Por: Laércio Becker, de Curitiba-PR

“A cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em comum. E a tudo associamos um significado” (Donis Dondis).

Meu amigo Rudinei, fusqueiro devoto e fiel, me mostrou umas fotos de um Fusca no mínimo curioso. Pertencente a um padre aqui de Curitiba, foi pintado nas cores da liturgia católica, da seguinte forma:

  • Branco: tampas do motor e do porta-malas
  • Preto: pneus (cor natural) e interior
  • Roxo: paralamas
  • Rosa: laterais dianteiras e saia dianteira
  • Vermelho: teto; laterais e saia traseiras
  • Verde: portas

A idéia é excelente e o resultado ficou bem exótico, um verdadeiro hino (litúrgico) (e visual) ao Fusca.

Bem, não tenho a mínima intenção de ensinar o padre a rezar a missa, muito menos a pintar seu Fusca. No entanto, considerando os significados das cores litúrgicas, ouso apresentar uma proposta alternativa, que passo a justificar detalhamente.

Mão na tinta e pé na tábua. 

Branco

É símbolo de pureza (Mc 16,5; Ap 3,4-5), alegria (Ecl 9,7-8), inocência (Is 1,18), elegância e nobreza (Ester 8,15), glória celeste (Mt 17,2), santidade (Ap 7, 9-14). “O branco é a cor das vestes de Cristo transfigurado, das aparições dos anjos e dos remidos do Apocalipse. É a veste mais importante da liturgia, pois expressa a alegria e o júbilo do Cristo ressuscitado” (cf. Cansi).

Por tudo isso, simboliza ressurreição, vitória, pureza e alegria, daí ser a cor da Páscoa e dos batizados. Também por isso, é usado na Páscoa, Natal, festas do Senhor, de Nossa Senhora e dos Santos, exceto os mártires.

Em resumo, o branco simboliza o maior júbilo das grandes festas católicas. Do ponto de vista automobilístico, há alegria maior do que estar dentro de um Fusca? Claro que não. Então, nada melhor do que deixar o branco para todo o seu interior (tapeçaria, painel, volante, câmbio etc.).

Sendo símbolo da glória celeste, natural que pintemos de branco também o teto e a antena (para sintonizar a Rádio Aparecida deveria ser de azul, não por causa do rádio Blaupunkt, mas do manto de Nossa Senhora – só que não é cor litúrgica). Por simbolizar a mais luminosa santidade, seria interessante pintar de branco tudo que emite luz, ou seja: os aros dos faróis, as carcaças das lanternas e dos piscas (ou bananinhas, se for o caso), o nariz de placa e eventual caça-mulata. Como simboliza a pureza e o batismo, pintemos de branco o brucutu – que haverá de borrifar água benta no parabrisa (o saco-de-bode nem precisa pintar, já que é originalmente branco). Por fim, já que simboliza a ressurreição, melhor pintar de branco o macaco e a roda do estepe – o botão do afogador já será branco porque, como dissemos, o painel precisa ser branco.

Preto

É símbolo da morte e do luto. Atualmente, pouco usada na liturgia.

Não vejo no Fusca nada que possa ser associado à morte e ao luto. Nem mesmo o Fuscão Preto, de Atílio Versutti e Jeca Mineiro – pelo menos, para o Ricardão que o dirigia. E o Fusca, apesar de ser um carro milagrosamente espaçoso (glória a Deus!), convenhamos que não é muito apropriado para servir como rabecão.

Já que o preto está em desuso na liturgia, não haveria prejuízo em poupar o Fusca dessa cor. Mas o preto não é uma cor e sim a ausência de cor – assim como o pneu, que não é pintado. Então, deixemos o preto nos pneus, até porque seria uma bobagem pintá-los. E se alguém quer procurar nisso o significado de “morte”, que seja: é o luto pelos tomates esmagados, pronto. Também de preto os canos de escape, em luto pela cremação da gasolina nos cilindros.

Ah, lembrei, pintemos de preto as maçanetas internas, em sinal de tristeza por ter que sair do Fusca. Pelo mesmo motivo, pretas permanecem as orelhinhas, que, ao contrário do que eu pensava quando criança, são saídas de ar (Fusca & Cia, nº 40, p. 19; nº 66, p. 33), não entradas entupidas de cerume. Afinal, coloque-se no lugar do ar; não deve haver nada mais triste.

Roxo

É símbolo da penitência. Usado no tempo do advento e da quaresma, também pode ser usado nas missas de exéquias (mortos) e na confissão.

Também não vejo nada assemelhado à penitência num Fusca – salvo, é claro, viver sem ele. Mas prestem atenção nesse detalhe: o roxo é usado nos períodos que antecedem as grandes festas da Igreja: o advento que antecede o Natal e a quaresma que antecede a Páscoa.

Ora, o advento e a quaresma são períodos não só de penitência, mas de preparação para essas festas. Então, podemos compreender o roxo como a cor da preparação para a grande alegria (simbolizada pelo branco). Sendo a grande alegria estar dentro do Fusca, o que nos separa e prepara para ela? A porta, é claro. Desse modo, proponho pintar as portas de roxo. Os estribos também, pelo mesmo motivo. A polaina não, já que é um acessório do paralamas e não tem nada a ver com entrar no recinto sagrado do Fusca.

Uma das maiores lições que o cristianismo nos dá é o alerta contra o egocentrismo. Por extensão, sejamos menos antropocêntricos e imaginemos o regozijo das moléculas de oxigênio e nitrogênio que são brindadas com a graça de entrar num Fusca – que para elas é maior que uma basílica. Então, em homenagem a elas, pintemos de roxo suas exclusivas portas de entrada, a saber, o gela-saco e a grelha (ou “churrasqueira”, que fica no topo da tampa do porta-malas, logo abaixo do parabrisa).

