Teve um tempo em que eu andava vidrado nas aventuras do herói gaulês Asterix e seu inseparável amigo Obelix. A época, a revista estava esgotada e era preciso garimpar pelas bancas para comprar algum exemplar. Depois de encontrar era curtir a ansiedade para chegar em casa, sentar no sofá e começar a leitura, revivendo os tempos idos do Império Romano, quando uma pequena aldeia da Gália resistia barbaramente à dominação. Uderzo e Gosciny lançaram mão do mito da resistência francesa, simbolizada pelos antepassados gauleses para criar os personagens, que auxiliados pela força sobre-humana da poção mágica preparada pelo druida Panoramix.

Soube tempos depois que existe, também, o mito espanhol da Numância, símbolo da independência e coragem espanhola. Cervantes escreveu uma tragédia chamada O cerco de Numância, que termina com a destruição da aldeia. Isolados pelos romanos e sem acesso a alimentos, eles próprios botaram fogo em tudo e muitos deles se mataram para não se submeterem ao império. O perigo para os espanhóis é esse mito incendiar os ânimos dos catalões que sofreram um revés em seu grito de independência.  

Mas a história dos gauleses ou celtas resistentes contra o Império Romano serviu também para sustentar o mito de que os verdadeiros franceses eram os descendentes dos celtas, um povo considerado ariano e que serviu de argumento para que muitos franceses apoiassem o mito da raça pura alemã e ajudassem na delação dos judeus do país. Aliás, como diz Eric Hazan em A invenção de Paris, a cidade ainda está repleta de fascistas.

De certa forma também por aqui tivemos muita resistência às invasões. Os nossos antepassados “tupis” lutaram e muito, mas foram dizimados pelas armas mais eficientes e, principalmente, pelas doenças que os invasores traziam. Há relatos de que numa das guerras no início da ocupação na Bahia, morreram mais de 40 mil índios em poucos dias.  Desorganizados e sem um “estado” que possibilitasse a união das diversas nações dispersas pelo imenso território, foram presas fáceis para o invasor.  Mesmo no México e no Peru, onde os nativos estavam estruturados em impérios, não foi possível resistir à força europeia. Por aqui a solução contra a invasão foi se afastarem do litoral em direção ao interior do território para sobreviverem por mais algum tempo.  

E é por tudo isso que estou lançando à ideia de que deveríamos ter um herói mitológico originário de alguma tribo indígena que pudesse representar, pelo menos nas histórias em quadrinhos, a valentia dos nossos bravos guerreiros tupis contra os invasores portugueses, espanhóis e eventualmente franceses e holandeses. Poderia ser um herói isolado, sem um companheiro inseparável como os heróis norte-americanos, como Batman e Robin, Zorro e Tonto ou como Asterix e seu amigo Obelix entre outros. É bom lembrar que em tempos atrás surgiu uma interpretação psicanalítica de que essas grandes amizades seriam amor gay sublimado, pois o mundo ainda não estava preparado para aceitar a diversidade sexual. Mas para fugirmos do padrão, poderíamos até ressuscitar o velho Peri e sua amada Ceci como um casal de heróis, resgatando-os do triste destino do romance de José de Alencar.

Quem sabe poderíamos incutir entre nossas crianças o valor dos destemidos povos que habitaram nossa Pindorama por milhares de anos e sentirem orgulho de carregarem nas veias o bravo sangue dos povos que ocuparam nossas plagas depois de percorrerem as estepes da Ásia e adentrando na América pelo Alaska até atingir uma pequena aldeia que resistiu valentemente contra a dominação europeia.  Talvez um velho desenhista aposentado recolhido lá pelos lados de Piedade, resolva no outono da vida dedicar-se aos desenhos para a criação do herói brasileiro em quadrinhos que figurará juntamente com Asterix e Obelix no panteão da resistência contra os invasores poderosos. Alea Jacta est.