RESUMO: Este trabalho apresenta uma análise diacrônica da língua Zo’é, falada aproximadamente 270 pessoas habitantes do Estado do Pará e contatadas em 1987. Demonstra as semelhanças e as transformações fonológicas e morfofonêmicas ocorridas em relação à protolíngua Tupi-Guarani e às outras línguas da mesma família linguística.  As mudanças ocorridas e os dados conservados confirmam sua inclusão na família Tupi-Guarani, subgrupo VIII, proposto por Rodrigues (1984/1985). Embora algumas mudanças e semelhanças coincidam também com as das línguas de outros subgrupos, sua inclusão no subgrupo VIII, proposto por Cabral (1996) e referendado por Souza (2013), parece coerente, pois é maior o índice de ocorrência em comum com as línguas deste subgrupo.

1. Introdução

O presente artigo propõe apresentar os resultados de uma análise diacrônica sobre a língua Zo’é, falada por aproximadamente 270 pessoas, que vivem na região compreendida entre os rios Cuminapanema e Erepecuru, no município de Óbidos e Oriximiá (PA).
Embora, historicamente, esses indígenas tenham mantido contatos esporádicos com caçadores e exploradores de riquezas vegetais e minerais na sua região, só foram contatados oficialmente em 1987. A partir de então, essa língua, ainda desconhecida da comunidade acadêmica, passou a ser estudada e analisada em seus vários aspectos. E, por se tratar de uma língua falada por um povo considerado de recente contato e ainda pouco explorada, essa análise histórico-comparativa propõe contribuir com a comunidade científica quanto ao registro de dados linguísticos das línguas indígenas brasileiras.
Os primeiros estudos desse idioma se deram entre os anos de 1987-1991, resultando em uma descrição gramatical, uma coletânea de vocábulos (CASTRO et al, 1993) e uma análise comparativa (CASTRO, 1994) e arquivados na Biblioteca Nacional. Posteriormente, trabalhos de análise fonológica (CABRAL, 1995/1996), (CASTRO; CARVALHO, 1998) foram publicados, enriquecendo assim o seu acervo bibliográfico.
Tomando por base a fonologia da língua Zo’é, proposta por Castro e Carvalho (1998), comparando-os com os da proto-língua Tupi-Guarani (RODRIGUES 1984/1985) e de algumas outras línguas dessa mesma família linguística (JENSEN, A., 1979), (JENSEN, 1989) e (DOBSON, 1988), é possível perceber as semelhanças existentes entre essa língua e as demais, classificadas como membros da família Tupi-Guarani. Isso serve como elemento de confirmação de sua inclusão nessa família linguística e no subgrupo VIII, proposto por Cabral (1996) e referendado por Sousa (2013), não obstante esta análise diacrônica tenha sido preliminarmente elaborada em período anterior (CASTRO, 1994), mas por motivo de força maior só agora publicada para maior acesso ao público em geral.
O seu desenvolvimento fonológico é percebido por meio das mudanças ocorridas, a partir do seu distanciamento histórico-geográfico em relação às demais línguas dessa família, levando em conta que as etnias Zo’é, Waiampi e Emerillon fazem parte de um pequeno grupo reconhecidos como falantes plenos de Tupi-Guarani ao norte do rio Amazonas. Por outro lado, os dados que foram conservados demonstram que o seu distanciamento linguístico não foi tão intenso como em algumas das outras línguas coirmãs. Isso pode ser explicado pelo fato desses índios terem permanecido por mais tempo isolados da sociedade nacional e mantido pouco contato com outros grupos indígenas, cujos dados primários, coletados entre os anos de 1987-1991 e susequentes aos primeiros contatos, demonstram claramente.
No entanto, vocábulos atípicos à família Tupi-Guarani são encontrados nesta língua, tais como “(mimi) ‘mamilo’, (soso ‘mamar’ e também ‘seio’ são nitidamente empréstimos Karíb, como é o caso do morfema coletivo/associativo kã(n)” (CABRAL, RODRIGUES, CARVALHO 2010), à semelhança de Waiampi que, segundo Jensen (1989 p. 139), recebeu de Wayãna o “Empréstimo do morfema que pluraliza substantivos, Wayãna kom → kũ”. Acrescenta-se a esses o vocábulo (tori) ‘resina / luz de vela’ possivelmente derivado de Tiriyó (turi) e os termos vocativos (pa) e (mã) para ‘pai’ e mãe respectivamente (seção 3.13), possivelmente absorvido do português, o que demonstra não ter havido um isolamento total desse grupo nos anos que antecederam ao contato com a sociedade envolvente.
Não obstante, autores mais recentes terem proposto novas redistribuições desses subgrupos a exemplo de Mello (2002), que procurou reorganizar os oito subgrupos propostos
por Rodrigues (1984/1985) em nove, dividindo e alterando a associação de subgrupos de línguas, mas questionada por Michael et al (2015 p. 208), cuja análise se baseou em aplicação de métodos filogenéticos computacionais para a comparação de dados ao longo do tempo de desenvolvimento fonológico dessas línguas, este trabalho segue os parâmetros adotados por Rodrigues (1984/1985) como guia desta análise comparativa. Isso porque, embora esteja também em foco a confirmação de classificação da língua Zo’é em um dos subgrupos da Proto-Tupi-Guarani, o enfoque maior desta análise diacrônica é o de demonstrar de forma clara e objetiva as mudanças e as retenções fonológicas da língua Zo’é ao longo do tempo de isolamento das línguas coirmãs dessa família linguística.
Este artigo está dividido em três tópicos principais: As semelhanças fonológicas e lexicais da língua Zo'é com a proto-língua Tupi-Guarani; As mudanças fonológicas ocorridas em relação à família linguística Tupi-Guarani; e as Variações morfofonêmicas relacionadas com a família Tupi-Guarani.
E, para não ser exaustivo, apresenta-se a seguir um inventário fonêmico (Tabela 1), referindo-se apenas à proto-língua Tupi-Guarani e à língua Zo’é, que demonstra as semelhanças e diferenças existentes entre elas e algumas inovações fonológicas tais como o acréscimo de duas vogais médias abertas /ɛ/ e /ɔ/, em oposição às médias fechadas /e/ e /o/ (seção 3.13), as consoantes /d/ e /b/, que se opõem a /n/ e /m/ nesta língua (seção 13.14) e os fonemas /s/ e /ʃ/, que não consta no inventário proposto para Tupi-Guarani (seção. 3.2.3). E para ser coerente com os demais trabalhos nas línguas coirmãs os símbolos ng, tx, ts e ’ adotados por Rodrigues (1984/1985), foram recuperados para as representações fonêmicas /ŋ/, /č/, /c/ e /ʔ/ facilitando assim a compreensão da maioria dos leitores não habituados com essas nomenclaturas.