreja, pela medicina e pela sociedade, eram encaradas como um verdadeiro “delito contra a natureza” (CAMINHA, 1895, p. 48). Foi por isso que o romance havia sido tão odiado e a crítica preferira esquecer que essa obra existia.

Mesmo vivendo no século XIX e conhecendo a sociedade tradicional e seus costumes, Caminha foi muito corajoso ao introduzir o homossexualismo na literatura nacional. Sendo um autor que não teve medo de ousar e de correr riscos, pois provavelmente já sabia que seria massacrado pela crítica, o autor e a obra  Bom-Crioulo entraram para a história da literatura brasileira.     

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ana Paula de. Tipos de narradores. Disponível em <goo.gl/EmL4ig > acesso em 25 de outubro de 2017.

ARAUJO, Rubenilson Pereira de. A força do desejo homoerótico interseccionado com questões de raça em ‘Bom Crioulo’, de Adolfo Caminha. Literatura, homoerotismo e expressões homoculturais. Ed. Editus. 2015. Bahia.

BRAGA-PINTO, César. Patologias de Othello: leitura de Adolfo Caminha com Lombroso.Othello's Pathologies: reading Adolfo Caminha with Lombroso. Literatura Comparativa 66: 2 doi 10.1215 / 00104124-2682173 © 2014 pela University of Oregon. Comparative Literature 66:2 doi 10.1215/00104124-2682173. 2014. University of Oregon.

CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009.

DALCASTAGNÈ, Regina. Retrato sem parede: o Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. Universidade de Brasília, Unb. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. N. 24. P. 147–159. Jun. 2017.

Diario Popular, Lisboa, 24 abril 1886, p. 2; Novidades, Lisboa, 23 abril 1886, p. [1].

FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. 4. ed. São Paulo: Globo, 2005.

HOWES, Robert. Raça e sexualidade transgressiva em Bom-Crioulo de Adolfo Caminha.  João Pessoa, UFPB. Graphos, Revista da Pós-Graduação em Letras, Vol. 7. n. 2/1, p. 171-190, 2005.

LES miserábles. Direção: Tom Hopper. Produtora: Working Title Films, Cameron Mackintosh Ltd. 2012. 158 min. Leg. Color. 16 mm.

MENDES, Leonardo. Naturalismo com aspas: Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, a homossexualidade e os desafios da criação literária. Niterói, n.14, 2003. p. 29-44. Revista Gragoatá.

MENDES, Leonardo. O crítico Adolfo Caminha e as batalhas pelo reconhecimento literário. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 8, julho de 2012.

MENDES, Rafaella de Queiroz. LIMA, Sheila Oliveira. A presença do determinismo em Bom-Crioulo de Adolfo Caminha. Paraná. 2012.

SHOWALTER, Elaine. Anarquia sexual: sexo e cultura no fin de siecle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

SODRÉ, Nélson Werneck. O naturalismo no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Oficina de livros, 1992.

VALETIM Magalhães – Biografia. Disponível em < goo.gl/Pnjyni > acesso em 7 de agosto de 2017.

Acadêmica do Curso de Letras/Português e suas Literaturas da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

Professora do Departamento de Línguas Vernáculas e do Mestrado em Estudos Literários da UNIR. Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de doenças mentais em 1990.

Eu sinto cheiro de mulheres / Sinta o cheiro delas no ar / Acho que deixarei minha âncora cair / Naquele porto ali.

Adoráveis moças / Sinta o cheiro delas através da fumaça / Sete dias no mar / Podem deixá-lo faminto por um contato.

Até mesmo os que alimentam o barco precisam de “comida”! [...]

Narrador onisciente seletivo: Narra os fatos sempre com a preocupação de relatar opiniões, pensamentos e impressões de uma ou mais personagens, influenciando assim o leitor a se posicionar a favor ou contra eles. (Disponível em , acesso em 25 de out. de 2017ler artigo completo)

Planas ou Estacionárias – são personagens construídas em redor de uma única qualidade ou defeito. [...] não tem profundidade psicológica, e não alteram seu comportamento no decorrer da narrativa. [...] (Disponível em , acesso em 31 de out. de 2017)

Redondas, Esféricas ou Evolutivas – são personagens complexas; definidas por vários traços diferentes, cheias de contradições; apresentam comportamentos imprevisíveis, enigmáticos, que vão sendo definidos no decorrer da narrativa, evoluindo e, muitas vezes, surpreendendo o leitor. (Disponível em , acesso em 31 de out. de 2017)

Antônio Valetim da Costa Magalhães (1859-1903) foi um jornalista, contista, romancista e poeta, nasceu no Rio de Janeiro [...]. (Disponível em , acesso em 07 de agosto de 2017ler artigo completo)

José Veríssimo Dias de Matos (1857-1916) foi um jornalista, professor, educador, crítico, historiador literário. (Disponível em < academia.org.br/academicos/jose-verissimo>, acesso em 31 de out. de 2017)