AS PALAVRAS DAS IMAGENS

E DOZE EPIGRAMAS

António Lourenço Marques

(As palavras que ilustram imagens que fui colhendo)

I- AS PALAVRAS DAS IMAGENS

OUÇO UMA CANÇÃO TRANSPARENTE...


Ouço uma canção transparente
E vejo um trilho sem luz.
Cai uma névoa fulgente

Na proximidade da cruz.

Passos e passos de monta,
Um rosto cheio de senso.
E mãos que à sua conta
Cuidaram de um lar imenso.

Restam uma sombra fugaz,
Objetos fartos de uso,
Uma árvore que é capaz
De gritar, como eu acuso:


Qual é que é a razão,
Numa saga tão sentida,
Que só ganha a solidão
Como prémio desta vida? — Em Idanha-a-Velha.

 

OLHAR PARA TODO O ÁLBUM DE DIAMANTINO GONÇALVES

Devo dizer com paixão,
Que estamos perante um hino:
São imagens de eleição
Colhidas pelo Diamantino.

Bastava ser o Fundão!
Mas vai além o destino
Deste mago* cortesão,
Das belezas, peregrino.

* Mago, porque ninguém como Diamantino Gonçalves sabe captar, com tanta elevação, a beleza dos sítios que peregrina.

 

COVA DA BEIRA

Onde o espaço tem nobreza:
as pedras moldaram-se ao cair da chuva
e espigaram à beira do caminho.


Os sulcos vibram ao sol
no cérebro que ali repousa.
E à volta o canto que adoça
o meu lugar de viver. — Em Fundão.

 

SOBRE A COVA DA BEIRA, NUMA MANHÃ FRIA:

Ainda o sol se entremostra,
Numa nesga que o acolhe.
A manhã cresce com a amostra

Do frio branco que colhe.

O Telhado espreita ao fundo,
Com S. Gens a vigiar.
Funde a geada do mundo
Dos corações a pular.

O sol, a terra e o céu
São elementos eternos.
As árvores despem seu véu
E traçam estes invernos. — Em Souto da Casa.

 

O MEU SOUTO DA CASA EM NOVEMBRO

A oliveira é eterna.

O relógio desmandou-se do tempo

e o ponteiro petrificou.

A agulha do pináculo da torre ainda baloiça na memória do vento
com a cruz clamando ao céu.

Um céu que é de chumbo
pousado ao de leve na ladeira do monte. — Em Souto da Casa.

 

A VIA ÁPIA

A Via Ápia corre aqui ao lado.
É uma estrada pavimentada de flores,
Brancas e duradoiras,

Vinda de um tempo muito antigo.

Mas ela já não vai para o Sul,
Para Cápua
Que petrificou à distância.

E se Roma também pereceu,
A Via Ápia continua reta
Passando para o Norte o horizonte.

O pinheiro manso, vigilante entre as ruínas,
Ali, ao Túmulo de Cecilia Metella,
Demudou a sua senha:
São laranjeiras cheirosas
Nestas bandas,
À espera do clímax das cerejeiras.

— Em Fundão.

 

Apanhado num dos meus lugares preferidos:

CAMILO

“Afundo o corpo giboso
Entre o Camilo e Pessoa.
Não quero ser pesaroso,

Gozo uma casa beiroa.

Calhei passar por Lisboa
Em dia muito chuvoso.
Fui perto da Madragoa
Achei um busto lenhoso.

Era o escritor do meu estilo
Mestre dos livros perfeitos.
Só podia ser Camilo
Que está entre os eleitos.

— Em Souto da Casa.

 

SENHORA DA LUZ

Há duas faces na cruz
Coando o sol que declina.
A Virgem em contraluz

Benze de longe a colina.

Cai a tarde com magia.
As cores lembram o rol
Dos mundos de todo o dia
Peneirados pelo sol.

É a Senhora da Luz,
Tem neve e verde felizes.
Do outro lado Jesus
Governa estes matizes. — Em Fundão.

 

ENQUANTO OLHAVA OS TEUS OLHOS VERDES...

Olhava o verde dos teus olhos,
a maresia do céu que se abria nas pupilas,
o vermelho rutilante do astro caído sobre a arena.
E o sobressalto do teu corpo.

E as palavras insonoras mas com música.

