As cinco empadinhas

Quando cheguei à panificadora, não fazia a menor ideia da situação que eu enfrentaria, pois adentrei o lugar no intuito de apenas comer alguma coisa e depois ir embora pra casa tranquilamente.

Mas não foi isso que aconteceu. Ao me dirigir ao balcão de guloseimas para escolher qual eu comeria, vi algumas empadinhas que despertaram o desejo. Sim, era o que escolhera para me saciar a fome naquele início de noite. Depois de um dia intenso de trabalho e outros afazeres, aquele pedido, sem dúvida, iniciaria com chave de ouro minha noite de relax. Dar-me-ia esse enorme prazer de saborear empadas com uma bela xícara de café com leite.

“Quatro empadas e um café”, pedi à caixa para, com a notinha de compra, dirigir-me ao balcão e repetir o pedido, agora à balconista, moça de sorriso bonito e olhar vivaz. Após receber o lanche numa pequena bandeja plástica, dirigi-me a uma das mesas e sentei-me calmamente para começar minha degustação. Mas, antes de começar a comer, algo me chamou a atenção: na bandeja havia cinco e não quatro empadinhas. Conferi a nota que me fora devolvida rasgada pela balconista e pude confirmar o pedido feito: quatro empadinhas e um café com leite. Mas... Então por que havia cinco empadinhas em minha mesa e não quatro como pedira e conforme pagara? No momento do recebimento não havia notado a diferença, pois, de outro modo, teria devolvido imediatamente a empadinha sobressalente. Porém, a percepção do erro apenas na mesa, pronto para degustá-las, levou-me a pensar um pouco mais sobre isso. Fez-me procurar entender o que o ocorrera e o que explicaria tal fato. De repente, vários pensamentos tomaram minha mente para tentar responder à questão: Por que recebi cinco empadinhas e não quatro?

Enquanto adoçava meu café, comecei a elaborar algumas hipóteses. Quem sabe isso me levasse a alguma explicação plausível diante dessa dúvida que me pairava na cabeça.

Sutilmente, olhei para a balconista. Ela é quem errou ao me entregar cinco salgadinhos e não quatro. Vi que ela olhou para a notinha antes de rasgá-la e me entregar de volta. Como poderia ter confundido o número quatro com o número cinco? Ou será que não foi um equívoco de fato? Teria sido, talvez, algo proposital? Será que a balconista me entregou cinco empadinhas totalmente consciente da troca? Discretamente, olhei mais uma vez para ela a fim de captar, quem sabe, uma reação, uma impressão diferente ou estranha em seu rosto. Nada.

Mas então por que ela faria isso? Qual o propósito?

Usando essa linha de raciocínio, eu passaria a procurar essa resposta, ainda sem entender nada.

Então, nesse entendimento, algo me vem à mente: Teria me oferecido por cortesia? Não, não parece coerente. Ela teria dito que se tratava de uma cortesia seja lá por qual motivo fosse. Falaria em nome da empresa.

A não ser que... quem sabe... estivesse me flertando. Mas, assim, sem me conhecer nem nada? Ou então, quem sabe, me observa já algum tempo e esperou por uma oportunidade como essa pra chamar a atenção e... Será? Não estaria viajando demais nessa ideia? Será que eu estaria vendo coisas?

Olhei novamente para perceber, quem sabe, algum olhar malicioso de volta ou, quem sabe, um sorriso maroto...

Porém, não percebi nada. Ela seguia atendendo aos outros clientes, ignorando-me totalmente.

Bem, cada vez aumentava mais minha curiosidade. Essa hipótese estaria totalmente descartada. Flerte... Ora, mas que ideia...

Então tive que pensar em algo mais plausível. Mas a linha de raciocínio da entrega consciente não fora descartada. Apenas a explicação de sua motivação é que fora abandonada. Assim, pensei que talvez a balconista estivesse me testando. Sim, um teste. Quem sabe não se trata do interesse de saber a minha reação diante da constatação da falha. Estaria ela aguardando a devolução da empadinha que sobrava?

Olhei discretamente para a balconista mais uma vez e vi que ela não parecia se interessar por minha mesa, não me direcionava a atenção nenhuma vez. Talvez estivesse disfarçando bem e, na verdade, apenas aguardasse meu comparecimento com a quinta empadinha e, assim, fingisse surpresa ao ver meu gesto. E aí eu seria aprovado no teste. E por que o teste? Alguém pedira? Norma da empresa? Consultoria? Pesquisa de honestidade? Verificação do perfil do cliente? Por que, afinal?

Olhei para moça do caixa. Ela digitara corretamente o pedido. Teria reparado a entrega errada também? O teste seria conhecido de todos? Quem sabe todos os funcionários presentes estivessem cientes do teste? Esse pensamento me fez sentir vergonha por alguns segundos.

