AURORA: REFLEXÕES SOBRE PRECONCEITOS MORAIS

 

0. Nesta obra "Aurora. Pensamentos sobre os preconceitos morais" [Morgenröthe. Gedanken über die moralischen Vorurtheile] (1881), discutem-se temas como a moral do sofrimento voluntário e as ressonâncias do cristianismo na moral.

Com este livro começa a minha campanha contra a 'moral'. Não que ele tenha o menor cheiro de pólvora -- nele se perceberão odores inteiramente outros, e bem mais agradáveis, desde que se tenha alguma finura nas narinas. (...) [EH/EH, Aurora, §1]
Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência, um 'grande meio-dia' em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote, e coloque a questão do por quê?, do para quê? pela primeira vez como 'um todo' --, essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade 'não' segue por si o caminho reto, que 'não' é regida divinamente, que na verdade, sob as suas mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o instinto de 'décadence' que governou sedutoramente. (...) [EH/EH, Aurora, §2]

1. Nietzsche preocupa-se bastante em apresentar o que há de específico e de mais relevante em sua obra Aurora. Dois momentos são decisivos para a autocompreensão do seu autor: o prefácio a segunda edição (novembro de 1886) e o comentário de Ecce Homo (1888). Apesar de mais breve, esse último é bem elucidativo para o sentido da obra. O livro de 1881 seria o início de sua campanha contra 'a moral'. Sem dúvida, a moral é o tema central de Aurora. Entretanto, não é justo afirmar que a luta contra a moral tenha 'iniciado' com Aurora. Essa luta já foi travada anteriormente, nos dois volumes de Humano, demasiado humano, assim como nos escritos preparatórios e fragmentos póstumos de 1876 a 1879. É preciso, antes de mais nada, afastar as preocupações próprias de Nietzsche, de 1886 a 1888, se quisermos compreender o sentido das tarefas próprias de Aurora, em seu contexto singular de elaboração, em 1880 e 1881. Nesse sentido, temos de relativizar a afirmação do Ecce Homo, de que Aurora é o livro que 'diz Sim' (a tudo o que é proibido, é bem verdade!). Além de afirmativo, o livro de 1881 seria profundo, e, simultaneamente, 'claro e benévolo'. A tarefa de preparar um 'grande meio-dia para a humanidade', contudo, surge com a 'visão' do eterno retorno do mesmo, em agosto de 1881, depois da publicação de Aurora. Em sua pretensa obra afirmativa, a despeito das considerações tardias de seu autor, há vários ataques à moral, e várias palavras negativas. Como é enfatizado o 'pessimismo alemão', no prefácio de 1886 à segunda edição!