Passavam círculos, pontinhos luminosos,
encostas, zéfiros, espumas, levíssimas penas...
rememorações, ecos soltos do tempo,
bafejos, sacrários, sangue...

O longínquo mar azul chegava mais próximo mas mais mudo
com o húmido e a respiração olorosa que montavam no seu cavalo.

Sem frestas e sem muros agora
só as hortênsias azuis desfolhadas voavam
dentro das pupilas do teu céu.
E o azul vibrante, ele próprio, que ultrapassara o mar,
já era essas palavras sem som, sem fantasia,
as memórias coalhadas.·


A mão sentia a mão.

E no verde dos teus olhos, fundiu-se a maresia
do último calor,
quando o sono em volta pousou na última volta.

(In: Entrelaços – Colectânea de Poesia – Poetas do Fudão/Campanha: Uma Telha para a Entrelaços – 2011)

 

MESMO OS CAMPOS EM FLOR

Mesmo os campos em flor
Não escondem a realidade:
A porta que foi penhor

Do tempo da saudade

Ali está entre as outras
Com a boca escancarada.
Lá dentro são manjedouras
Que fartaram a arada.

O feno já não produz,
A fome já se esquivou.
Pior que um arcabuz,

O rombo que aqui levou
Ainda mais que um obus
Tudo à volta mudou. — Em Fundão.

 

De facto, está tudo muito perto. Mas seguindo o caminho chega-se àquelas portas escancaradas. Que venham outros tempos!

MESMO OS CAMPOS EM FLOR….

Mesmo os campos em flor,

Que ficam aquém do monte
Cheios de vida e de cor,
Com um inseto defronte

Das coroloas sacarinas
Cercadas pelas papoilas,
Não escondem as ruínas
Que sepultaram tejoilas*.

O caminho está aberto,
As grades dão proteção,
E a cidade bem perto
Pode iludir a questão:

Nas portas que estão à frente,
Com a vida que fugiu,
Pesa um fado poente
Que aqui já se entreviu.

*Tejoila: Osso do casco dos cavalos.

 

SINA REVOLTA

Há viço neste cipreste,
Que moldura o horizonte
Bastante menos agreste

Que a barca de Caronte.

A raiz colhe no fundo
A sua seiva motriz
Subindo aos ramos segundo
O impulso da raiz.

Entram aí radicais
De terra, água e calor.
Todos são muito iguais
No ato do Criador.
.
Há tumbas na redondeza
E pó que aí se oculta.
O verde, tenho a certeza,
De tudo isto resulta.

As pedras são um sinal
Do tempo que já não volta.
Mas sendo a vida mortal
Tem esta sina revolta. — Em Souto da Casa.

 

CUIDADOS PALIATIVOS

A medicina floriu
Como ciência sem termo,
E desde então atingiu

O que antes era ermo.

Muito se ouvia dizer
Face à doença sem cura:
Não há nada a fazer
Para além de sepultura.

Não tinha nenhum sentido
Esta sentença cruel.
O corpo muito dorido,
Numa uma ânsia sem quartel,

Exigia a medicina
Capaz do mal combater.
Tinha remédios e a sina
De isso ser seu poder.

É cuidado paliativo
Que o conforto considera.
O que é lenitivo
Já não é uma quimera.

Sendo a vida o que é,
Imprópria sem finitude,
Em toda e qualquer maré
Pode ter uma saúde.

E no final, como é bem
O cuidado que conforta!
É alívio que convém
Antes de a vida ser morta. — Em Lisboa.

 

EÇA TEVE A VIDÊNCIA…

Encontrou-se o padre Amaro
Com um cónego e um conde
O segundo de Ribamar

E o outro não sei donde.

Olhavam para o Loreto,
Tendo atrás o Camões.
O tema era um coreto,
Um palco de diversões.

O país em decadência
Era a voz mais comum.
E Eça teve a vidência
De o fim não ser nenhum.

Pois se o que lá vai lá vai,
Ainda estamos assim,
Não vendo como se sai
Deste fadário sem fim. — Em Lisboa.

 

QUE É FELICIDADE?

O que é felicidade:
Estado de alma total
De gozo e saciedade

Alheio a todo o mal?

É um estado permanente
Que nos faz lembrar a glória,
Para além de sermos gente
De dor e de memória?

