Se me Dédalo

O quarto for

Aprecio o surgir d’aurora

Na clara noite

Em que devasso-me

Absorto

Na especialidade do dia

Do regresso

Dos meus importantes.

Cedo-me à ansiedade

Quando ausência fez saudade

Decompondo a tacidez

Da diuturna madrugada.

Não indolente

Tento alguns pertences

À porta do quarto

Apanhar

Antes, porém

A luz me sobrevém

Pelo óculos

A melhor enxergar

Mas... nada vejo

Que não... o inane.

Preparo café simples

Pão, manteiga... e pó

Que, da mesa, aparto

Ao novo dia.

Há cadeira vazia

O silêncio de anos

Uma década de solidão

É quase coma.

Um suicídio latente d’alma

E me calo

Ofertando à boca

O que jaz frio

Da mesa... limpo

Os resquícios

Quase hipóteses...

Promiscuo vulto

No fortuito outono

De cada dia.

A graça... dou-me

Em banho hábil

Que não sinto.

Não há xampu

Para quem omite

De àlma lavar

Mas ainda há

Do sabão

Do mês passado

O que, puindo

Iliba-nos

O ufano espírito

E pele frágil

Pela apatia... corroída

Do alívio que limpa

Por mais matar.

Enxugo-me

O corpo

Na camisa de ontem

Visto o que de veste

Serve-me

À carne falsa.

Por sobre o corpo

A calça

Mas não a branca camisa

Deste dia que celebra

Meu oitavo nascimento.

Não ainda

Que a família... vêm.

Um corte... pede

O cabelo.

Na gaveta da sala

Não há tostão algum

Nem debaixo da cama

Nem na lata da cozinha

Na meia... não.

Òfício ofendo

A tesoura... apanho

E dou-me o luxo do corte

Anos oitenta

Quinta, às onze

E lua plena.

E, por instantes

Diuturno átimo

D’angústia feita

Contemplo ao lado

O quarto

Não hoje abrirei

Que hoje é de júbilo... o dia

Do reencontro que exala

A vã lamúria

Da espera

Dos filhos... o abraço

O repulsivo ósculo

Da bela minha esposa

Que me quase um não delírio

Fora

Terei o termo

À compunção

O alentad’olhar de irmão

E o cobiçado perdão de mãe

Que me garante a paz

Do pai... não sei.

Não almoço

Muito embora seja o tempo

A pressa do corpo

E tua fome...

Era apenas hábito

E prioridade do luxo

Da casa... ausente

O feijão cozido

Arroz solto e branco

O santo trigo

Ou caruncho destes

Ao menos...

Mas nada há

Para quem divaga

Exceto... o mesmo pó

Da carne quando só

Por entre o paletó

À espera de mim...

Pó na pia

No fogão quatro bocas

E máquina de lavar...

Pó se me penso

Do corpo a que pertenço

Nas vazias vis gavetas

Do meu cético senso...

E na dispensa... da fome

N’ausência do nome

Pó por sobre a cama

Às ruínas de quem ama...

E no divã

Cinzas... não mais que pó.

Pó só não há do quadro

Que esse é de láudano

Esvaindo-se a lógica

No esmaecer

Do único tom.

A placidez apavora:

Ora... o quarto

Ora... o horizonte

Inalterável

Desta vida

Em forma fútil

Que comigo... padece.

Ora... a saudade

Delatando-me pelo fado

Na mais perpétua aflição

Que me aclama... a voz

Que do quarto... vem

Vou... volto... fico

As unhas mordo

Com cautela

Que alguém pode

Os arcanos desta vida

Descobrir

Nos ensejos póstumos

À morte da insistência:

Filho não veio

Nem esposa

Nem mulher severa

Ou gentilmente meretriz.

O mendigo sim... entrou.

Deitou. Dormiu.

Vomitou na camisa branca

E paletó por sobre este

Sepultado

Naquela mesma aurora.

Contemplo o turvo quarto

Quarto que há muito

Abrir detenho-me

É quarto sórdido

É cheio de terra... não pó

E terra de muito tempo

Lembranças aduz

D’alma lúgubre

Deste vil... e corpo... e só.

Vem do quarto

Òdor da casa fétida

A dor maior da existência:

Um féretro

Rosa negra

Vel’acesa

E defunto.

O segredo pelo qual

Valeu à pena

Mentir...

O tormento das obras

Àlma exposta

Ao fracasso

De um velório indigno

A minha efígie... finda-se

Aquele quarto

Me chama.

Felizes são os vermes

Cuja vida lhes permite

Nutrir apenas um corpo

E nunca um sonho...

 

Autor: David Guarniery

Idade: 21 anos

Início: 18:00

Término: 18:20

Tempo Gasto: 20 minutos

Dia: Domingo

Data: 22 de julho de 2007

Classificação: Poética Lúgubre

Obra: 003

In Memoriam:

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Brasil/ Paraná/ Cambé