Aspectos linguísticos da Fala Crioula

Não há dúvida que a participação negro-africana na linguagem brasileira foi decisiva, principalmente na linguagem matuta. E essa formação pode ser entendida pela análise das diferenças entre o português europeu e o português brasileiro relacionado ao processo de "crioulização" da língua. Desta forma, o português europeu fixou-se língua base, com maior parte de itens lexicais, e as línguas africanas e outras presentes na população, aparecem como línguas de substrato; influenciando as mudanças lingüísticas estruturais. Desde o século XIX a hipótese de que as línguas crioulas fazem parte do português-brasileiro não-padrão não mais convence, pelos seguintes fatores: sendo dois primordiais: a colônia de exploração propiciou o contato de diversos falantes adultos de línguas diversas, sem nenhuma língua em comum: indígenas, africanas e européias (português, francês, holandês, espanhol) e as diferenças entre o português brasileiro e o europeu com variação na concordância verbal e nominal, principalmente na questão de número.
A Língua Portuguesa é transformada quando seus falantes migram de uma cidade para outra e carregam consigo suas características lingüísticas.No Estado de Pernambuco mesmo sendo colonizado por famílias de descendência portuguesa, foi um povoamento formado por camponeses que só mudaram de campo. A população era formada por pessoas brancas (livres) e sobretudo escravos, pardos, negros e índios. Os escravos africanos, que foram para a lida na fazenda, provinham tanto da colônia quanto de Portugal, ou até mesmo diretamente da África, por isso, é necessário que esse grupo participe desse contingente lingüístico no português não-padrão, "caipira", (rural) e pernambucano, considerando a inclusão como negação do preconceito ou não aceitação. Conforme Bernal (1998) "(...) entre as várias línguas faladas pela população escrava, com certeza figurava o dialeto arcaico do norte de Portugal. (...) muitos africanos aprendiam a falar português antes de chegar à colônia, tanto pelo contato com dialetos na península Ibérica como em próprio solo africano."
No século XVII, com a propaganda das sesmarias, muitos sertanistas portugueses e brasileiros fizeram contratos com os principais sesmeiros para abrir fazendas, criar gado e trabalhar na lavoura, além de propagar a religião. Assim, o falar do sertão ganhou um vasto número de vocábulos oriundos das atividades desenvolvidas pelos negros no âmbito das fazendas, seja das feiras, seja das vaquejadas, danças e reza, ao mesmo tempo que aprendiam om português incorporavam vários vocábulos de procedência africana à língua portuguesa falada no Brasil, tais como: nomes geográficos: cachimbo, cacimba, mocambo quilombo; divindades, ministros de cultos, práticas, rituais, crendices: Exu, Iemanjá, Ogum, canjerê, macumba, mandinga, muamba, tatu, zumbi.;danças, instrumentos musicais: batuque, lundu, maracatu, samba; alimentos, iguarias, bebidas: abará, acará, acarajé, angu, mugunzá, quenga, quibebe, quitute, vatapá, cachaça; animais, insetos: caxinguelê, camundongo, marimbondo;inflamações, doenças, estados d?alma: calombo, caxumba, cafife, maculo, calundu, banzo; objetos de uso, enfeites, vestes: cachimbo, carimbo, gongá, malunga, miçanga, tanga;habitação, local de reunião onde se exerce alguma atividade, prisão: cubata, quimbembe, mocambo, quilombo, senzala, bangüê, cafua;pessoas, levando em consideração o sexo, a idade, a condição social, a camaradagem: macota, oba, soba, zambi, moleque, dengo, corumbámacamba, malungo, mobica, mucama. Objetos e comportamentos: banguelê, búzio, cafuné, calumbá, dengue, fubá, mironga, molambo, muxiba, quizília, xendengue.
O vocabulário comum e as formas alteradas que caracterizam o nosso falar roceiro, em grande parte advém de construções provenientes da África, Índia ou afro-indiana: a perda do r e do l pós-vocálicos: amô (amor), jorná (jornal), papé (papel) flô (flor), imaginá (imaginar); (Coutinho, 1976:326).
Pela economia lingüística: fio (filho), mió (melhor), muié (mulher), gibêra (algibeira), quano (quando), cunzinhá (cozinhar), vancê, vamicê, mecê, ocê(você), sinhô, nhonhô, ioiô, inhô, nhô (senhor), sinhá, nhanhá, iaiá, inhá, nhá (senhora); (Coutinho, 1976:326) Também pela ocorrência de sujeito pronominal de primeira pessoa do singular com verbo de terceira pessoa: "eu foi"; (Ferreira, 1994:30). Pela variação na concordância de gênero: "meu sobrinha", "as coisa muito barato" e pela supressão de preposição, do tipo: "eu num vô dize o sinhô que não", "não trabaio garimpo"(Baxter & Lucchesi, 1997:78);Há a corrência do uso de 1º pessoa com forma verbal de 3º pessoa ( em comunidades brasileiras isoladas da Bahia): "io foi"ou ïo teve","io nõ sabi". (Baxter & Lucchesi, 1997:78).