Adoro ir ao jardim,
Gozar o esplendor da luz,
Ler um livro de Tim Tim,
E mesmo a noite seduz.

São esses ápices gostosos
Com o amor que sentimos,
Em intervalos brumosos,
A dita que possuímos. — Em Castelo Bra

 

FUTUROLOGIA

Quando cresci na infância
Olhava o tempo futuro
Destituído de ânsia

E com brilho sem escuro.

Tudo era previsível
Mais a ciência o dizia
Não importava a que nível
Pois qualquer coisa crescia.

Viu-se como era ilusão
Estando o passado ali logo
Mesmo debaixo do chão
Não deixa de ser um jogo
Que em cada ocasião
E com muito desafogo
Resulta da combinação
Da vontade com o fogo.

Tudo o que nasce é que morre
É cego quem o não vê
É movimento que corre
Quer se crê quer se descrê.

A semente está na terra
Ainda não germinou
O meu desejo é que erra
Nesse projeto que sou.

— Em Lisboa.  (20.05.2012)

 

CERTEZA

Lendo a ciência concreta
Teríamos a consequência
Como certeza mais certa

De infalível contingência.

Mas não é isso que passa
Na real vida da gente:
A incerteza é que traça
Essa certeza aparente. — Em Castelo Branco.

 

O MUNDO TOTAL

O livro é visual
É de matéria palpável
Ao lê-lo, abro o portal
Do mundo que é meditável

— Em Castelo Branco.

 

PIRÂMIDE DE QUÉOPS

Obliquidade cortante
Raio de pedra solar
Tempo que vem do levante
Para nunca mais parar— Em Egito.


MÁRTIR S. SEBASTIÃO

Uma flecha emerge da carne
Muito antiga cheia de musgo
Com flores no lugar do sangue.

— Em Souto da Casa.

 

JOÂO RODRIGUES DE CASTELO BRANCO

Na profundidade deste bronze há uma força
acomodada numa taciturnidade grandiosa.
E se quer sair dali, ficar sem vestes tão estranhas,

fugir com a brisa morna que pode sentir-se à noite ou em qualquer hora fugidia
não precisa de muito
pois é um mestre no ofício mais seguro:
o do canto que admira a alma.
Só precisa do apelo. — Em Castelo Branco.

 

ROSTO, PRAGA E OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE

Na ponte Carlos de negro,
Com ouro pela noitinha,
Mirou-me o rosto quase íntegro
De Kafka, oh graça minha!

E vi os tufos bem perto
E a pedra sexangular
Do túmulo ora deserto
A aguçar o olhar!

Um outro rosto fitou
No café, em pleno porte.
Foi Rilke que iluminou
Alguns mistérios da morte.
(Desenho original adquirido na Ponte Carlos). — Em Praga.

 

A UNIVERSIDADE

Se é ardente aqui o sopro acalma a chama
e mais que o sorriso são os olhos gelados
nos ninhos que os pássaros esquecidos descobrem com o seu pio miudinho atraiçoando o escuro.

Não precisa de haver música.
A baba do caracol está sempre brilhante e húmida,
tão sem tempo eles percorrem todos os refegos da rocha
com as alturas a boiar nas águas da cisterna vibrante,
onde uma fresta de luz torna as cores mais argutas.

Que imensidão vem da profundidade deste poço! — Em Universidad de Salamanca.


Mais umas redondilhas impostas pelo tempo!

QUISERA TER O CENTEIO…

Está um tempo medonho
que contrasta neste ponto
parecem sítios de sonho
num mundo que é mais que tonto

pois o avanço iludiu
uma vida melhorada
até a lida ruiu
e a gente já não tem nada

o campo outrora cheio
mostra silvedo profuso
quisera ter o centeio
antes de entrar em desuso. — Em Fundão.  

 

CAMPO S. LORENZO

Dois quadros monocolor
branco e preto lado a lado
parece um simples dispor

e bem mal apresentado

mas olhem que é Veneza
e o nome vá que não vá
praça e rua são beleza
mesmo nesta vista má

daquilo que a gente gosta
quantas vezes soa mal
há sempre gente disposta
a fazer o ideal.— em Veneza.

 

ADIVINHA

Não é nos Açores
Nem em Siracusa.
Adivinha: flores,
Souto ou drusa?