A moral do sofrimento voluntário. -- Para homens que vivem no estado de guerra daquelas pequenas comunidades constantemente em perigo, onde reina a mais rigorosa eticidade, qual é o prazer mais alto? Portanto, para almas vigorosas, sequiosas de vingança, hostis, pérfidas, desconfiadas, prontas para o mais terrível e endurecidas pela privação e pela eticidade? O prazer da 'crueldade': assim como também, nesses estados, é tido como 'virtude' de uma tal alma ser inventiva e insaciável na crueldade. Com o ato do cruel a comunidade se reanima e por uma vez afasta de si a treva do constante temor e cautela. A crueldade faz parte da mais antiga alegria festiva da humanidade. Consequentemente, pensam-se também os deuses reanimados e de ânimo festivo quando se oferece a eles a visão da crueldade -- e assim se esgueira no mundo a representação de que o 'sofrimento voluntário', o martírio espontaneamente escolhido, tem um bom sentido e valor. Pouco a pouco o costume forma na comunidade uma praxe conforme a essa representação: de agora em diante, há mais desconfiança diante de todo bem-estar extravagante e mais confiança diante de todos os estados graves e dolorosos; pensa-se: bem pode ser que os deuses olhem para nós com inclemência em virtude da felicidade e com clemência em virtude de nosso sofrimento -- não, acaso, com compaixão! Pois a compaixão passa por desprezível e indigna de uma alma forte, terrível; -- mas com clemência, porque com isso são deleitados e ficam de bom humor: pois dá prazer ao cruel ser excitado ao extremo no sentimento de potência. E assim entra no conceito do "homem mais ético" da comunidade a virtude do sofrimento frequente, da privação, da maneira dura de viver, da mortificação cruel -- 'não', para dizê-lo sempre de novo, como meio de disciplina, de autodomínio, de desejo de felicidade individual, mas como uma virtude que dá à comunidade, junto aos deuses maus, um bom odor e, como um constante sacrifício de reconciliação, exala dos altares até eles. Todos aqueles guias espirituais dos povos, que foram capazes de mover algo na preguiçosa lama fecunda de seus costumes, precisaram, além do desvario, também do martírio voluntário, para ganhar a crença -- e, mais que tudo e antes de tudo, como sempre, a crença em si mesmos! Quanto mais, precisamente, seu espírito ia por novas trilhas e consequentemente era torturado por remorsos de consciência e temores, mais cruelmente eles se enfureciam contra sua própria carne, seus próprios apetites e sua própria saúde -- como para ofercer à divindade um equivalente em prazer, caso ela viesse a se irritar por causa dos usos neglicenciados e dos novos alvos. Não se acredite depressa demais que agora nos tenhamos libertado totalmente de uma tal lógica do sentimento! As almas mais heróicas podem se interrogar sobre isso. Cada mínimo passo dado no campo do pensamento livre, da vida moldada em uma forma pessoal, foi desde sempre conquistado com martírios espirituais e corporais: não somente o andar para a frente, não! mas antes de tudo o andar, o movimento, a alteração, precisaram ter seus inúmeros mártíres, através de longos milênios que buscaram caminhos e assentaram fundamentos, nos quais não se pensa, sem dúvida, quando se fala, como de hábito, em "história universal", esse retalho ridiculamente pequeno da história humana; e mesmo nessa assim chamada história universal, que no fundo é um alarido em torno das últimas novidades, não há propriamente nenhum tema mais importante do que a antiquíssima tragédia dos mártires 'que quiseram mover o pântano'. Nada foi comprado mais caro do que nesse pouco de razão humana e de sentimento de liberdade que agora constitui nosso orgulho. Mas é esse orgulho que nos torna quase impossível sentir afinidade com aqueles descomunais lances de tempo da "eticidade do costume", que precedem a "história universal" como 'história básica, efetiva e decisiva, que estabeleceu o caráter da humanidade': quando o sofrimento valia como virtude, a crueldade como virtude, o disfarce como virtude, a vingança como virtude, a negação da razão como virtude, enquanto o bem-estar valia como perigo, a avidez de saber como perigo, a paz como perigo, a compaixão como perigo, o receber compaixão como afronta, o trabalho como afronta, o desvario como divindade, a modificação como o não-ético e grávido de corrupção! -- Pensais que tudo isso se modificou e que com a humanidade deve ter mudado de caráter? Ou, conhecedores dos homens, aprendei a vos conhecer melhor! [M/A, §18]

2. No Ecce Homo, Nietzsche ataca a moral da 'décadence', logo depois de dizer que não há nenhuma postura ofensiva, passando a valorizar a fisiologia para combater a ruína da humanidade. No prefácio de 1886, a ênfase é posta na profundiade do 'ser subterrâneo', que escava no passado 'obscuro' da moral humana. Nietzsche enfatiza que tratou a moral como problema, expõe seu ceticismo em relação à moral, à ética de Kant, para depois afirmar que esse livro 'é pessimista até moral adentro'. No prólogo, Nietzsche chega até mesmo a afirmar que os alemães Kant, Hegel, Lutero e 'ele próprio' seriam pessimistas, até mesmo em relação à lógica. Mas, é em companhia dos imoralistas e dos ateus, herdeiros de uma vontade pessimista, que se realiza a "autosupressão da moral" [die Selbst-Aufhebung der Moral]. A análise da relação dos alemães com a moral tem como foco o caráter categórico dos imperativos, principalmente aos modos como Lutero e Kant propõem que "tem de" haver no homem algo em que ele possa confiar e obedecer incondicionalmente. O filósofo pessimista Schopenhauer teria ficado no meio do caminho. E o próprio Nietzsche, em seu livro "claro e benévolo", fala também de si mesmo: quando é forçado à solidão, o alemão obedece a si, torna-se profundo e temerári; ele eleva-se "acima da moral"; é preciso que ele profundo e temerário; ele eleva-se "acima da moral"; é preciso que ele comande algo em si ou nos outros. O apátrida Nietzsche, com olhar "mais que asiático", com "calma e contemplatividade asiática" dispõe-se a abalar os fundamentos da moral europeia. Ele já ouvia rumores, na época de elaboração de "Aurora, do nihilismo russo-europeu. 