Outros traços lingüísticos do português europeu não-padrão são relevantes para refutar a presença lingüística afro-negra no português brasileiro, especialmente: uso do pronome oblíquo em função do sujeito ? o pronome é por vezes usado com função de sujeito: "...dá pra mim guardari"(Cruz, 1991:153);uso de se para outras pessoas ? o pronome se aparece substituindo outros pronomes ou reforçando-os, na primeira e na segunda pessoa, talvez por ser mais usado: "vou s?imbora"(por vou-me embora), "na s?intendemo"(por não nos entendemos) (Marques, 1968:56);uso do verbo ter indicando posse e existência, o verbo ter usado por haver em frases como: "tinha muita casa velha"(Marques, 1968.) "A linguagem é, sem dúvida, a expressão mais característica de um comportamento social, por isso, é impossível separá-la de suas funções sócio-interacionais". (Camacho, p.55).
O falante da língua geral, língua brasílica, língua do povo, sofre discriminação. Conta-se que Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista, contratado para destruir o quilombo de Palmares, população de escravos fugitives, precisou de um intérprete para se comunicar com as autoridades pernambucanas, pois eles só falava a língua geral. É preciso considerar as influências afro-negras como parte de uma cultura, e sendo assim, não devem ser consideradas inferiores, nem tampouco superiores; apenas importantes. Sua interferência na formação do português brasileiro, especialmente o caipira, não-padrão, na verdade é vítima de preconceito por ser associada a vários fautores, como cor da pele, condição social e até mesmo posição social (ou status). O português que se fala no Brasil tem muitas palavras de origem africana e isso acontece porque, durante o período colonial, os negros foram trazidos da África como escravos, para trabalhar na lavoura. Os africanos trouxeram consigo sua religião, o candomblé e sua cultura, que inclui as comidas, a música, o modo de ver a vida e muitos dos seus mitos e lendas. Trouxeram também as línguas e dialetos que falavam. Os povos bantos, que habitavam o litoral da África, falavam diversas línguas, tais como: o quicongo, o quimbundo e o umbundo.
Em relação à alimentação e vocabulário da cozinha brasileira, Gilberto Freyre cita em Casa Grande e Senzala, a grande contribuição do negro, principalmente no nordeste, na Bahia e Pernambuco, especialmente no sertão, e a mudança que a cozinha brasileira sofreu com a influência francesa, inglesa e holandesa:

" A alimentação ?toda excitante de outro tempo tem sido mudada por uma outra mais simples sob a influência da cozinha estrangeira?. Já não eram tão comuns as feijoadas; raros os guisados em que ?apenas aparecem hoje?, escreve radiante diante d etanto progresso culinário no sentido da desafricanização da mesa brasileira, ?a pimenta? e ?outros condimentos excitantes?. O uso imoderado da gordura que fazia parte dos guisados de outro tempo tem sido refreado e em muitas casas substituído pela manteiga francesa".Em ves de ?aluá?, da garapa de tamarindo, do caldo de cana ? o chá à inglesa; e em vez da farinha, do pirão ou do quibebe ? a batata chamada inglesa.Juntando ?se a tudo isso agiu no sentido da desafricanização da mesa brasileira, que até os primeiros anos da Independência estivera sob maior influência da África e dos frutos indígenas."(FREYRE).

Outras palavras do português falado no Brasil também têm raízes africanas e muitas delas vêm de diferentes povos do continente, como os jejê e os nagô , os quais falavam línguas como o fon e o iorubá. Palavras como "acarajé", "gogó", "jabá" e muitas outras passaram a fazer parte do vocabulário brasileiro e foram incorporados à cultura. Em geral, trata-se de nomes ligados à religião, à família, a brincadeiras, à música e à vida cotidiana. Um exemplo é a palavra "Bunda", também de africana e não fosse por ela, o brasileiro teria que dizer "nádegas", que é o termo português para essa parte do corpo humano. Da mesma maneira, em vez de "cochilar", poder-se-ia dizer "dormitar" e em vez de "caçula", usar-se-ia uma palavra bem mais complicada: "benjamim". Os registros lingüísticos dão prova de que a língua banta tem uma estrutura parecida com a do português, devido ao uso de muitas vogais e sílabas nasais ou abertas, como nos sons da palavra "moleque" e de "gangorra", em que o jeito ?malemolente?, isto é, devagar e cheio de ginga de falar facilitou a integração entre o banto e o português.Hoje usa-se tantas palavras africanas que nem se repara em sua origem. Com este capítulo, procurou-se mostrar alguns elementos que fizeram parte da formação lingüística do português atualmente falado no Brasil, bem como comprovar, através de fatos históricos, que a língua não-padrão, que tem sido por muito tempo vítima de preconceito, na verdade é uma variedade, uma mudança normal que faz parte do processo evolutivo das línguas. Como exemplo, há as influências grandiosas sofridas pelo português caipira provenientes do contato entre escravos adultos, falantes de outras línguas, inclusive o português europeu. A intenção é contribuir com o respeito às variedades, a tolerância ao diferente, esclarecendo o porquê da existência de muitas palavras africanas que se utiliza no português até hoje.