— Com António Lourenço 

 

ADIVINHA

Não é nos Açores
Nem em Siracusa.
Adivinha: flores,
Souto ou musa?

— Com Luisa Vieira

 

NO ESPAÇO CREPUSCULAR

Há linhas especulárias

No espaço crepuscular.
Estão no negro as sagitárias
A indagar o olhar.

Umas são setas deveras,
Outras recordam o fumo,
Como se fossem resumo
De concreto e de quimeras. — Em Souto da Casa.

 

UMA LEITURA DOS CIDADÃOS DE CALAIS

Como entender o humano,
ter uma ideia geral
exposta em qualquer plano

do seu ser essencial?

Corpo e mente fazem elo
num animal social,
mas para o ser total
ainda não é modelo.

Faltam mais a vontade,
razão e o fazer bem
na condição de ninguém
ter falta de liberdade. — Em Londres.

 

Quando visitei a Basílica de S. Pedro, em Roma, em 1996,e colhi esta fotografia, fiquei impressionado com o túmulo de Alexandre VII de Bernini (1678). Aqui, a mão preta da morte está paradoxalmente dourada, confundindo-se com o instrumento que mede o tempo!

TEMPO SEM TEMPO
O tempo que corre assim
Ao ritmo da ampulheta
Tem princípio, meio e fim.
Fica de fora a mão preta. — Em Roma.

 

HORIZONTES DO FUNDÃO

Horizontes do Fundão:
O campo ao longe maduro,
Molhos de feno que são
Uma mira de futuro.

Não será andar atrás
Vir com este alvitramento.
Melhor que míngua veraz
É confirmar o sustento. — Em Fundão.

 

Extraordinária imagem, colhida na viagem à India,em Banaras, a cidade sagrada do Ganges, de um homem que cria uma obra maravilhosa, contida no seu cérebro a comandar o tear ...

BANARAS, CIDADE DA LUZ

Um homem, uma obra, um tear,
Um saber, um fazer, uma emoção,
Um gosto, uma arte, um olhar:
Banaras, que grata recordação! — Em Índia.

 

KARNAK
Quanto tempo atravessou
Estas aras devotadas!
O céu na mesma ficou
E as pedras, aprimoradas.

Têm folhas todo o ano
Os lotus de pedraria
Talhados de azul tebano,
Numa vista fugidia.

Do alto, grossas colunas
Alinhadas como tropa
Têm formas oportunas
A lembrar uma ciclopa.

Para se ver o encanto
Dos painéis com falo alto
As colunas são um manto
A moderar o assalto.

Na ordem deste deserto
Há a ânsia de ficar,
Sabendo que o que é mais certo
É não tornar a voltar.

— Em Egito

 

 SOSSEGO E VERDE

É como se fosse um rio de silêncio cujas águas marulham quando um carro passa.

Fora disso é sossego e verde envolvendo uma revoada de casas como pedregulhos a deslizar no leito que corre para o poente de onde vem a luz.

A torre assinala o barco que lembra quem por aqui passou sem lhe poder fugir. Vê-se de todos os recantos! — Em Souto da Casa.

 

A Cristovam Pavia, que fez o primeiro verso, e às cerejas:

SUBITAMENTE FICAS NA PAISAGEM

“Subitamente ficas na paisagem”
E eu tenho o teu regaço de donzela.
Descubro o gosto e estou nessa viagem
Dentro de ti no alto da Estrela. — Em Fundão. 


FERNANDO PESSOA

Inesperadamente chega o sábio
Vindo de entre os livros, sem saber
Que repousava ali um alfarrábio
De Pessoa, quis-me parecer.

Desassossegado eu, com tal visão,
Fui ler tudo alínea por alínea
Até chegar em gozo àquele quinhão
Suculento que fala de Polímnia.*

Musa da poesia lírica, referida no texto de Fernando Pessoa sobre a Poesia (“Páginas sobre Literatura e Estética”— Em Castelo Branco.

 

A ribeira do Souto da Casa, nas proximidades do Salgueiral:
CAMPOS SILVESTRES

Pairam rasteiros perfumem
Cheios de auras campestres.
A água toa queixumes:
Tornaram campos silvestres. — Em Souto da Casa.

 

OLHO FELINO

Olho felino ao longe

Abarca todo o seu mundo
E para que se lisonje
Tem um gracejo fecundo.

