As variantes linguísticas e a identidade sociocultural

 

Embora os seres humanos pertençam ao Reino Animal, umas das principais características que os diferencia dos outros animais é a de comunicarem-se através da fala. Ainda que possam expressar seus sentimentos e desejos, em outros animais essa comunicação é muito mais gestual e não verbal, sendo o ser humano o único a ter a propriedade da comunicação através da fala. Isso tornou possível que dentro de um complexo sistema de signos, o ser humano fosse capaz de adquirir, produzir, conservar e transmitir conhecimento.

Essa produção e transmissão de conhecimento torna o ser humano capaz de criar, recriar e modificar o mundo onde vive tornando-os seres sociais. E tudo que se aprende e as ações que são realizadas para transformar esse mundo torna-os seres culturais.

Todo o conhecimento que existe em nós mesmos e do mundo, sempre foram nos passados pela linguagem. “É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nós próprios” (GADAMER, 2002, p. 176).  Além disso as ações do ser humano são temporais, ou seja, são históricas, pois mesmo após sua morte suas experiências e realizações permanecem e podem ser reaproveitadas, recriadas, reformuladas por outros seres humanos e isso é uma marca cultural.

A fala sendo uma função tipicamente humana também é histórica e sofre modificações constantes, pois língua e fala são “vivas” e mudam de acordo com as necessidades que os seres humanos criam para adaptarem-se ao mundo em que vivem. A fala do século XVIII é diferente da fala do século XXI e certamente será diferente no século XXII.

Embora façam uso de uma mesma língua, no caso do Brasil a Língua Portuguesa, as diferenças sociais e culturais de um indivíduo fazem com que o mesmo faça um uso particularizado da fala, que envolve uma série de fatores como meio social, grau de instrução, região do país em que vive, grupos sociais do qual faz parte, entendimento de mundo, etc. Todas as línguas sofrem variações, e num país de dimensões continentais como é o Brasil, isso não seria diferente. Essas variantes linguísticas tornam nosso idioma muito rico, pois é fruto de uma miscigenação que vem desde nossa colonização.

Que graça teria se todas as pessoas se comunicassem da mesma forma?  Teríamos uma língua pobre, estática, sem vida, triste.

Oswald de Andrade em seu poema “Vício da fala” ilustra muito bem essa variação da língua e da fala:

 

Vício da fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.

 

Pelas variantes linguísticas é possível reconhecer a que região do Brasil pertence uma pessoa, não apenas pelo seu sotaque, mas pela sua maneira peculiar de nomear as coisas. Quando vamos de um Estado para outro ou até mesmo de uma cidade para outra e estamos deslocados de nossa cultura regional podemos perceber diferenças tão significativas, que mesmo falando o mesmo idioma sentimos dificuldades de compreender algumas palavras e expressões. Só para exemplificar, vejamos algumas diferenças regionais em alguns substantivos:

Guampa em Santa Catarina é chifre em São Paulo e gaio em Minas Gerais; vina em algumas cidades do Paraná é salsicha; cola é o rabo dos animais em Santa Catarina; prenda no Rio Grande do Sul é mulher e objeto que se dá a alguém como agrado no Sudeste; em Blumenau SC se chama penal o estojo que se usa para guardar lápis para levar para a escola; enfim esses são só alguns exemplos da riqueza vocabular existente no Brasil.

Embora essa riqueza seja objeto de estudos de muitos linguistas, não obstante é também instrumento de discriminação social e muito preconceito. Ainda hoje no Brasil, se tem a ideia do “falar correto”, e o falar correto é somente o que dita a norma padrão. Tudo o que foge disso é considerado um “erro”. Não que a norma padrão não deva ser aprendida, pois quanto maior o conhecimento da língua, mais facilidade se tem no ato de se comunicar, no entanto, não devemos privilegiar uma forma de comunicação em detrimento de outra, como nos explica Bagno: (2007, p. 73):

Enquanto a gramática tradicional tenta construir uma “língua” como uma  entidade homogênea e estável, a linguística   reconhece   a   língua   como   uma  realidade intrinsecamente heterogênea, variável, mutante, em estreito veículo com a dinâmica social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade extremamente dinâmica e multifacetada só pode apresentar uma língua igualmente dinâmica e multifacetada.

 

O modo como se fala pode indicar muitas informações intrínsecas sobre os indivíduos: o local de onde se vem, a faixa etária, o grupo social a que pertence, entre outras. Muitas pessoas, no entanto, sofrem preconceito pela sua maneira de falar e aquele que critica, as vezes nem se dá conta que está exercendo, mesmo que de forma velada, um tipo de discriminação social, é um desrespeito por toda a história e cultura dessas pessoas.

Os estudos linguísticos apontam que não existe nenhuma língua em que os falantes se expressem seguindo todas as convenções da norma padrão da gramática. A escola como um espaço privilegiado de socialização dos conhecimentos produzidos pela sociedade, não pode ignorar as variações sociolinguísticas dos falantes, pois além de ser um campo riquíssimo de integração social é também solo fértil para a interdisciplinaridade. Através dos vários falares, se pode socializar as várias culturas que partilham o mesmo espaço e principalmente que através do conhecimento possam respeitar as diferenças em todos os sentidos. Nesta perspectiva, como nos ressalta BORTONI (2005, p. 26),

 

A aprendizagem da norma culta deve significar uma ampliação da competência linguística e comunicativa do aluno, que deverá aprender a empregar uma variedade ou outra, de acordo com as circunstancia da situação da fala.

 

Privilegiar uma forma de falar em detrimento de outra é exigir que um individuo negue toda a sua história e assuma uma cultura que não é dele. Não se quer dizer aqui que não se deva aprender a norma padrão, ela é estritamente necessária, pois quanto mais se conhece a língua, mais fácil se torna a comunicação das pessoas, porém, não é preciso abandonar uma forma de falar para adotar outra, até porque, nem todas as pessoas têm condições de frequentar uma escola para conhecer a norma padrão, mas nem por isso podemos dizer que ela não sabe fazer uso da língua, pois, à sua maneira ela consegue se comunicar em qualquer situação, afinal é esse o princípio básico da linguagem e da fala: a comunicação.

 

Referências

 

ANDRADE, O. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971

 

BAGNO,  Marcos;  Nada  na  Língua  é  por  acaso:  Por  uma    pedagogia  da variação linguística, São Paulo: Parábola, 2007.

 

BORTONI, Ricardo Stella Maris: Nós Cheguemu na Escola, e agora?, Sociolinguística e Educação São Paulo; Parábola Editorial, 2005.

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Tradução de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

 

Sites visitados

 

http://www.webartigos.com/artigos/o-homem-um-ser-cultural/85816/#ixzz4tcWiC6UJ – Acesso em 24/09/17.

 

https://www.pensador.com/frase/NTY0OTgx/ - Acesso em 25/09/17.

 

http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=2004 – Acesso em 25/09/17.