Na continuidade, o narrador ironiza o comportamento do governo de forma a demonstrar o caráter demagógico que habitualmente determina o discurso político:

O conhecido impulso de recomendar tranqüilidade às pessoas a propósito de tudo e de nada, de as manter sossegadas no redil seja como for, esse tropismo que nos políticos, em particular se são governo, se tornou numa segunda natureza, para não dizer automatismo, movimento mecânico ... asseguro a todos quantos me escutam que não existe qualquer motivo para alarme. 7

O narrador destaca ainda, através da voz da personagem, ser esta atitude a de manter as pessoas sossegadas no redil, como uma postura habitual dos políticos: Foi força do hábito, reconheço que o termo alarme não deveria ter sido chamado a esse caso. 8 

Diante dessa declaração, nota-se uma ironia ao poder da linguagem dos governantes sobre a qual Márcio Alves da Fonseca discorre:

Considerável privilégio daqueles que tem os meios de atuar de uma maneira que passa fundamentalmente pela linguagem e por sua capacidade de fazer com que o outro aceite uma representação da realidade que não tem necessidade de ser objetiva para ser crível ..., mas que é concebida para apresentar a realidade a seu favor e servir aos seus próprios fins. 9

Para Roland Barthes, A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. 10 E por isso A língua entra a serviço de um poder. 11 . Por outro lado, Barthes observa que há um meio de se conseguir fugir do poder opressivo da linguagem: ... só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poderio, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu chamo, quanto a mim: literatura. 12

De acordo com essa concepção, pode-se entender que as constantes inferências do narrador de As Intermitências da Morte consegue trapacear a linguagem porque o acontecimento é exposto para que apresente um sentido ambíguo evidenciando assim, um efeito intencional possível à linguagem literária que faz emergir uma posição crítica das situações comentadas pelo narrador.

O seguinte recorte revela que a igreja também é ferrenhamente criticada, dessa vez o narrador utiliza a voz do seu próprio representante:

A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra cousa que contradizer a realidade, e aqui estamos ...a nossa especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso....Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço... 13 .

Observa-se que o narrador utilizando a ironia posiciona-se negativamente em relação à religião. Ele alude sobre a manipulação dos fieis pela Igreja, através do discurso religioso ou do poder da palavra que segundo Aristóteles, caracteriza o homem como um animal político por ser detentor do logos, traço que faz com que o homem realize plenamente suas potencialidades. Assim o narrador manifesta que a Igreja habituou-se de tal maneira às respostas eternas. 14 De acordo com o narrador nota-se que o logos dito por Aristóteles constituiu sempre a força que manteve a igreja no domínio dos discursos conveniente as suas doutrinas, ainda que a realidade a contradiga. Quanto ao medo pendurado ao pescoço, o narrador sugere que ele foi e continua sendo um mecanismo de coação utilizado pela igreja, já que o medo manifesta a fragilidade humana tão fácil de ser corrompida pelas influências. O narrador evidencia seu autêntico anticlericalismo neste trecho, insurge-se contra a religião semelhantemente a Karl Mark que a considera responsável por uma falsa imagem dos problemas humanos. Marx também criticou a acomodação das verdades religiosas como mecanismo de submissão pregada pela religião aos fiéis.

A figura de Deus é criticada no seguinte trecho: Deus tem autoridades sobre a morte, perguntou um dos optimistas, São as duas caras da mesma moeda, de um lado o rei, do outro a coroa 15 . Convém destacar que a presença de Deus na obra saramaguiana é completamente profanada. No trecho destacado, o personagem divino, representante da vida é por outro lado igualado à morte. Assim, o narrador revela um deus híbrido, valendo ressaltar que este tipo de deus não aparece apenas em As Intermitências da Morte. No Evangelho Segundo Jesus Cristo, também é descrito com dupla face; a do Bem e a do Mal: Jesus olhou para um, olhou para o outro, e viu que, tirando as barbas de deus, eram como gêmeos, é certo que o diabo parecia mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele induzido. 16