Com a vitória de Luiz Arce, candidato do Evo Morales, a Bolívia retorna à sua normalidade democrática se é que se pode dizer que lá existe normalidade, pois o país é sempre recheado de novos acontecimentos.  Morales foi o primeiro presidente eleito que concluiu dois mandatos sem maiores dificuldades e também o primeiro índio a governar o país.  A Bolívia, desde sua independência, viveu em constante instabilidade. Eles tiveram um número de presidentes superior ao número de anos de república. Isso quer dizer que tiveram em média mais de um presidente por ano. Haja coração!

Estive na Bolívia por acaso, quando visitei um primo estabelecido como pecuarista em Cáceres, cidade distante pouco mais de cem quilômetros da fronteira com esse país. Jorge, filho do meu primo, um garoto[RLdo1]  gentil e prestativo que infelizmente perdeu a vida num acidente, ficou encarregado de mostrar a região para os parentes de São Paulo. Chegamos ao destacamento militar da fronteira, onde fomos recepcionados pelo oficial conhecido do Jorge para as autorizações de praxe. Do outro lado, o destacamento boliviano, onde vimos soldados fazendo ordem unida, com alguns descalços e outros de coturno.  Um soldado veio até o carro para verificar a documentação e como Jorge disse que iríamos à casa Dom Fernando, ele nos autorizou a seguir a viagem sem maiores problemas, pois o fazendeiro era um homem muito respeitado na região. O pobre soldado estava de sandália havaiana, a barba por fazer e exalava um forte cheiro de urina. O padrão do destacamento brasileiro de fronteira era visivelmente superior ao do Boliviano em organização e apresentação dos soldados, lembrando filmes em que soldados americanos estão em missões na África ou no Oriente.

Entramos em território boliviano, na pequena San Mathias, um vilarejo a poucos quilômetros da fronteira com o Brasil. Ruas sem calçamento, com casas bem modestas. O banco do Estado da Bolívia mais parecia um bar de periferia com uma porta de aço. A residência de Don Fernando, um grande estancieiro da Bolívia era bem simples e quando minha filha pediu água, a mulher de dele pegou uma concha e tirou água de um pote que ficava do lá de fora da casa. Disfarçamos para não sermos descorteses e recusamos a água, pois não tendo tratamento de água, seria um risco bebê-la.

Neste mesmo dia Don Fernando iria viajar para La Paz em seu avião particular e nos convidou para que conhecêssemos a capital do país, pois voltaria no mesmo dia.  Seria uma boa aventura, mas com uma criança pequena, preferimos não arriscar a improvisada viagem. Foi uma sábia decisão, pois naquele mesmo dia, uma tentativa de golpe de estado provocou o fechamento do aeroporto por trinta dias. Se tivéssemos aceitado o convite teríamos passado uma longa temporada forçada naquele país pobre e sem recursos, além dos transtornos em razão dos nossos compromissos de trabalho no Brasil.

Uma cena curiosa, foi um boliviano se oferecer para comprar meu carro. Pagaria a vista e em dólar. Respondi que não, pois estava viajando e não tinha interesse em vende-lo. Meu primo explicou que era comum eles comprarem carros na cidade sem fazer a documentação que seria necessária para a transação, pois se tratava da importação de um veículo. Os carros vendidos circulavam entre os dois países sem maiores problemas. O que era comum também, segundo relatou meu primo, brasileiros venderem os carros e denunciar que foram roubados, cobrando do seguro o ressarcimento.

Hoje temos a presença de centenas de milhares de bolivianos trabalhando ilegalmente no Brasil, substituindo os coreanos na indústria de confecções. São recrutados na Bolívia e vivem aqui praticamente como escravos, morando no local de trabalho, pois sem documentação não podem denunciar seus patrões.

E assim o tempo passa e a exploração do trabalho dos necessitados vai mudando de acordo com as mudanças sociais e na economia. Antes, brasileiros exploravam coreanos, agora os coreanos estão explorando os bolivianos. Quem serão os próximos?

 

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