O primeiro cristão. -- (...) Paulo havia-se tornado, ao mesmo tempo, o fanático defensor e guardião de honra desse Deus e de sua lei, e constantemente em combate e em guarda contra os que a transgridiam e a punham em dúvida, duro e mau contra eles e propenso ao extremo a castigar. E então experimentou em si que ele -- ardoroso, sensual, melancólico, maligno no ódio como era -- não 'podia' ele próprio cumprir a lei, e até mesmo, o que lhe parecia o mais estranho: que sua extravagante sede de dominaçãoera constantemente incitada a transgredi-la e que ele 'tinha de' abrir mão desse aguilhão. É efetivamente a 'carnalidade' que sempre faz dele de novo um transgressor? E não seria antes, por trás dela, como ele mais tarde suspeitou, a própria lei que 'tem de' se demonstrar constantemente como impossível de cumprir e induz com irresistível feitiço à transgressão? Mas naquele tempo ele ainda não tinha essa saída. Muita coisa pesava-lhe na consciência -- ele deixa entrever inimizade, assassínio, feitiçaria, idolatria, indisciplina, embriaguez e gosto por festins extravagantes -- e, por mais que tentasse desafogar essa consciência, e mais ainda sua sede de dominação, com o extremo fanatismo na veneração e defesa da lei: vinham instantes em que ele dizia: "É tudo em vão! o martírio da lei não cumprida não pode ser superado". Um sentimento semelhante pode ter experimentado Lutero, quando quis tornar-se em seu claustro o homem perfeito do ideal eclesiástico: à semelhança de Lutero, que um dia começou a odiar o ideal eclesiástico e o Papa e os santos e o clero inteiro, com um ódio verdadeiramente mortal, quanto menos podia confessá-lo a si mesmo, foi assim que aconteceu com Paulo. A lei era a cruz a que se sentia pregado: como ele a odiava! como lhe tinha rancor! como procurava por toda parte um meio para aniquilá-la -- não mais cumpri-la, quanto à sua pessoa! E afinal iluminou-o o pensamento salvador, ao mesmo tempo que uma visão, como não poderia ser de outro modo para esse epilético: para ele, o furioso zelador da lei, que no íntimo estava mortalmente cansado dela, apareceu em uma rua solitária aquele Cristo, com o rosto irradiando a luz de Deus, e Paulo ouviu as palavras: "Por que me persegues?" Mas o essencial, que ali ocorreu, foi isto: sua 'cabeça' de repente ficou clara: "é irracional" -- ele se havia dito -- "perseguir precisamente esse Cristo! Aqui está a saída, aqui está a vingança perfeita, é aqui e em nenhuma outra parte que tenho e mantenho o 'aniquilador da lei!" O doente da altivez torturada sente-se de um só lance restabelecido, o desespero moral é como que varrido, pois a moral foi varrida, aniquilada -- ou seja, 'cumprida', ali na cruz! Até então aquela 'morte' vergonhosa lhe valera como argumento capital contra a "messianidade" de que falavam os adeptos da nova doutrina: e se, no entanto, ela fosse 'necessária', para 'abolir' da lei! -- As consequências descomunais dessa inspiração, dessa solução do enigma, rodopiam diante de seu olhar, ele se torna de uma só vez o mais feliz dos homens -- o destino dos judeus, não, de todos os homens, parece-lhe ligado a essa inspiração de sua súbita iluminação, ele tem o pensamento dos pensamentos, a chave das chaves, a luz das luzes; em torno dele próprio gira daí em diante a história! Pois de agora em diante ele é o mestre do aniquilamento da lei! Morrer para o mal -- isto significa morrer também para a lei; estar na carne -- isto significa estar também na lei! Tornado 'um' com Cristo -- isto significa tornado, com ele, também aniquilador da lei; morto com ele -- isto significa morto também para a lei! Mesmo se ainda fosse possível pecar, não é mais possível pecar contra a lei, "estou fora dela"."Se eu quisesse agora retomar a lei e submeter-me a ela, eu faria de Cristo o cúmplice do pecado"; pois a lei estava ai para que se pecasse, ela sempre suscitava o pecado, assim com humores ácidos suscitam a doença; Deus não teria podido nunca decretar a morte de Cristo se em geral, sem essa morte, tivesse sido possível um cumprimento da lei; agora não somente foi vencida toda a culpa, mas a culpa em si foi suprimida; agora a lei está morta, agora a carnalidade, em que ela reside, está morta -- ou pelo menos constantemente à morte, como que em decomposição. Pouco tempo ainda em meio a essa decomposição! -- tal é o destino do cristão, antes que ele, tornado 'um' com Cristo, ressuscite com Cristo, tome parte com Cristo no esplendor divino e se torne "filho de Deus" igual a Cristo. -- Com isso a embriaguez de Paulo está em seu apogeu, e igualmente a impertinência de sua alma -- com o pensamento do se tornar-um, toda vergonha, toda subordinação, todo limite, são retirados dela, e a vontade irrefreada da sede de dominação se revela como um antecipado regalar-se em esplendor 'divinos': -- Este é o 'primeiro cristão', o inventor do cristianismo! Até então havia apenas alguns sectários judeus. -- [M/A, §68]

