AS AULAS DE RELIGIÃO

 

A diretora do colégio entrou na classe e apresentou o Padre Rubens que passaria a dar aulas de religião. Era um homem pequeno, magricela, mal vestido, de óculos fundos de garrafa e cabelos desalinhados sobre a testa. Feita a apresentação ele desandou a falar sobre a sua comunidade na divisa de São Caetano com Santo André, um bairro operário com uma pequena favela no seu entorno. Falta de esgoto, de transporte, de serviço médico, enfim, todos os problemas de comunidades pobres das grandes cidades que persistem até hoje. A conversa foi solta colocando os adolescentes de classe média, média e baixa em confronto com a dura realidade de pessoas que não dispunham nem a privacidade de um banheiro para ler um jornal no final de semana, como ele mesmo dizia.  Terminada a aula, ficamos conversando com o padre sobre os problemas políticos, sociais e econômicos do país.

Não ficou só nisso, pois fomos convidados para visitar sua paróquia, o que fizemos alguns dias depois. Assistimos sua missa, nada ortodoxa, com músicas do Vandré e outras inovações. No final as pessoas falavam sobre problemas da comunidade, sempre lembrando que o cristianismo original tinha uma proposta de resgate dos pobres e condenação da acumulação de riquezas.

Das missas começamos a frequentar reuniões que eram realizadas todos os fins de semana na paróquia. Lá apareciam vários tipos que variavam da esquerda festiva à esquerda mais radical de todos os matizes políticos. Maoistas, trotskistas, nacionalistas, pecebistas etc conviviam harmonicamente na igreja, cada um discutindo e defendendo as suas soluções para os grandes problemas nacionais e a operacionalização da revolução para a tomada do poder. Até intelectuais franceses apareceram por lá, acompanhados pela nossa professora de matemática, Maria Aparecida Bornia, pessoa que nunca imaginávamos que estivesse engajada politicamente. Ela dizia confiante, que o povo não aguentava mais e em menos de dez anos o país estaria em revolução. Coitada, deve estar esperando até hoje.

Num final de semana na casa paroquial, quase fomos cooptados por um adepto da luta armada que tentou nos convencer que a solução era partir para a guerrilha urbana e rural, pois a ditadura estava cada vez mais forte e seria impossível desalojar os militares do poder por meios pacíficos. Por sorte um pessoal mais experiente nos alertou sobre os riscos de um enfrentamento armado com um estado superequipado com armamento de primeira geração. O sonho romântico de uma guerrilha começou num dia e terminou no outro, pois percebemos que o movimento armado era um sonho de uma noite de verão. A leitura do livro “Meu amigo Che” despertava o romantismo revolucionário nos jovens, mas a vida real era bem mais dura e cruel. Che Guevara morreu num ataque das forças armadas bolivianas a um acampamento guerrilheiro, o que sepultou com ele os devaneios de uma América Latina revolucionária.

Mas se não entramos para o movimento armado, compensamos participando de um grupo de estudo sobre O Capital, de Karl Marx. Passávamos as tardes dos sábados e domingos lendo a complexa obra, página por página, discutindo e refletindo sobre o sistema econômico, político e social.  O nosso mentor era um estudante de da USP ligado a um grupo trotskista, chamado Plínio, possivelmente um codinome. Plínio era um militante da UNE que  havia sido preso no famoso congresso de Ibiúna, mas conseguiu ser libertado, ao contrário dos líderes como José Dirceu e Travassos.

Num sábado à noite a paróquia recebeu a visita de dois frades dominicanos, que depois de uma bonita palestra sobre sexo e amor, cantaram belas canções do Vandré, Chico, Capinan e outros.  Eles dormiram por lá e participaram da missa no dia seguinte. Foi muito inovadora, com discursos da teologia da libertação e canções no final. Ficamos entusiasmados e alguns chegaram a pensar em se tornarem religiosos engajados na luta revolucionária. A convite dos frades fomos visitar o Seminário dos Dominicanos quando participamos de uma missa estruturada como a Santa Ceia. Todos sentados numa grande mesa e um pão tipo italiano amanhecido foi sendo repartido com as mãos entre os presentes e os pedaços molhados em vinho tinto, como se fazia nos tempos bíblicos.

E o Padre Rubens Chasseroux continuava com sua igreja aberta a todas as tendências políticas e ideológicas. Tivemos notícias de que o Dops apareceu por lá e o levou para um interrogatório. Era sinal de que o regime que estava se fechando. A situação estava mudando e para pior.  O aparecimento de focos de luta armada, com ataques terroristas a quartéis, assaltos a bancos, endureceu ainda mais o regime militar. A análise, entre os mais moderados, era de que a luta armada só conseguiu o aumento da repressão, pois deu aos militares da linha dura o argumento que faltava para fazer uma devassa em todos os movimentos de oposição ao regime militar, radicais ou não. O caso do Vlademir Herzog foi um exemplo de que essa visão estava correta. Pertencente ao Partido Comunista, o chamado partidão, que não se envolveu com luta armada, o jornalista foi preso, torturado e morto nas dependências do DOI-COD. Outros expoentes do partidão como jornalistas e escritores, também foram presos e torturados.

Mas com o padre Rubens e nossa turma era sempre uma festa. Saíamos à noite para tomar cerveja, ir ao teatro, cinema, cantar  e criticar o governo e os grupos políticos que não se alinhavam com as nossas ideias. Ele topava tudo, incluindo uma caminhada até Santos pela Estrada Velha, durante a noite, tomando cachaça e comendo pão com mortadela. Uma vez em sua companhia descemos até o litoral, tomamos banho de mar e só voltamos na manhã seguinte. Era uma loucura que deixava nossos pais preocupados, pois dificilmente avisávamos aonde íamos – mas ninguém sabia de antemão o que iria acontecer naquelas loucas noites dos anos 60 e 70.

Mas chegou o golpe do AI-5, que acabou com a festa. O regime endureceu de vez e até o padre viu-se em maus lençóis. Ele foi preso e torturado várias vezes para dar informações sobre o pessoal que frequentava sua paróquia, pois havia suspeitas de que havia militantes envolvidos com a luta armada. Ficamos com as barbas de molho e deixamos de frequentar a igreja com medo de encontrarmos com policiais disfarçados e sermos presos como ameaças ao regime, que definitivamente, não éramos.

Com a intensificação da repressão militar sobre os movimentos oposicionistas o grupo se fragmentou. Alguns recolheram as “armas” e optaram por dar um tempo para aguardar a situação se acalmar. Outros, bem poucos, partiram para a clandestinidade sendo que alguns foram presos e torturados. Entre esses, alguns nunca mais foram vistos ou teve-se notícias. Comentava-se que morreram durante a repressão ou resolveram participar dos movimentos armados e foram enterrados em cova rasa. Sobre um tal de Chico, juntamente com a Rosa, sua namorada, circulou a notícia de que conseguira fugir para o Chile e de lá não se sabe se sairam vivos.

E foi assim que começaram e terminaram as aulas de religião do colégio. Nenhum do grupo entrou para o seminário dominicano e muitos se fingiram de mortos, esperando dias melhores que demoraram para chegar. Enquanto isso, a saída era ler o Pasquim e se divertir com as indiretas muito bem sacadas do Millôr, Ziraldo, Henfil e outros.  Ficaram, também, alguns poemas do frei dominicano, chamado Paulo César que cantava músicas do Geraldo Vandré e, também, suas palestras sobre o amor e sexo que marcaram nossas vidas.