Conceitos religiosos estão enquadrados diário dos seres humanos em todas as áreas de atividades, de relacionamento e de individualidade. E há milênios. E 24 horas por dia. E, ainda, desde antes do nascimento, quando vizinhos e parentes expressam seu desejo de que “Nossa Senhora do Bom Parto lhe dê uma boa hora” ou ao vaticinar que “Deus há de trazer o bebê com saúde e perfeito”.

Nesse caso, certamente é de se esperar que as questões religiosas estejam presentes na rotina corporativa. Bem… que estejam, é inegável. Há empresas que fazem cultos nos inícios de alguns dias da semana; outras, mantêm a Bíblia aberta sobre pedestal na recepção; há ainda mais outras que aproveitam momentos para oferecer testemunhos e tentativas de conversão.

Por outro lado, há uma questão ainda mais preocupante: quantos bons profissionais, técnicos ou braçais, são preteridos porque sua religiosidade não é compatível com a visão das empresas?

Efeitos religiosos inconscientes

E, antes que alguém comente que isso seja impossível, convém avaliar a força que as questões religiosas detêm sobre o esquema mental de cognição humana. Elas embasam postura nas mais diferentes arestas da individualidade. E, ainda, de maneira profundamente velada, não obstante, inconsciente. 

Para se ter uma ideia, pessoas escolhem seus parceiros em função da religiosidade; procuram enviar seus filhos para escolas associadas a alguma denominação; buscam cultura e expressões artísticas, em geral que, de alguma forma, representem seus conceitos sagrados etc.

Nesse caso, é razoável notar que as relações corporativas também sejam pautadas por questões religiosas. Talvez não exatamente diretamente, mas veladamente.

Maria Carolina Nomura, em matéria da página de Economia do site IG, lembra que:

Ninguém discute que a liberdade religiosa é um direito constitucional. Contudo, quando a questão é abordada no ambiente de trabalho, problemas podem surgir, na avaliação de Hédio Silva Jr., presidente da Comissão de Direitos e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). "Há um aumento do número de julgados que revela que a temática da diversidade é um problema crescente no país", diz. 

Entre os principais atritos envolvendo religião e trabalho estão, por um lado, os de pessoas que se sentem ofendidas pela conduta da empresa quando não permite que folguem em dias especiais para sua religião que não sejam feriados nacionais. "Por outro lado, as desavenças que ocorrem em relação à colegas que se sentem constrangidos quando abordados insistentemente por pessoas muito religiosas. É uma linha tênue", completa Silva Jr.

Questões neuropsicológicas

Certamente, essa postura é ancestral e se encontra tatuada no DNA a partir de gerações ascendentes. Essa condição neurobiológica é discutida no terceiro vídeo do canal “Ateísmo Fraternal”, chamado “Religião e Heróis”

Quando o homem notou conseguir transmitir alguma mensagem por gestos ou sons, começou também a perceber que era possível adquirir algum poder sobre o clã. O instinto de sobrevivência e de preservação da espécie instigou - e instiga até a atualidade - a necessidade de poder de uns poucos sobre muitos.

É suficiente destacar que o tema central deste ensaio não são os resultados diretos e práticos da relação religiosidade-corporação, como intolerância, usurpação de direitos, consciência de minorias, liberdade de expressão etc. E, sim, os efeitos quase ocultos que tal relação provoca no ambiente corporativo.

Coletivismo X Segregacionismo

Ainda que a intenção de religiosos seja “salvar almas” e que essa postura seja aceita ou tolerada por empregadores em algumas empresas, é evidente que o ambiente interno vá refletir conflitos entre colaboradores. E mesmo entre colaboradores da mesma religião, posto que assimilação de conceitos religiosos é questão pessoal, individual. Tendo cada um sua própria visão, a maneira de expô-la se torna elo ou instrumento de repulsa.

Em ambos os casos - elo ou repulsa -, há danos não previstos pela gerência de RH. No primeiro caso, o dano do protecionismo inconsciente entre iguais; no segundo, o dano do separacionismo entre não iguais. De qualquer maneira, a proteção pode esconder ações negativas de colaboradores; a segregação pode resultar em dificuldade de compreensão ou aceitação de tarefas.

