"Ensaio sobre a cegueira" é um belíssimo desconforto analítico, uma cesta de especiarias humanas reveladas em "situações limite", uma explosão - não iluminada - dentro de estranhas reflexões.
Julianne Moore está elegantemente indispensável e nos presenteia com a generosidade da qual o filme necessita, principal antídoto para tal "cegueira" coletiva.
Já o ator mexicano Gael Garcia Bernal e sua atuação talentosamente debochada e repugnante, não foi feliz ao misturar a deficiência visual de Stevie Wonder com a trama, e seu "caco" de humor negro onerou a produção em 50 mil dólares pela liberação da canção.

O texto original, assinado pelo habitante das Ilhas Canárias e Nobel de literatura José Saramago, pretende revelar a abstração individualista, doença da atualidade.
O filme trabalha com emoções e valores de sabor e cheiro muito fortes para estarem ao mesmo tempo, no mesmo lugar. A tela oferece um possível espelhamento futuro, além de pensamentos a respeito de dignidade, barbárie, sofrimento, amor, oportunismo, luxúria, miséria, compreensão, necessidade, suicídio, frieza, caos, violência, depravação e instinto.
Em racionados e agradáveis momentos, encontramos o valor das coisas que não mais valorizamos, como a benevolência da chuva, notas que escapam de uma escola de música, a proteção na voz de um amigo e o encontro pela simples celebração do encontro.
De alguma forma, o diretor brasileiro Fernando Meirelles nos auxilia a tentar o mergulho nesse insólito auto-retrato, onde a conscientização está presente em tempo integral.
Se a idéia era fazer pensar, certamente, essa produção que uniu Canadá, Japão e Brasil, obteve sucesso, mesmo depois de tantos cortes e mudanças "sugeridos" pela Miramax de Nova York.
Dói um pouco, mas se - a partir de agora - conseguirmos praticar a última cena do filme, teremos um encontro com nós mesmos.

Autor: José Neto