Rosa

É símbolo de uma alegria em meio à expectativa (advento) ou à tristeza (quaresma). Portanto uma alegria mais contida, equilibrada, porque a alegria plena (simbolizada pelo branco) é apenas a do Natal e da Páscoa. Por isso, é usada no Gaudete (“Alegrai-vos”) do 3º domingo do advento e no Laetare (“Alegrai-vos”) do 4º domingo da quaresma. Como, no Brasil, expressa feminilidade, muitos evitam usá-la.

Considerando que o rosa é usado num domingo em meio a outros dominados pelo roxo, seria interessante colocá-lo em detalhes das portas, que são roxas. E como o rosa é símbolo duma alegria contida, porque inferior à da grande festa (simbolizada pelo branco), pode simbolizar a alegria que só é inferior a estar dentro do Fusca (de interior branco). Ou seja, por esses dois motivos, podemos pintar de rosa as maçanetas externas, pois abrir a porta de um Fusca é alegria só inferior à de estar dentro do próprio.

Não por motivos litúrgicos, mas apenas para aproveitar a lata de tinta, pode-se pintar de rosa outros detalhes da porta, como o retrovisor externo e a calha de chuva. O friso não é recomendável, pois ele não se restringe à porta, portanto ultrapassa o limite do roxo.

Vermelho

Lembra o fogo do Espírito Santo e do amor (At 2,3), daí ser a cor de Pentecostes. Lembra o sangue (2Rs, 3,22), daí ser a cor dos mártires e da sexta-feira da Paixão. Como o sangue é simbolizado pelo vinho, o vermelho lembra o vinho e, por conseqüência, também é a cor da Eucaristia (1Cor 10,16; Ef 2,13; Mt 26,28).

Mas também é a cor do pecado (Is 1,18), provavelmente por ser a cor da maçã; cor das prostitutas. No Apocalipse, a Besta e a Mulher embriagada do sangue dos cristãos estão cobertas de púrpura e escarlate, do sangue (Ap 17,3-6).

Bem, pecado é não ter um Fusca! Se o vermelho lembra o sangue e o “sangue” do carro é o combustível, devemos pintar de vermelho as tampas de abastecimento e do porta-malas (onde fica o tanque). Já que o vermelho é o fogo do Espírito Santo, pintemos de vermelho a tampa do motor (já que é à combustão), o botão do acendedor de cigarro (ok, não acende com fogo, mas acende) e a roseta do ar quente (nem acende, mas esquenta). Os mártires, ao morrerem pela Igreja, são símbolo do enfrentamento e defesa da fé cristã: pintemos de vermelho, então, os pára-choques, que enfrentam as adversidades e defendem a fé no Fusca.

Verde

É símbolo de prosperidade (Jr 17,7-8) e da esperança cristã, pois lembra os campos e o fruto não maduro. É usado nos domingos do Tempo Comum e nos dias de semana.

Como se vê, na liturgia, o verde é a cor mais comum e rotineira. O que há de mais rotineiro num carro se não o fato de ele rodar? Reservemos, então, o verde aos paralamas e às calotas. Podemos pintar de verde também as partes que sobraram, por lhes faltar – salvo algum esquecimento de minha parte – algum significado especial, a saber: as laterais e as saias.

Conclusão

Considerando todas essas explicações, acabamos de montar uma proposta litúrgica de Fusca com a seguinte combinação:

  • Branco: tapeçaria, painel (inclusive botão do afogador), volante, câmbio, teto, antena, aros dos faróis, carcaças das lanternas e dos piscas (ou bananinhas), nariz de placa, caça-mulata, brucutu, saco-de-bode (cor original), macaco e roda do estepe
  • Preto: pneus (cor natural), maçanetas internas, orelhinhas (cor original) e canos de escape
  • Roxo: portas, estribos, gela-sacos e grelha (ou churrasqueira)
  • Rosa: maçanetas externas, retrovisor externo e calha de chuva
  • Vermelho: pára-choques e tampas de abastecimento, do porta-malas e do motor, botão do acendedor de cigarro e roseta do ar quente
  • Verde: paralamas, calotas, laterais e saias

Muito importante também é não se esquecer de colocar no painel, ou sobre a tampa do chiqueirinho, uma imagem de Santa Fusca, que já propus para padroeira do Fusca (no meu artigo “Os nomes e apelidos do Fusca”). E outra de São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas.

Para completar, em vez de sachê, poderíamos propor incenso. Mas se você preferir o tradicionalíssimo, inimitável e insubstituível “cheiro de Fusca”, será devidamente perdoado, é claro.

Não ouse o nobre leitor comparar o resultado a uma penteadeira de..., que isso será sacrilégio, pois as cores foram criteriosamente escolhidas de acordo com a semiologia litúrgica. Algo a pensar, com as devidas adaptações, é claro, para eventual revival da Kombi-capela que existiu no Rio de Janeiro, nos anos 60 (Kombi & Cia, nº 2, p. 15). O que estaria bem de acordo com a exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco:

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” (Revista de Aparecida, nº 157, p. 5)

Uma Igreja missionária precisará de muitas Kombis-capelas. Dependendo da estrada, alguns 4x4. Nas cores litúrgicas? Por que não? Vão chamar a atenção dos devotos kombeiros, fusqueiros, opaleiros e assim por diante.

Fontes

BECKHÄUSER OFM, Frei Alberto. Os fundamentos da sagrada liturgia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 196-7.

CANSI OFMCap, Frei Bernardo. Simbolismos encenados. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 123-8.

DONDIS, Donis. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 64-5.

JOÃOZINHO SCJ, Padre. Curso de liturgia. 8ª ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 104-5.