3. O final de Aurora não corrobora essa pretensão desmedida de Nietzsche: a referência indireta ao pessimista (italiano!) Leopardi nos faz pensar que esse "nós" do final não é o mesmo dos escritos posteriores. Atentando-nos à emergência dos "aeronautas do espírito", sua incerteza quanto ao destino a seguir: navegar para onde declina o sol da humanidade (o Ocidente), "ou? --". A obra abre-se a um futuro indefinido, acerca do qual 'talvez' alguém possa afirmar que os aeronautas do espírito pretendiam chegar às Índias, mas seu destino seria naufragar ao infinito. Ou rumo a novos mundos e a novas auroras!

Há duas espécies de negadores da eticidade. -- "Negar a eticidade" -- isto pode significar 'primeiramente': negar que os motivos éticos que os homens 'alegam' os tenham efetivamente impelido a suas ações -- é, portanto, a afirmação de que a eticidade impelido a suas ações -- é, portanto, a afirmação de que a eticidade consiste em palavras e faz parte da grosseria e refinada impostura (em especial auto-impostura) dos homens e, talvez mais ainda, precisamente nos mais célebres por sua virtude. 'Em seguida', pode significar: negar que os juízos éticos repousam sobre verdades. Aqui se concede que são efetivamente motivos do agir, mas que dessa maneira são 'erros' que, como fundamento de todo julgamento ético, impelem os homens a suas ações. Este é 'meu' ponto de vista: no entanto, eu seria o último a deixar de reconhecer que 'em muitos casos' uma refinada desconfiança à maneira do primeiro ponto de vista, portanto no espírito de La Rochefoucauld, também está no direito e, em todo caso, é da mais alta utilidade geral. Nego, pois a eticidade como nego a alquimia, isto é, nego seus pressupostos: 'não', porém, que houve alquimistas que acreditavam nesses pressupostos e agiam por eles. -- Nego também a ineticidade: 'não' que inúmeros homens se sintam não-éticos, mas que haja um fundamento na 'verdade' para sentir-se assim. 'Não' nego, como se entende por si mesmo -- pressuposto que não sou nenhum parvo --, que muitas ações que se chamam não-éticas devam ser evitadas, combatidas; do mesmo modo, que muitas que se chamam éticas devam ser feitas e propiciadas, mas penso: em um como no outro caso, 'por outros fundamentos do que até agora'. Temos de aprender a 'desaprender', -- para afinal, talvez muito tarde, alcançar ainda mais: 'mudar de sentir'. [M/A, §103]

4. A epígrafe da obra ("Há tantas auroras que não brilharam ainda"), do Rigveda, pode ser enganosa, se julgarmos que a obra foi desde sempre pensada a partir dela. Lembremos que o primeiro título mencionado foi "L'Ombra di Venezia", das anotações de Veneza (março -- julho de 1880). Em junho de 1880, Nietzsche propôs o título "A Relha do Arado" (Die Pfugschar). Ainda em 25 de janeiro de 1881, quando Nietzsche envia a Peter Gast o manuscrito de Aurora. Pensamentos sobre pré-juízos morais (Die Pflugschar. Gedanken über die moralischen Vorurtheile). Por sugestão de Peter Gast, Nietzsche mudou o título para "Uma aurora" (Eine Morgenröthe). O final da obra é muito evasivo e enigmático, se quisermos pensar ou imaginar para que "aurora" ou "auroras" o autor acenava. 