O motivo da troca seria esse? Testar minha honestidade? Será que eles sabem que sou evangélico? Combinaram de testar um evangélico hoje? Quem sabe um questionamento religioso entre os funcionários os levaram a decidir: “testaremos todas as religiões através de um pequeno teste de honestidade entre elas” Então hoje eu fui escolhido.

Será então que esse teste dirá qual religião, para eles, é a mais autêntica e transformadora do homem? Querem saber qual delas convence o homem de seguir o caminho justo? Quem sabe um budista já tivesse sido testado. Um judeu também. E também um mórmon. Eu estaria agora na berlinda e estaria reprovado por enquanto. Quem sabe essa pesquisa não fora encomendada por uma empresa de segurança, ou de seguros para calcular possíveis pequenas perdas que, ao longo do ano, somam um grande prejuízo. Ou será que essa pesquisa não foi de um acadêmico empenhado em sua dissertação de mestrado sobre comportamento humano em tempos de crise econômica ou de acordo com o grau de instrução, ou quem sabe até através de seus referenciais de dignidade e respeito e cidadania? Isso mesmo, deve ser uma pesquisa sobre cidadania. Ou não.

Se for isso, algo começa a me incomodar. Começo a ficar preocupado com a impressão de minha atitude, pois hesito em devolver a empada. Prefiro esperar mais um pouco e pensar mais sobre isso enquanto começo a saborear a primeira empada com café.

A verdade é que minha cabeça viajava. Logo abandonava essa hipótese e me agarraria a outra ideia, claro, mas leve para minha consciência. A hipótese de que o erro fora inconsciente. Absolutamente sem querer.

É claro que essa possibilidade não me impede de devolver a empadinha, apenas me dá mais tempo para pensar ou, até mesmo, diminuir minha vergonha, pois até agora não posso ser considerado desonesto. Não até que alguém se dê conta de que tenho uma empada a mais das que pedi.

Porém, esse tempo para pensar e a consequente demora talvez atuem contra mim, pois, ao devolver a empada, possivelmente a balconista perceberá que houve demora na devolução, o que contaria também contra mim. Afinal, sentei à mesa e tive mais condições de perceber o erro. Uma demora poderá ser interpretada como uma possível quase cedência à tentação de comer a empada a mais.

  Então, sinto-me desconfortável do mesmo modo. Claro, é a consciência que acusa que alguma coisa está errada. Isso me cobra alguma atitude e a ausência dela sela a sensação de erro, que fica pior a cada volta do ponteiro do relógio. Minha consciência acusa-me e me força a fazer algo. Dizer algo. Comendo a terceira empadinha, sinto como se o pratinho fosse uma espécie de ampulheta horizontal e, no lugar de areia, acabam-se aos poucos as empadinhas. Cada empadinha a menos me mostra que se aproximava a hora de fazer algo, de resolver a situação. Mas o quê? Como deveria sair dali? Qual seria, a esta altura dos fatos, a melhor solução?

Preocupado, porém, ainda com fome, peguei a quarta e penúltima empadinha, ou última de um ponto de vista mais ético. Não poderia considerar a quinta empadinha com sendo a última, pois, via de regra, não deveria comê-la. Apesar de, em muitos casos, agir por impulso e ceder à minha vontade carnal e irracional, neste caso tenho muitos motivos para não cometer esse erro. Apesar da vontade de comer a quinta empadinha, não posso desconsiderar a existência de minha consciência a me avisar, ou mais que isso, a me advertir de que devo escolher um caminho mais coerente com o que penso, digo e até ensino a outras pessoas.

Quando dou palestras a grupos de estudantes, organizações sociais, associações de moradores e até intelectuais em universidades, simpósios, fóruns sociais e similares, sou taxativo em acusar políticos, empresários, burocráticos, banqueiros, especuladores e demais segmentos ligados ao poder político e financeiro de maiores responsáveis pelos desajustes sociais, pelas mazelas, miséria, falta de políticas humanitárias e, por conseguintes, melhores oportunidades de vida à nossa população, às nossas pobres classes C e D. Afirmo que tudo começa com a corrupção. Acordos escusos, contratos fraudulentos, políticas antissociais, compra de votos, falta de rigor à fiscalização aos direitos dos cidadãos, especialmente aos trabalhadores, aqueles que sustentam a economia, falta de investimentos em educação, produção científica, tecnologia, produção de bens, serviços, geração de emprego, enfim, uma ausência total de compromisso para com a pessoa humana, as camada mais desfavorecidas da população. E afirmo que a culpa de tudo isso é exatamente a falta de ética, a falta de consciência desses agentes da manutenção da pobreza e carestia.

Como poderei continuar a cobrar desses agentes da miséria social em aulas e palestras se eu mesmo não puder praticar a ética que tanto lhes peço?

Dei-me mais alguns segundos para pensar. Fechei os olhos e refleti em tudo que pensara nos últimos vinte minutos e, finalmente, tomei uma decisão. Seria isso mesmo. Sem voltar atrás.

Seguro de mim, levantei-me, deixei na mesa a última empadinha com a xícara vazia e fui embora.