BOAVENTURA E A CRISE DA MODERNIDADE

Maria Célia da Silva – mestranda pela UNIR

Elton Emanuel Brito Cavalcante – mestrando pela UNIR

 

RESUMO: Boaventura de Sousa Santos (2002) faz em “A Crítica da Razão Indolente” forte crítica ao conceito de razão instrumental. Crítico contumaz do neoliberalismo, elabora uma profunda revisão no conceito de razão, desde Kant até Milton Freedman, sem entretanto cair no discurso extremado do neomarxismo. Neste trabalho, busca-se responder ao questionamento: A ciência contemporânea está em crise?

PALAVRAS-CHAVE: Razão, Ciência, Razão Instrumental.

RESUMEN: Boaventura de Sousa Santos (2002) hace en "La Crítica de la Razón indolente" fuerte crítica al concepto de razón instrumental. Abierto crítico del neoliberalismo, produce una profunda revisión en el concepto de la razón, de Kant a Milton Freedman, pero sin caer en el discurso de la extrema neo-marxismo. En este trabajo, tratamos de responder a la pregunta: ¿La ciencia contemporánea está en crisis?
PALABRAS CLAVE: Razón, Ciencia, Razón Instrumental.

  1. 1.      INTRODUÇÃO: DO REGRESSO ÀS PERGUNTAS SIMPLES

Em 1750, aAcademia de Dijon fez um concurso sobre o tema: “O progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?” Em plena Revolução Industrial, a Academia esperava ouvir que a ciência era, sim, purificadora dos costumes. Entretanto Rousseau  (2013) trouxe em seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes” uma dura crítica ao avanço científico, apontando-o como o grande responsável pela corrupção moral e política da Europa, antecipando, assim, o pensamento de Nietzsche, quando este diz que Sócrates, ao inaugurar o racionalismo e questionar os valores tradicionais gregos, contribuía para a derrocada da religião, da estrutura social em prol de um individualismo inconseqüente. 

Esse racionalismo socrático teve seu auge com a Revolução Industrial e passou a criar um novo paradigma (ou senso comum): a de que a ciência moderna era a fonte de todo o saber e que sem ela o homem não conseguiria sobreviver.

Boaventura de Souza Santos (2002), entretanto, afirma que esse paradigma da ciência moderna está sendo substituído por outro. Qual? Por quê?  Eis um questionamento do autor: “como é que a ciência moderna, em vez de erradicar os riscos, as opacidades, as violências e as ignorâncias, que dantes eram associadas à pré-modernidade, está de facto (sic) a recriá-los numa forma hipermoderna?” (SANTOS, 2002, p. 58). É por isso que Boaventura afirma que durante muitos séculos o homem deixou de fazer perguntas simples, como as feitas por Rousseau (2013), e se deixou levar pelas ideologias da ciência moderna. No entanto, isso passou a mudar. Por quê? Antes de responder o porquê, o autor caracteriza a sociedade contemporânea: “o que mais nitidamente caracteriza a condição sócio-cultural deste fim de século é a absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, fruto da gestão reconstrutiva dos défices (sic) e dos excessos da modernidade confiada à ciência moderna e, em segundo lugar, ao direito moderno”  [g.m.] (SANTOS, 2002, p. 58)

 O autor coloca a sociedade sobre três pilares: o Estado (cuja grande ferramenta é o Direito), o Mercado (onde a regulação pelas grandes empresas transnacionais é a forma de controle) e a Comunidade (esquecida, desvalorizada e dominada pelas ideologias de que um mercado absolutamente liberal, um Estado mínimo e ciência poderão trazer a paz perpétua, descrita por Kant). O Neoliberalismo dominou as décadas de oitenta e noventa do século passado, épocas em que o pensamento de Boaventura foi mais difundido, pois este não concordava com as políticas neoliberais e via as universidades públicas como as grandes prisioneiras desse sistema, pois estavam impedidas de fazer pesquisa que mostrassem as falhas da ciência e do sistema capitalista como um todo, pois as verbas só iam para as pesquisas que gerassem lucro imediato.

