1 A Hermenêutica como Chave para Discricionariedade da Decisão Judicial

 

O presente artigo pretende mostrar a relevância do cumprimento da prisão domiciliar para os casos de menos periculosidade para a sociedade, pois o Sistema Carcerário Brasileiro encontra-se falido, e em nosso país muitos lutam constantemente para sobreviver em estabelecimentos penitenciários marcados por problemas como superlotação e a falta de higiene, que acarretam uma afronta aos direitos inerentes aos detentos. Infelizmente, a grande parte da população carcerária morre antes de completar um ano de prisão, diante da omissão estatal que atinge cerca de 1/3 dos condenados com as doenças como tuberculose, o câncer e a AIDS, conforme o último censo penitenciário. Diante dessa problemática que assola o país, os estudiosos estão procurando alternativas para amenizar o cumprimento da pena privativa de liberdade.

Diante da Lei de Execução Penal nº 7210/84, o art 117 – somente confere o recolhimento do beneficiário ao regime aberto, aos apenados acometidos maior de 70 (setenta) anos; por doença grave; com filho menor ou deficiente físico ou mental e condenada gestante.

 

 

II - condenado acometido de doença grave;

III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;

IV - condenada gestante.

 

2 Hart e o Exercício da Função Criativa pelo Aplicador de Direito: Complemento e Determinação

As regras formuladas pelo Direito podem gerar incertezas quanto ao comportamento descrito no caso concreto. Tal constatação ressalta o problema inerente aos operadores do Direito: a adequação da lei ao caso concreto. O trecho já famoso de Herbert Hart explicita muito bem o problema:

“O papel das regras de interpretação consistiria, então, em diminuir tais incertezas, mas estas não chegariam a ser eliminadas. Quando um termo ou categoria passasse a ter um mesmo significado entre os operadores do direito, seja a partir da aplicação de uma dada regra ou de qualquer outra do sistema jurídico, não merecendo maiores indagações e reflexões, ter-se-ia o “paraíso dos conceitos” dos juristas”. (HART, 1994, p.143).

 

Na segunda metade do século XX, Herbert L. A. Hart[1] publicou a aclamada obra O Conceito de Direito, de tamanha repercussão e verdadeira contribuição à Ciência Jurídica e à Hermenêutica Jurídica. Nela é tratada com primazia a problemática referente aos Limites e Possibilidades contidos na Decisão Judicial. Em seu capítulo VII, intitulado Formalismo e Ceticismo Acerca das Regras, Hart trata do que veio a chamar de “Textura Aberta do Direito”. Esta representa a possibilidade da existência de vagueza e/ou lacunas no conteúdo das leis:

“A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso. [...] Aqui, na franja das regras e no campo deixado em aberto pela teoria dos precedentes, os tribunais preenchem uma função criadora de regras que os organismos administrativos executam de forma centralizada na elaboração de padrões variáveis” (HART apud BUENO, 2010).

Observa-se, então, que a concepção de textura aberta do direito envolve questões referentes “a indeterminabilidade do processo de comunicação das regras jurídicas e a necessária complementação no processo de aplicação de tais regras, haja vista a área de conduta deixada em aberto pelo legislador” (SOUZA, 2008). A exemplo disso temos o inciso II do art. 1.638 do Código Civil que versa: “deixar o filho em abandono”. Se levarmos em consideração a não especificidade do inciso no que tange o tipo de abandono, podemos constatar uma ambiguidade, pois deixa-se implícito que se deve sustentar mais de um tipo de abandono. “Aqui não se trata de uma imperfeição da norma, simplesmente se deve ao fato de que não podemos atribuir ao legislador uma capacidade que foge à humanidade, qual seja, a mais perfeita e precisa antecipação dos fatos e que, portanto, isso repercuta na estrutura normativa”. (BUENO, Roberto, v. 47, 2010.)