Relação dos alemães com a moral. -- (...) -- E se um povo dessa espécie se ocupa com moral: qual será precisamente a moral que o satisfaça? Seguramente quererá em primeiro lugar que a propensão de seu coração à obediência apareça nela idealizada. "O homem tem de ser algo, a que possa 'obedecer incondicionalmente' -- este é um sentimento alemão, uma coerência alemã: defrontamo-nos com ela no fundamento de todas as doutrinas morais alemãs. Que diferente é a impressão, quando nos pomos diante de toda a moral antiga! Todos esses pensadores gregos, por múltipla que chegue a nós sua imagem, parecem, como moralistas, equiparar-se ao mestre de ginástica que fala a um jovem: 'Vem! Segue-me! Entrega-te à minha disciplina! Talvez a leves tão alto, a ponto de diante de todos os helenos conquistadores um prêmio com ela'. Destaque pessoal -- tal é a virtude antiga. Submeter-se, seguir, publicamente ou às escondidas -- isso é virtude alemã. -- Muito antes de Kant e de seu imperativo categórico, Lutero havia dito, a partir do mesmo sentimento: tem de haver um ser em que o homem possa confiar incondicionalmente -- era essa sua 'prova de Deus', ele queria, de modo mais grosseiro e vulgar que Kant, que se obedecesse incondicionalmente, não a um conceito, mas a uma pessoa; e mesmo Kant, em sua, só fez sua incursão pela moral para chegar até a 'obediência à pessoa': tal é justamente o culto dos alemães, quanto menos de culto lhes restou na religião. Gregos e romanos sentiam diferente e teriam zombado de um tal "'tem de' haver um ser": faz parte de sua meridional liberdade de sentimento defender-se da "confiança incondicionada" e conservar no último recôndito do coração um pequeno ceticismo contra tudo e contra todos, seja deus ou homem ou conceito. Mesmo o antigo filósofo! 'Nil admirari' -- nesta proposição ele vê a filosofia. E um alemão, ou seja, Schopenhauer, vai tão longe no sentido oposto a ponto de dizer: 'admirari id est philosophari'. -- Mas, e se alguma vez o alemão, como acontece, chega ao estado em que é apto a 'grandes coisas'? Se chega a hora da 'exceção', a hora da desobediência? -- Ñão acredito que Schopenhauer tenha razão ao dizer que o único privilégio dos alemães sobre outros povos é que entre eles há mais ateus do que em qualquer outra parte -- mas 'isto' eu sei: se o alemão chega ao estado em que é apto a grandes coisas, 'ele se eleva toda vez acima da moral'! E como não o faria? Agora tem de fazer algo novo, ou seja, mandar -- em si e em outros! O mando, porém, sua moral alemã não lhe ensinou! O mandar está esquecido nele! [M/A, §207]

5. Aurora é um livro que marca uma decisiva transição no pensamento de Nietzsche. A forma aforística de "Humano, demasiado humano é mantida. Se Voltaire mereceu a epígrafe de "Humano, Napoleão ocupa um lugar importante em "Aurora, na análise do 'sentimento de potência' (das Gefühl der Macht). Lord Byron, Stendhal, Emerson, Spencer, Heine, Montaigne, Mérimée, Mill (e seus comentários à obra de A. Comte) e Pascal são as principais leituras de 1880 e do início de 1881. É instigante que Spencer sequer é citado na obra de 1881, embora tenha sido tão importante para a nova análise do medo e da crueldade. Os estudos de antropologia e etnologia (de Lubbock e Virchow, que foram determinantes na época de "Humano) são agora desenvolvidos com um vivo interesse a partir da obra de Spencer, com auxílio da fisiologia (K. G. Semper). Mais significativo ainda é que Paul Rée, o principal amigo e interlocutor dessa época, não é mencionado explicitamente na obra, apesar de ser uma fonte importante, no que se refere à psicologia moral. Temos de apontar, no entanto, para o progressivo afastamento do filósofo solitário em relação a Rée, como transparece em anotações do final de agosto de 1881, com a recusa da visita do amigo, para concentrar-se no trabalho solitário.