Foi nesse contexto, por exemplo, que as políticas neoliberais de presidentes como FHC foram um duro choque nas universidades públicas que não se adaptassem ao modelo vigente. É bem verdade que o pensamento de Boaventura foi aceito nas décadas seguintes, basta ver que as políticas sociais e preocupadas com as universidades voltaram, ao menos, às pautas governamentais.

Assim, o pilar “Comunidade” foi deixado de lado, impedido de emancipar-se, de superar problemas como desemprego, fome, miséria etc., deixado de lado em prol de uma regulação econômica  onde o Estado, a Ciência e o Direito constituem-se em armas que impedem as classes menos favorecidas de enxergarem as ideologias dominantes.

Entretanto, repita-se a pergunta feita alhures: por que, repentinamente, esse paradigma (ou senso comum) vem sendo substituído (pelo novo senso comum)? E que novo senso comum é esse? Eis o tema do tópico seguinte.

2. A CRISE EPISTEMOLÓGICA DO PARADIGMA DOMINANTE

 

 Boaventura aqui distingue três traços principais dessa crise: “primeiro, que essa crise é não só profunda como é irreversível; segundo, que estamos a viver um período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará; terceiro, que os sinais nos permitem tão-só especular acerca do paradigma que emergirá deste período revolucionário, mas que, desde já, pode afirmar-se com segurança que colapsarão as distinções em que assenta o paradigma dominante a que aludi atrás.” (SANTOS, 2002, p. 68). Por mais prolixo que pareça, deve-se antes aludir para o conceito de crise: a ciência da Modernidade (iniciada ainda na Idade Média com Francis Bacon), que teve seu auge, segundo Wells (1972), com as várias revoluções industriais e chegou à contemporaneidade com a cibernética, a informática, a nanotecnologia passa a não ser o paradigma absoluto, perde espaço para outras formas de saberes da mesma maneira que o neoliberalismo perde espaço dentro de alguns países capitalistas.

As causas dessa crise, para o autor, são quatro, a saber:

a) a física de Einstein. Desde Newton, Copérnico e Galileu a ciência buscou princípios e leis universais e absolutas: a Mecânica de Newton provou que os corpos se atraem, que toda ação exige necessariamente uma reação, que tudo que há no espaço mantém uma lei lógica que pode ser entendida, medida e usada para o proveito humano. Einstein, todavia, quebra a espinha da física moderna da mesma forma que esta, com Copérnico, quebrara a espinha da física e teologia medievais. A física de Einstein é mais metafísica do que física, é um retorno aos pré-socráticos e também à Sofística, ou seja, para o pensador alemão, a noção de  matéria, da forma que a conhecemos, é uma ilusão; tudo, absolutamente tudo é pura energia, tudo pode ser fracionado, dividido e transformado em um nada absoluto, em energia pura. Era mais ou menos isso que, segundo Araújo (1993), Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Anximandro diziam sobre a essência do mundo. Por trás de tudo o que vemos há um fogo etéreo que é intocável, eterno, imutável e obriga o mundo a estar em constante mutação, diz Heráclito.  E = mc², eis a fórmula-chave de Einstein, e quer ela dizer que energia é sempre igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz no vácuo. E o que isso implica para a teoria da relatividade? Que a matéria, da forma como a vemos e entendemos, depende do tempo, espaço e velocidade, mudando conforme a alteração de um desses elementos. A matéria passa a ser algo que só pode ser entendida dentro de perspectivas diferentes. Esse relativismo pode levar a um ceticismo quanto à possibilidade de o homem atingir verdades absolutas. Esse pensamento de certa forma remete-se aos sofistas, pois estes simplesmente diziam que a verdade na está nas coisas em si mesmas, mas na linguagem, isto é, que tudo o que for dito de forma a convencer alguém e atingir tal objetivo, passa a ser de fato a “verdade”. E era isso que Sócrates tanto contestava na sofística, pois quando indagava o que é o homem, o que é o belo, o que são a verdade e a justiça, etc buscava mostrar que tudo tem uma essência que pode ser apreendida pela razão humana. As bases do racionalismo estavam lançadas. A física de Einstein, porém, deu um soco no estômago da pretensão racionalista (ou cientifica moderna) ao absoluto;