As regras formuladas pelo Direito podem gerar incertezas quanto ao comportamento apresentado no caso concreto. Tal constatação apresenta o problema inerente aos operadores do direito: a adequação da lei ao caso concreto:

“O papel das regras de interpretação consistiria, então, em diminuir tais incertezas, mas estas não chegariam a ser eliminadas. Quando um termo ou categoria passasse a ter um mesmo significado entre os operadores do direito, seja a partir da aplicação de uma dada regra ou de qualquer outra do sistema jurídico, não merecendo maiores indagações e reflexões, ter-se-ia o “paraíso dos conceitos” dos juristas”. (HART, 1994, p.143).

Um exemplo muito interessante utilizado por Hart para explicar essa questão da textura aberta é o uso de uma placa com os dizeres “Proibida a entrada de veículos no parque”. Ora, a primeira questão que nos chama a atenção é: por que é proibida a entrada de veículos no parque? A segunda: o que aconteceu para que não fosse mais permitida a entrada de veículos no parque? E a terceira: o que a administração do parque entende por veículos?

Neste caso a textura aberta se dá pela indeterminação da regra, ou seja, o conteúdo e a extensão do conceito de veículos não são precisos e objetivos. Como afirma Eros Graus: “As linguagens consubstanciam sistemas ou conjuntos de símbolos convencionais, ou seja, os significados das palavras ou expressões linguísticas dependem sempre de uma convenção.” (1988, p. 58).

Mesmo sendo uma regra simples – é proibida a entrada de veículos no parque –, a discricionariedade que fora deixada pela linguagem pode ser muito ampla. Como bem esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello: "A margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade [...].” (1993, p. 48). Isto é, a Administração do parque pode, de acordo com a sua escolha, entender que veículos são apenas aqueles dotados de motor. Da mesma forma que pode entender que veículos são todos aqueles que possuem rodas. “As formas de interpretação não podem eliminar estas incertezas, pois elas próprias se utilizam de termos que exigem interpretação, e assim, não possuem objetividade.”. (HART, 2009, p. 163-164).

Diante da margem de dúvida, caberá ao juiz interpretar a regra da forma que julgar mais apropriada ao caso concreto. Como cabe a ele, muitas vezes, direcionar o sentido da regra para o caso concreto – por assim dizer, “torturando o texto até que ele diga o que você quer” – pode-se dizer que, nestas ocasiões, o juiz exerce Discricionariedade. Esta podendo residir na hipótese da norma, quando a lei descreve a situação fática de modo impreciso; no comando da norma, quando nele se houver aberto, para o agente público, mais de uma alternativa de conduta; ou na finalidade da norma. O aplicador do direito estará exercendo, então, um poder discricionário e “criando direito” para o caso concreto, apoiando-se nos Costumes, Analogias ou/e outras Fontes do Direito para conferir racionalidade à sua decisão.

Como afirma o art. 4 do Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de Setembro de 1942: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”. Essa escolha faz segundo critérios próprios como oportunidade, conveniência, justiça, equidade, razoabilidade, interesse público etc. Como versa, logo em seguida, o art. 5 do Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de Setembro de 1942: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”.

Hart é incisivo ao afirmar que o aplicador do direito exerce uma Função Criativa, na medida em que completa e determina o sentido de uma regra jurídica. Afirmação esta não aceita por outros estudiosos da ciência jurídica, inclusive, o renomado Hans Kelsen.

 

3 Kelsen e a (In)completude das Regras

 

Um dos mais notórios juristas do século XX, Kelsen defende que o aplicador do direito deve ter o caráter de absoluta neutralidade perante o direito, e que seu papel é o de determinar cognoscitivamente as possíveis interpretações da norma superior. Ele concebe o ordenamento jurídico como sendo um conjunto hierarquizado de normas jurídicas, que se estruturam de forma escalona e ordenada. Tendo em vista que a norma superior é o ponto máximo da hierarquia de um determinado ordenamento jurídico (Cf. KELSEN, 2006). Raimundo Falcão pronuncia-se com um entendimento muito parecido com a linha de raciocínio de Herbert Hart, afirmando a imprescindibilidade da interpretação para a evolução do direito:

“O Direito, ou qualquer outro objeto cultural, sem a abordagem do intérprete, isto é, sem o sendo da interpretação, é paralisia, é estagnação. [...] A própria interpretação já feita também é paralisia e estagnação. Outra interpretação que se faça, do mesmo objeto cultural – inclusive a interpretação de interpretação anteriormente feita -, é sempre nova apreensão de sentido, é sempre uma nova interpretação, que pode até coincidir com o sentido antes captado, mas não necessariamente, pois o processo espiritual é novo”. (FALCÃO, Raimundo, 1990. p. 170).

 

A função criativa exercida pelos aplicadores do direito manifesta-se de modo mais claro quando se está diante de conceitos jurídicos indeterminados ou quando é necessário complementar as lacunas da lei. Para Hart, a incompletude está presente em qualquer sistema jurídico, uma vez que há casos que requerem regulação em uma dada situação concreta. Ao tratar dos métodos de desenvolvimento judicial do direito, Karl Larenz, em sua obra Metodologia da Ciência do Direito, aproxima-se do pensamento de Hart, pois percebe “A existência de uma tarefa criadora do sujeito que compreende no momento em que interpreta e, à medida em que se vai além do sentido literal possível, aumenta-se a atividade criadora do intérprete.”. (LARENZ, 1991, p. 521).

Vale assinalar que Kelsen, em linha oposta, sustenta que “o ordenamento jurídico é completo e que a incompletude é uma ficção que permite ao juiz criar direito”. (FERRAZ, Júnior, 1988, p. 195-196).

Hans Kelsen dedicou à temática da Interpretação das Normas Jurídicas o capítulo VIII (A Interpretação) de sua obra Teoria Pura do Direito. Kelsen trata da realização de uma distinção entre duas formas de interpretação: a Interpretação Autêntica e a Interpretação Não-Autêntica.

A primeira é aquela realizada pelo Órgão Aplicador do Direito (órgãos do Judiciário e da Administração). Consiste na definição/fixação de um sentido como força vinculante, escolhido por um ato de vontade de tal órgão dentre as várias possibilidades de sentidos reveladas através de um puro ato de conhecimento, no ato da aplicação do Direito (decisão). A segunda é aquela realizada por qualquer pessoa e pela Ciência Jurídica. É o ato cognoscitivo que estabelece (revela) as possíveis significações de uma norma jurídica; por que a determinação das “possíveis significações” não é vinculante para o órgão aplicador do Direito. e porque é “incapaz de comaltar as pretensas lacunas do Direito”. (KELSEN, 2006, p. 395).

Desta distinção é possível dizer que para Kelsen interpretar e aplicar o direito são duas coisas diferentes; tanto os que realizam a interpretação autêntica quanto os que realizam a interpretação não-autêntica precisam interpretar as normas jurídicas, mas o diferencial é o fato de que somente a primeira aplica – ou cria, por assim dizer – o Direito. Kelsen foi um dos autores que identificou a atividade interpretativa com a atividade discricionária, pois sempre há uma margem mais ou menos ampla de livre apreciação:

“O resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta, mas, possivelmente, as várias soluções [...]”. (KELSEN, 2006, p.390).

 

Existe no ato de fixação (aplicação)/criação do direito uma relação tanto de determinação quanto de indeterminação, ou seja, a norma jurídica determina uma Moldura, mas o que existe dentro desta moldura é indeterminado. A metáfora que Hans Kelsen utiliza é perfeita. Imaginemos uma sentença judicial que determina que José deva pagar pensão alimentícia para os seus filhos. Tal sentença será executada por um oficial de justiça. Portanto, para saber qual ato ele deverá executar, o oficial de justiça terá que interpretar a sentença. Ao fazê-la, ela (sentença) determinará esse ato de execução – o oficial de justiça deve cobrar o pagamento da pensão a José, não a João; portanto, a sentença vai delimitar uma moldura, da qual o oficial de justiça não pode se esquivar. O que chama a atenção é que a determinação nunca é completa; sempre há indeterminação: se o oficial de justiça vai proceder à cobrança no período da manhã ou da tarde, não é especificado pela sentença, por exemplo, nem que deve estar vestido a caráter:

“Uma relativa indeterminação do ato de aplicação do direito. Aduz que a norma jurídica (em especial as normas superiores) funciona como uma moldura ou quadro a ser preenchido, mas que, por mais detalhista que seja, deixará espaço para uma livre apreciação por parte do aplicador do direito.”. (KELSEN, 1962, p. 284).