Transmutação dos deveres. -- Quando o dever deixa de ser custoso, quando depois de longo exercício ele se transforma em alegre inclinação e em necessidade, os direitos de outros, aos quais se referem nossos deveres, agora nossas inclinações, se tornam algo outro: ou seja, ocasiões de sensações agradáveis para nós. O outro, em virtude de seus direitos, torna se então digno de amor (em vez de digno de honra ou temível como antes). Procuramos nosso 'prazer', quando agora reconhecemos e entretemos o domínio de sua potência. Quando os quietistas não sentiam mais seu cristianismo como um fardo e em Deus só encontravam seu prazer, adotaram sem lema "tudo pela honra de Deus!": o que quer que ainda fizessem nesse sentido não era mais nenhum sacrifício; significava o mesmo que "tudo por nosso contentamento!". Exigir que o dever seja 'sempre' algo de custoso -- como o faz Kant -- significa exigir que ele nunca se torne hábito e costume: nessa exigência reside um pequeno resíduo de crueldade ascética. [M/A, §339]

6. Até o início de 1882, os escritos para a obra que veio a se chamar A gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft), eram pensados como continuação de Aurora. As qualidades dessa última seriam ainda mais destacadas na 'gaya cienza'. Nietzsche aborda em "Aurora "os processos fisiológicos desconhecidos", destaca o "fenômeno 'fisiológico'" oculto nos preconceitos morais. Temos de ter em mente que o filósofo solitário valoriza o fisionomia e as demais ciências para propor novas "leis da vida e do agir". É o cerne da filosofia do espírito livre (die Freigeisterei), na qual se reverbera a nova paixão, a paixão do conhecimento. Os lampejos dos novos pensamentos devem ser "dosados de modo alquímico", para usar uma metáfora de Colli. Apesar de anunciar a "Grande política", de criticar a cultura, a sociedade, a religião e a arte modernas, a análise do "sentimento de potência" é desenvolvida no silêncio, na valorização da 'vita contemplativa'. A noção de valor (Weith) é central em Aurora, em relação aos impulsos. O homem se denomina "bom" quando está de posse do "sentimento de potência". Nietzsche analisa a crueldade ascética nos homens religiosos, nos artistas, filósofos e "pensadores e trabalhadores científicos". A própria ciência seria uma paixão ascética do espírito livre, na renúncia e na busca de si. É preciso criticar a moral na religião (cristianismo), na arte (Wagner) e também nas filosofias de Kant e de Schopenhauer. Com isso, Nietzsche pretende ir além da moral do dever e da compaixão. O novo Colombo descobre um 'novo' mundo interior, o mundo da luta dos im´pulsos. Nesse sentido, Nietzsche opera apenas no âmbito das realidades fisiológicas. Os impulsos lutam entre si: com isso, ele não pretende simplesmente afirmar a veemência dos impulsos. Nesse ensaio "pré-genealógico", não há ainda um pensamento acabado da "autorregulação dos impulsos". A "lógica imanente dos impulsos", para utilizar uma expressão de Blaise Benoit, não é bem desenvolvida metodologicamente, visto que as análises históricas e psicológicas dos sentimentos morais não são ainda bem articuladas com a fisiopsicologia dos impulsos humanos, e sua aspiração a mais potência. Os estudos das origens e desenvolvimentos da moral são decisivas para a construção do sentido ético do indivíduo singular (der Einzelne), se entendermos "ética" a partir do sentimento de potência. O estudo do caso Napoleão evidencia que a "essência da moral" está no sentimento de potência. 