 b) A segunda causa é a mecânica quântica. Esta mostra o quanto a relatividade está presente na física, Bohr e Heisenberg “demonstraram que não é possível observar um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou.” (SANTOS, 2002, p. 69) Se um cientista tentar analisar como os elétrons se movimentam, a simples presença do microscópio a analisar os elétrons vai alterar a forma como estes se movimentam, pois para que o cientista veja tais movimentos é necessário energia luminosa, e esta provocará efeitos nos elétrons, acelerando ou retardando sua velocidade. Além disso, é impossível prever o sentido do movimento desses elétrons, e essa impossibilidade frustra a ciência, que tudo quer medir e chegar a uma conseqüência lógica irrefutável. Algo parecido ocorre com as ciências humanas, mais especificamente com a antropologia, pois é sabido que se um pesquisador analisar uma tribo que nunca teve contato com a civilização ocidental, alterará certamente a forma como tal tribo entende o mundo, seja por meio de indagações ou negações. A questão é que a antropologia entende e aceita até esse relativismo, sabendo que a cultura de um povo não pode ser idêntica a de outro, e que essa mudança é devido ao espaço e ao tempo. Para as ciências humanas, lidar com o relativismo é algo positivo, já para as ciências exatas, a coisa muda de figura drasticamente, afinal aceitar o relativismo é negarem-se a si mesmas;

c) A terceira causa é descrita pelo autor da seguinte forma: “o rigor da medição posto em causa pela mecânica quântica será ainda mais profundamente abalado se se questionar o rigor do veículo formal em que a medição é expressa, ou seja, o rigor da matemática.” (SANTOS, 2002, p. 69). A Matemática, assim como a escrita, surgiu como uma ferramenta para agilizar o comércio, tem, pois, sua origem na praticidade do cotidiano. Entretanto, desenvolveu-se tanto o ponto de tocar na Metafísica, pois já Pitágoras usava-a como algo místico, única capaz de descrever a essência do mundo. No início do século XX ela fundiu-se com a lógica aristotélica e criou uma linguagem que visava algo absoluto e universal, infalível. Entretanto, a Matemática ainda não conseguia dar conta de problemas como o porquê da infinitude dos números, afinal, como pode dentro de um conjunto de números, que por si só já são infinitos, haver vários subconjuntos, também infinitos?  Como medir o imensurável? No campo da linguagem lógico-matemática, o filósofo austríaco Wittengeinstein. Segundo Hussel (1967), é o maior exemplo dessa frustração da matemática. Engenheiro de formação, estudou filosofia com um dos maiores fenomenologistas, Edmond  Russel, e graças a este desenvolveu uma filosofia onde a linguagem matemática parecia assegurar que todos os problemas filosóficos, metafísicos, estéticos e literários de até então eram apenas  erros lógicos, e que para serem resolvidos devia-se  ir a fundo na origem, no momento em que surgiram, esmiuçar-lhes  e traduzi-los para o rigor da álgebra.  Na fase mais madura de sua vida, o filósofo austríaco acabou por perceber que  a linguagem humana não pode ser restringir à um só tipo de expressão, como há também problemas que fogem totalmente da alçada da lógica e da matemática. Ora, a Matemática, sendo o grande pilar da Ciência moderna, vê-se impossibilitada  de fazer aquilo que sua essência lhe impõe, encontrar respostas para tudo de forma exata. Isso, para Boaventura (2002),  tira a credibilidade do paradigma comum a capitalista e comunistas, liberais e conservadores, ou seja, a crença na Razão como forma única de saber;