Se o olhar vai por alto
São pios seguramente:
Está em pose de assalto,
Diria, em fase crescente.

Como termina o meneio,
Como é que acaba o ardil?

Oh! Mimoso galanteio
Faz a corte mais gentil!

— Em Souto da Casa.

 

Ainda uma recordação do tempo das cerejas:

PRIMORES DA NATUREZA

Do sino descem louvores
Desta amável natureza:
Cerejas, uvas, primores
Do campo e da minha mesa. — Em Souto da Casa.

 

CASTELO NOVO

No cume alto da serra
Há castelos de encantar
Castelo Novo encerra
A magia do lugar. — Em Castelo-Novo.

 

Estupefacto? Não sei o que diga. Mas estas extraordinárias figuras surgiram-me há pouco, ali num plácido caminho de Aldeia Nova, e acho-as sugestivas como metáforas da vida portuguesa:

SURPRESAS E MAIS SURPRESAS

Surpresas e mais surpresas
Enchem os dias reais
E se havia certezas
Atenção, já não há mais!

Até a lei fundamental
Que tinha essa missão
Pelo próprio tribunal
Passou-a a ser em vão!

Cortar subsídios não vale,
Não calha dentro da lei,
Rigorosa, por sinal.

Mas um jeitinho, entendei,
Sem ser constitucional,
Faz-se em nome da grei.

BRANCO, BISPO

Branco, bispo, o que é que quereis?

Não custa ver-vos em tal,
Se um Bispo diz que fazeis
Ordenar, sem avental.

Superior ou ministro
Diz aquilo que lhe vem
E acha logo sinistro
Se o Bispo não diz amén”.

 

Uma imagem do caminho das Azenhas, do Souto da Casa:

RIQUEZA VINDOURA

As palhinhas dão-nos conta

Duma riqueza vindoura
Acaso estivesse pronta
Sempre a farta manjedoura. — Em Souto da Casa.

 

A QUEDA DE ÍCARO

O mar pausado não engana
O remanso que colhe na colina
Com os degraus escavados
Ao ritmo das sementes.


O lavrador está atento
E o pastor ao longe.

O sol é firme e faz o seu trabalho,
fundindo a cera no voo mais abrupto,
Perdendo-se nas águas,
Sem o sopro da tentação
De acaso ser um dever divino
Do esquivo Ícaro:

Voar.

 

Gosto de ver ao perto e ao longe e apreciar o colorido (sempre a Estrela):

UM VERGEL

A visão do branco e preto

Não é de recomendar
Se por acaso me meto
Num vergel, levo a matar. — Em Alcongosta Portugal.

 

ADORO ESTE POEMA:

"Bem veloz, a água se escoa;
Mais depressa a frecha voa;
E o vento, sem descansar,

Anda nuvens a arrastar.

Mas passam tão de corrida
Os homens vãos nesta vida,
Que tudo parece lento:
Água, nuvens, frecha e vento."

MARTIN OPITZ (1597-1639)

— Em Lisboa.

 

MONSANTO

Antes que o sol se ponha
Vou feliz para Monsanto
Encontro uma cegonha
Na torre cheia de encanto. — em Monsanto.


HOSPITAL DO FUNDÃO

Aqui está um bom espelho

Da falta de vigilância,

Que acaso, com repugnância,

Resultou de ajoelho.

 

Venderam uma ilusão

Numa obra que ajustava.

Era clara a agressão

Ao bem público que cavava.

(No mural de Fernando Gonçalves)

 

II - PAISAGENS E LUGARES


SOUTO DA CASA

Ainda há uma ordem
Que vai da luz ao poente,
Parecendo uma desordem
Ver seu reflexo de frente. — Em Souto da Casa.

 

ALDEIA DE JOANES

É do mais inspirador
Ver Aldeia de Joanes:
A ave no seu pendor
Memora burgo de manes. — Em Aldeia de Joanes.

 

ALCAIDE

Descem as casas duma altura fresca,
Coram os soutos antes do lilás.
Como lugar, alcança a pitoresca
Aguarela mais linda do cartaz. — Em Alcaide.

 

ALCONGOSTA

Parece irreal, se acaso estejas
P'ra desfrutar o que tanto gosta:
Lembrar-te-ão as cores, as cerejas
Dos jardins suspensos de Alcongosta. — Em Alcongosta Portugal.