Mascaramento

Estudos antropológicos demonstram que, via de regra, a religiosidade tem sido usada como cabresto por parte de grupos específicos para controle das massas. E tais estudos são, de certa forma, dispensáveis para compreensão deste ensaio em função de fácil percepção sobre a realidade atual.

Ao avaliar o livro “Religion and the workplace”, Glaucia T. P. Bisil e Marilene Olivier observam:

Sobre a discussão das formas como os empregados expressam suas diferentes religiões no trabalho, enfatiza-se que funcionários de empresas com lideranças que valorizem sua participação tenderão a ver a espiritualidade diferentemente de empregados de organizações com uma história de desconfiança e tensão no ambiente de trabalho. Assim, percebe-se que o discurso e as ações relacionadas com a influência da religião no ambiente de trabalho podem operar em duas vias, dependendo não só da natureza da religião, mas também da natureza da organização.

Nesse caso, infere-se que o processo de mascaramento de postura de que boa parte dos religiosos lançam mão em sua vida particular se estende ao mundo corporativo. Por associação de ideias, tem-se o mesmo fenômeno previsto na presença de crucifixos e bíblias no saguão da maioria das Câmaras de Vereadores do país. Por cognição e a partir da visão dessas imagens, o eleitor imagina que aquele ambiente seja efetuado exclusivamente por homens e mulheres probos, honrados, preocupados com a sociedade.

Ele - o eleitor - pode até participar de movimentos questionadores da postura de seus vereadores, pode correr às redes sociais a fim de reclamar de certa decisão parlamentar, pode participar de correntes e abaixo-assinados contra a postura dos vereadores. Contudo, no fundo da inconsciência, é metralhado pela impressão positiva que objetos religiosos produzem ao ser vistos à entrada das Câmaras.

Tais objetos funcionam como anteparo contra eventuais revoltas de eleitores.

O que a religiosidade oculta

É comum ver-se customização do espaço pessoal de trabalho — baias, escrivaninhas, salas, armários, etc. Assim, católicos instalam figuras de seu santo de devoção; evangélicos mantêm miniaturas de símbolos de sua denominação; esotéricos apõem pedras fonte de energia etc.

O ser humano é animal social, portanto, dependente de impressões externas a sua mente. A realidade a sua volta dita normas gritantes sobre sua postura. Tais normas resultam sempre em dois níveis de percepção: conflitos ou aceitação.

Aqueles objetos vão, de uma ou de outra forma, interferir nas relações de trabalho. Não seria exagero imaginar que, numa equipe de vendas em que haja um evangélico e um umbandista, a relação entre ambos resulte em algum nível de conflito. 

  • Clientes de um podem ser mal atendidos pelo outro em telefonemas. E isso inconscientemente.

  • Concorrência desleal pode estar em andamento. E isso inconscientemente.

  • Delações inconsistentes, ainda que apenas aventadas superficialmente, podem desarranjar o ambiente de trabalho.

  • Menções insistentes a passagens bíblicas podem ser instrumento de controvérsia em relação ao santo de cabeça do colega e vice-versa, o que produz clima psicológico desconfortável para a corporação porque, em algum momento, esse rastilho vai se condensar

  • Discussão religiosa pode ocupar tempo precioso de tomadas de decisão.

  • Tomadas de decisão baseadas na religiosidade individual podem conflitar com interesses organizacionais.

  • Isolacionismo e recusa à divisão de tarefas ou a compartilhamento delas. 

Por outro lado, a corporação pode também usar estratégias estranhas que usam a religiosidade como instrumento de assédio inconsciente. Há casos de discriminação já no processo de avaliação de candidatos, de forma que a profissão de fé destes seja compatível com a professado pelo empregador. Ou pelo assistente de RH.

Exemplo claro dessa questão ocorreu nos EUA onde, em teoria, o sentido de liberdade de expressão, opinião e religião deveria ser pedra fundamental da sociedade. Uma empresa responsável pela construção de parque temático perdeu incentivos e benefícios fiscais da ordem de milhões de dólares por terem exigido que candidatos a vagas diversas declarassem a fé que professam.

Solução

Não há solução.