 

Dentro da moldura, o oficial de justiça encontra várias possibilidades de execução, e caberá somente a ele acabar com tal indeterminação. Em outras palavras, é um quadro sem uma pintura. Se existem várias possibilidades de execução dentro da moldura, então é possível afirmar que a interpretação de uma lei não leva a uma decisão correta; e sim, decisões corretas. Todas as soluções que estiverem contidas dentro da moldura são soluções juridicamente válidas. A interpretação das normas jurídicas se traduz em um ato de conhecimento, pois somente fixar a moldura para conhecer as várias possibilidades de aplicação é um ato puramente cognitivo (Cf. KELSEN, 2006).

Mas essa interpretação não pode realizar apenas um ato de conhecimento. Os órgãos que realizam tal interpretação precisam aplicar o direito, não somente interpretar as normas jurídicas. A interpretação visa a criação do direito, ou seja, é necessário escolher, entre as várias possibilidades existentes dentro da moldura, uma para ser aplicada ao caso concreto. Não basta somente interpretar as normas jurídicas (ato de conhecimento), é necessário também realizar um ato de vontade:

“O ato, cujo sentido é que alguma coisa está ordenada, prescrita, constitui um ato de vontade. Aquilo que ser torna ordenado, prescrito, representa, prima facie, uma conduta humana definida. Quem ordena algo, prescreve, quer que algo deva acontecer. O deverser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo.”. (KELSEN, 1986, p. 2-3).

 

“Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicados do direito, devemos dizer: na aplicação do direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do direito a aplicar combinasse com um ato de vontade em que o órgão aplicador do direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva.” [...] (KELSEN, 2006, p. 394).

4 Conclusão

 

A premissa de que as regras formuladas pelo Direito podem gerar incertezas quanto ao comportamento descrito no caso concreto, é mais do que compatível com a realidade. Uma vez que a legislação é incapaz de normatizar todas as condutas humanas. Haja vista tornar a prestação jurisdicional, uma das principais funções do Direito, uma vez que o conceito de “boca morta do direito” fora extinta há muito tempo.

O pensamento Hartiniano no tocante às áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos aplicadores do Direito deve ressaltar a imprecindibialidade do elemento humano à subsunção do fato à norma, com sua função criadora.

 

A perspectiva Kelseniana acaba por ser questionada, pois como é possível haver mais de uma solução correta, se o ordenamento jurídico não é incompleto? Sendo na concepção desse uma “ficção” para operador de direito criar Direito?

Torna-se essencial, pois, não considerar somente a lei como fonte máxima do Direito, mas os valores e princípios existentes nos aplicadores do Direito quanto sua condição humana. Não obstante o cuidado que esses devem ter apara não transcender os limites impostos pelo próprio Direito. Criando, desta forma, um tipo de insegurança jurídica.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942.

BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BUENO, Roberto. Hart e o positivismo jurídico: em torno à hermenêutica e a textura aberta da linguagem do Direito. In: Revista de Informação Legislativa, v. 47, 2010.

FALCÃO, Raimundo. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1990.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio.  Introdução ao estudo do direito, tecnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1988.

GRAU, Eros Roberto, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988.

HART, Hebert L. A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: S. Fabris, 1986.

_______. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução de José Lamego.           Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

SOUZA, Wagner Mota Alves de. A polêmica entre Hart e Dworkin a respeito da textura aberta do direito. Aracaju: Evocati Revista n. 29. maio 2008.