 

DONAS

De assombro, as flores fazem parte
Da aldeia que pousa já no vale.
São cerejeiras, acaso um baluarte,
Com as Donas a encher o seu caudal. — Em Donas.

 

TELHADO

Muito ao fundo, perfila-se a montanha,
No recorte mais fino do arado:
Range, range, prenunciando a apanha
Dos cereais, nos campos do Telhado. — Em Telhado.

 

FREIXIAL

Desde um terreiro de mel,
Foi pródigo o seu bornal.
Criança, fui-lhe fiel,
Na lavoura do Freixial. — Em Freixial.


CASTELEJO

Quem olha esta paisagem
Tem vista de romaria:
Está na capela que tem
Honrado Santa Luzia. — Em Castelejo.


ALDEIA NOVA DO CABO

Uma cidade, ao longe, alcantilada
Emparelha, jeitosa, este local.
Aldeia Nova, como se rival,
Tem, na moldura, muito mais entrada.”

— em Aldeia Nova do Cabo.

 

VALVERDE

Não passa pela altura
O que será imponência:
A torre tem a estatura
De Valverde, com fulgência. — em Valverde.


PÓVOA DA ATALAIA

Neste palácio de lírios, que ventura!
Germinou, perfumado, o canto perene
D´ Eugénio. Assombro p´ra quem procura,
Na aldeia, a mansão solene! — Em Póvoa da Atalaia.


SILVARES

Há lugares de eleição
Como se fossem altares:
Cai em tal admiração
Esta vila de Silvares. — Em Silvares.


LAVACOLHOS

Não é miragem banal
Este encanto para os olhos:
É uma aldeia, afinal,
Que só cabe em Lavacolhos. — Em Lavacolhos.


FUNDÃO

Já foi um campo de feira,
Já teve farta vazão,
Miragem que é herdeira
Da riqueza do Fundão. — Em Fundão.

 

ALPEDRINHA

Oh! quanta serenidade
Pressinto nesta barquinha.
Teria muita vaidade
Se vivesse em Alpedrinha.

— Em Alpedrinha.

 

III - UMA DÚZIA DE EPIGRAMAS

I - NICO, NICO...

Nico, Nico, meu rapaz,
Grinalda do alvorecer,
Palmaram-te o rabo atrás,

Levaram-te a adormecer.

Raiava a manhã vistosa,
Saía a noite incolor,
Faltava o Nico da rosa,
Não vinha, cheio de cor.

A vizinhança gritou:
Onde está o nosso cão,
Onde é que ele ficou,
Chamá-lo-emos em vão?

Foi-se com pressa ao canil.
Constara um crime. Soara.
Salvou-se o Nico do vil
Puxão que o atraiçoara. — Em Fundão.

 

II -UM VENTO FALHO DE TINO

Foi lançada borda fora
A arte de muito jeito
Precisa em qualquer hora

De dor sofrida no leito.

Forças negras que sopraram
Uns ventos falhos de tino,
Dias e dias duraram,
Clamando contra o destino.

E o que ficou a valer
Passada a fúria insensata
Sem dó pelo acontecer?

Tirando a sanha ingrata
Revolta com o anoitecer,
Definhar no mata, mata. — Em Fundão.

 

III - ESBELTA CAVALGADURA

Pode ser uma laranja
Caída na curvatura,
Como se fosse uma franja

Da mais leve miniatura.

O vulto mais encorpado,
Que é a cavalgadura,
Não deslinda lado a lado
A sua esbelta figura. — Em Souto da Casa.

 

IV - ENTRE O PRIVADO E O PÚBLICO

Li agora a Filomena
Na entrevista do I.
Esperta, que vale a pena

Dissecar com bisturi.

Pôs as entranhas à mostra
Deste país retardado,
Que ainda mantém a sostra
Ou mancha, como no fado.

Fala lá num engenheiro
Que alimentou destempero
Visto aqui bastante inteiro,
Neste anúncio sem esmero.

Vem a ciência do bem
Publico, tal como importa.
Cavalga o tal desdém
A imagem desta porta.

É um congresso de lei,
Tem os dizeres assim.
Mas o estômago, eu sei,
Não é deste varandim.