d) A quarta causa “é constituída pelos progressos do conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia nos últimos trinta anos.” (SANTOS, 2002, p. 70). A exemplo disso, cita-se aqui a questão da bioengenharia. Desde a clonagem da ovelha Dolly, de acordo com Graieb (2013), na década de noventa do século XX, criou-se a euforia de que a vida poderia ser construídaem laboratório. Entretanto, quase duas décadas depois, o que se constata é que a vida não pode surgir se não for de uma outra vida.  A clonagem foi um baque duríssimo na religião e na metafísica, mas hoje já não causa tanto temor, pois o máximo que as ciências biológicas podem fazer é extrair o núcleo de uma célula viva e transplantá-lo para uma célula morta e sem núcleo. Ou seja, não podem criar a vida, podem apenas recriá-la.  As perguntas  o que é a vida? Como ela surge?  De onde vimos e para onde vamos?, a ciência se vê totalmente impossibilitada de responder. Da mesma forma que a Filosofia, fica perplexa ante tais problemas.   

3.CONSIDERAÇOES FINAIS: O PARADIGMA EMERGENTE

Se a ciência não consegue mais garantir o domínio ideológico sobre as pessoas, qual o paradigma que surge então? Acredita-se aqui que a resposta dada por Boaventura se aproxima muito da corrente marxista dentro da Igreja Católica, ou seja , da Teologia da Libertação, que tem no Brasil representantes como Frei Beto e Leonardo Boff, por exemplo. Boaventura diz:  “A configuração do novo paradigma que se anuncia no horizonte só pode obter-se por via especulativa (...)”, que é o “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Com esta designação, quero significar que a natureza da revolução cientifica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente).” (SANTOS, 2002, p.74). Assim, o novo paradigma deve se preocupar tanto com as conseqüências da evolução científica,  quando cria uma  bomba nuclear, como também como os problemas sociais que assolam a humanidade, como a fome e a miséria na África. O que a ciência pode fazer para resolver tal problema? O que Boaventura propõe é mudar a ênfase dada ao Estado e ao Mercado (no tripé Estado-Mercado-Comunidade) para a Comunidade. Tanto a ciência quanto o Estado e o Direito trabalham como reguladores do homem, naquilo que Foucault chama de panóptico: o poder não emana de cima para baixo apenas, mas de forma horizontal, todos observam todos, e   quem não se enquadra naquilo que é  dito pelo Mercado, pelo Estado e pelo Direito é execrado, não necessariamente apenas por meio de violência física:  a  própria moda seria  uma forma  de impor valores, e quem os impõe? Muitas das vezes os próprios usuários são os fiscais que criticam, riem e debocham daquilo que não se enquadra na nova forma de expressão. Aí está um exemplo da microfísica do poder. Boaventura diz que esse poder micro está mudando devido à crise da ciência moderna, do Estado liberal e do Direito positivo, e que parece se voltar para os reais problemas sociais da comunidade, sendo a  fraternidade e a solidariedade os pilares  desse novo paradigma.    

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 2006.

ARAÚJO. Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da Ciência. Curitiba, PR, UFPR, 1993.

 

GRAIEB, Carlos. Uma locomotiva da globalização. VEJA on-line, edição 1891, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em <www.veja-online.com.br>. Último acesso em 12.03.2013.

 

ROUSSEAU, Jean Jacques. O discurso sobre as ciências e as artes. E-book. Fonte digital: www.jahr.org. Último acesso: 24.08.2013.

RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Ed. Nacional. São Paulo, 1967.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Da ciência moderna ao novo senso comum. In: A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.  4ª ed. São Paulo. Ed. Cortez. 2002.                            

 

WELLS, H. G. História universal. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1972.