Como se faz filosofia agora. -- Noto bem: nossos jovens, mulheres e artistas filosofantes reclamam agora, da filosofia, precisamente 'o contrário' daquilo que os gregos receberam dela! Quem não ouve o constante clamor de júbilo que perpassa por toda fala e réplica de um diálogo platônico, o júbilo pela nova invenção do pensamento 'racional', o que entende de Platão, o que entende da antiga filosofia? Naquele tempo as almas se enchiam de embriaguez quando era praticado o jogo rigoroso e sóbrio do conceito, da universalização, refutação, estreitamento -- daquela embriaguez que talvez tenham conhecido também os antigos, grandes, rigorosos e sóbrios contraponistas da música. Naquele tempo, na Grécia, tinha-se ainda sobre a língua o outro gosto, mais antigo e outrora todo-poderoso: e contra ele de novo se destacava tão feiticeiramente, que da dialética, da 'arte divina', se contava e balbuciava como em delírio amoroso. O antigo, porém, era o pensar sob o anátema da eticidade, para o qual havia somente juízos estabelecidos, fatos estabelecidos, e nenhum fundamento senão os da autoridade: de tal modo que pensar era um 'redizer' e todo prazer do dizer e da conversação tinha de estar na 'forma'. (Por toda parte, onde o conteúdo é pensado como eterno e universalmente válido, só há 'um' grande feitiço: o da forma em mutação, isto é, o da moda. O grego, também nos poetas, desde os tempos de Homero, e mais tarde nos plásticos, não faria da originalidade, mas de seu reverso.) Foi Sócrates quem descobriu o feitiço oposto, o da causa e efeito, do fundamento e consequência: e nós, homens modernos, estamos tão habituados à necessidade da lógica e educados para ela; que a temos sobre a língua como o gosto normal e, como tal, ela há de repugnar aos ávidos e presunçosos. O que se destaca sobre ela os enleva: sua mais refinada ambição gostaria até demais de fazer acreditar que suas almas são exceções, não seres dialéticos e racionais, mas -- por exemplo, 'seres intuitivos', dotados de 'sentido interno' ou de 'intuição intelectual'. Mas antes de tudo querem ser 'naturezas artísticas', com um gênio na cabeça e um diabo no corpo e, consequentemente, também com direitos particulares para este e aquele mundo, em espacial com a prerrogativa divina de serem incompreensíveis. -- E 'isso' faz também filosofia! Temo que notem um dia que se equivocaram -- o que querem é religião! [M/A, §544]

7. Em Aurora há indicações valiosas sobre o modo como os impulsos se relacionam, no sentido experimental pré-genealógico supracitado. Nietzsche desenvolve ali não só a luta contra a moral da compaixão. Ele ensaia também um 'combate', através dos seis métodos para 'combater' a impetuosidade dos impulsos, no intuito de construir uma nova noção de valor e de potência. O filósofo solitário perambulou por Veneza, Gênova, Mareinbad, Riva della Garda, procurando decifrar o 'mundo desconhecido do 'sujeito', a trama de 'nosso destino e caráter'. Para isso, seria preciso uma nova abordagem da relação entre prazer e desprazer, em suma, dos impulsos humanos que almejam mais potência. Logo depois da publicação de Aurora, surgiram pensamentos no horizonte de Nietzsche, como ele nunca tinha visto antes.

Nós aeronautas do espírito! -- Todos esses pássaros audazes, que voam ao longe, ao mais longínquo -- certamente, em algum lugar não poderão ir mais longe e pousarão sobre um mastro ou um mísero recife -- e, além do mais, tão gratos por esse deplorável pouso! Mas quem poderia concluir disso que adiante deles não há mais 'nenhuma' descomunal rota livre, que eles voaram tão longe quanto 'se pode' voar! 'Todos' os nossos grandes mestres e precursores acabaram por se deter, e não é com o gesto mais nobre e mais gracioso que o cansaço se detém: também comigo e contigo será assim! Mas que importa isso a mim e a ti! 'Outros pássaros voarão mais longe!' Esta nossa compreensão e confiança voa em competição com eles, para além e para o alto, ergue-se a prumo sobre nossas cabeças e sobre sua impotência, às alturas, e de lá vê a distância, antevê os bandos de pássaros muito mais poderosos do que somos, que se esforçarão na direção em que nos esforçamos, e onde tudo ainda é mar, mar, mar! -- E para onde queremos ir? Queremos passar além do mar? Para onde nos arrasta esse poderoso apetite, que para nós vale mais do que qualquer prazer? Mas por que precisamente nessa direção, para lá onde até agora todos os sóis da humanidade 'declinaram?' Talvez um dia dirão de nós, que também nós, 'navegando para o ocidente, esperávamos alcançar umas Índias' -- mas que nosso destino era naufragar no infinito? Ou, meus irmãos? Ou? -- [M/A, §575]

 

Referências:

MARTON, Scarlett. Aurora: a caminho de um grande meio-dia. In: Nietzsche e a arte de decifrar enigmas. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p.73-86.

MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich W. Aurora: pensamentos sobre os preconceitos morais. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

___________. Aurora: pensamentos sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

 

CAMPOS, Marcelo de Deus.