Tratou-se de dar o jeito
Entre o privado e o público.
Não teve pejo o sujeito
De fazer o mexerico. — Em Fundão.

 

V - O REI PIO ENTRE AS ESTÁTUAS

Por aqui, mais invisível,
Há uma estátua pendente;
É pequena e sugestível

De ser menos sapiente.

Estão os Reis todos em fila,
Ladeando o escadório;
Há cheiro de camomila
E um lago propiciatório.

É este o Jardim do Paço:
Tem virtudes e potências
E o Pio, que é um pedaço
Mais subtil, entre as hortências. — Em Castelo Branco.

 

VI - OS DOIS HOSPITAIS (ÃO - AIS)

Foi uma bela inveção
Juntar dois hospitais:
Um e outro como iguais

E depois em disjunção.

Foi o caso do Fundão.
Primeiro como os demais,
A seguir como jamais
Seria em dimensão.

O nome como irrisão
De fartas credenciais
Manteve-se ainda mais
Suspenso de objeção.

Mas o assunto em questão,
Que penso vós penetrais
E estou certo que firmais,
É mais um mote vilão. — Em Fundão.

 

VII - FOTOGRAFIA MAL EMPREGADA

Esta da Universidade
Pedir colaboração,
Falando em necessidade,

Para dar formação,
Gratuita por legalidade,
Seria de aceitação
Não fosse a casualidade
Da lei que está em questão
Ser furada de verdade
À primeira ocasião.

O parlamento brincão
Achou a oportunidade
De fazer um figurão
Dando aos bancários de idade,
Se houver um sabichão,
Apesar da austeridade
Ganhar mais um tostão,
Mesmo na Universidade. — Em Castelo Branco.

 

VIII - AS GALINHAS DO QUINTAL…

É deveras esquisito
Haver lei que se oponha
Ao tamanho do ovito,

Gramando coisa medonha.

Dá-se o caso de galinhas
Estarem sempre aprisionadas
E ao ritmo de campainhas
Para serem engordadas.

É vida desanimal,
Que pena de forma feia.
Mas o ovo afinal
É que tem a lei alheia.

Da galinha do quintal
O ovo, mesmo que aquém,
Pelo viver natural,
Agrada muito mais bem.

E isto mesmo se aplica
À sua constituição
Que é deveras mais rica
Que o frango de balão.

Mas a lei, eu digo bem,
Engrandece o aviário,
E no frango que convém,
Tem o efeito contrário.

Havendo lei para o tamanho
Do ovo, coisa pequena,
Seria menos tacanho
Vetar o frango que pena. — Em Souto da Casa.

 

Ao visitar estes lugares de sonho, também dá para recordar a deliciosa RELÍQUIA, de Eça de Queirós (o nosso Guia brilhante, aqui com a bandeira de Portugal!):

IX – RELÍQUIA


Teodorico, é sabido,
Quando o Egito deixou

Ficou muito dolorido
Por finar o que passou.

Preso em Alexandria
Ao nó de Vénus escarlate,
E todo o tempo em folia,
Cometeu um disparate.

Em vez da Esfinge olhar
E as Pirâmides ir ver,
Preferiu o lupanar
Como forma de lazer.

E a Relíquia de linho,
Ou prova da oração,
Foi uma coroa de espinho
Para a sua perdição.

 

Laocoonte, Vaticano. Uma das mais expressivas representações da dor e do sofrimento humanos, provocados, neste caso, pelas "serpentes" do mal...


X - RECORDANDO LAOCOONTE

Os gregos passam apuros

Por estarem no Ocidente.
Deixaram fundos maduros
Foram daqui a semente.

Não há um pacífico intento
De ir até ao final.
Os fundos com este vento
Terão um selo moral? — Em Roma.

 

XI - ANDARILHO

Vejo o Fundão plano a plano
Entre este chão e o brilho.
Pudera ser um engano,
Sinto-me um andarilho. — Em Fundão.

 

XII - TROCADILHO

É singular trocadilho:
João José, numa versão,
Mas se se armar ao sarilho,
Carlos José, porque não? — Em Covilhã, Castelo Branco.


XIII - FRACA DOUTRINA

Não há por cá guilhotina,
Clamava um advogado!
Não querem esta doutrina,
Preferem rolo maçado. — Em Fundão.