Jansenismo[1] 

O jansenismo possui três diferentes aspectos: o dogmático, que trata sobre a graça e o pecado, representado pelo Augustinus de Jansênio; o moral, sobre os Sacramentos, principalmente da Eucaristia e a Penitência, tendo como principal promotor Antonie Arnauld; e o disciplinar, relativo sobre as relações com as autoridades eclesiásticas, no qual o defensor é o abade de Saint-Cyran. 

Jansenismo Dogmático

Os aspectos dogmáticos dão sustento e origem aos demais. Baseiai-se em uma leitura crítica de Santo Agostinho e nas propostas de Baio. O ponto central do jansenismo dogmático é uma antropologia pessimista. Assim, o homem torna-se um jogo entre graça e concupiscência.

Quem peca é porque não tem graça. O homem não tem mérito nas boas obras que faz. Ele só as realiza em virtude da graça eficaz. A consequência lógica do jansenismo é a doutrina da predestinação, logo Cristo não morreu por todos os homens, mas só por aqueles que se salvam. Todas essas doutrinas estão presentes no “Augustinus”, de Cornélius Jansênio. 

Jansenismo Moral

Diante de Deus árbitro absoluto de nossa sorte, que escolheu a seu bel-prazer um pequeno número de eleitos e somente por eles morre, a atitude mais espontânea é o temor, não o amor. “Deus odeia e despreza toda a multidão dos pecadores, tanto que na hora da morte, momento em que o estado deles pode ser considerado mais deplorável e triste, a sabedoria divina unirá o escárnio e a zombaria à vingança e a irá que os condenará às penas eternas”  (Blaise Pascal) 

Jansenismo Disciplinar

A nível disciplinar, o jansenismo advoga uma reforma da Igreja que elimine as perniciosas novidades introduzidas desde o tempo dos antigos padres e os desvios operados por escolásticos e jesuítas. O que vem a acontecer, fruto das sucessivas condenações de que o jansenismo foi vítima, é que se advoga um aumento da autoridade da hierarquia local, em detrimento da do Papa. 

Antecedentes do Jansenismo 

As controvérsias sobre a graça

Uma leitura extremada da posição de Santo Agostinho, que exalta o primado da graça sobre o mérito humano, em contraposição aos pelagianos, influenciou os reformadores e teve papel importante na gênese do jansenismo. Para Lutero, o homem após o pecado original, perdeu toda a capacidade de optar pelo bem. Logo, a liberdade foi aniquilada pelo pecado, assim não se pode falar em livre arbítrio;

Os jansenistas, ainda que negassem Lutero, sofreram influência desse reformador. A posição da Igreja Católica foi de reprovação. Então, o Concílio de Trento não conseguiu resolver totalmente a questão, e salvaguardou os dois elementos: a graça de Deus e a liberdade do homem. 

Miguel Baio

Na tentativa de reconciliar os reformados com os católicos surge Miguel Baio. Ele concluiu a seu modo que em Adão, ainda estando no Paraíso, a graça santificante e a integridade ainda não eram dons sobrenaturais. Depois do pecado original o ser humano fica escravizado pela concupiscência, a capacidade para as boas obras passa a ser sobrenatural, pura graça.

As teses de Baio foram censuradas por diversas Universidades europeias. A disputa prosseguiu e Roma teve de intervir, e em 1567 surge a bula Ex omnibus afflictionibus, de Pio V, que condenou 79 proposições de Baio. Ele submete-se e jura fidelidade ao Concílio de Trento, porém continua defendendo algumas ideias, justificando sua proveniência das Sagradas Escrituras e dos Padres da Igreja. 

Início e desenvolvimento do Jansenismo 

Cornélius Jansênio

Cornélius Jansênio é o grande expoente do Jansenismo. Homem de estudo, grande memória, perseverança e tenacidade. Porém também de espírito duro, seco, gelado, ambicioso e tímido. Nasceu em 1585, em Acquoy, sul da Holanda. Estudou nas Universidades de Utrecht e Lovaina. Durante seus estudos, tem contato com as ideias de Baio e orienta-se para o agostinianismo. Falece em Paris, não antes de deixar sua obra para ser publicada, o “Augustinus”. 

O Augustinus

Obra que expõe e defende a doutrina de Santo Agostinho. Efetivamente publicada em 1640, na Holanda, propagando-se para Alemanha e outros países. Alcançou muito sucesso e foi louvada inclusivamente por calvinistas. Divide-se em três tomos.

Tomo I: Oito livros. Expõe a história do pelagianismo e do semipelagianismo. Refuta minuciosamente todos os seus pontos.

Tomo II: Nove livros. Analisa as relações entre filosofia e teologia, criticando com dureza os escolásticos e a filosofia aristotélica. Descreve o estado de graça e a liberdade do homem original, bem como a essência do pecado original e suas consequências. Nega a possibilidade do estado de natureza pura e a impossibilidade de o homem poder amar a Deus naturalmente.

Tomo III: Dez livros. Contém a parte principal da obra. Modo de sanar a natureza humana e recuperar a liberdade através da redenção de Cristo. Nega a vontade salvífica universal e a possibilidade de observar certos mandamentos. Ocupa-se ainda do livre-arbítrio, da conciliação entre graça e liberdade, da predestinação e das diferenças entre Santo Agostinho e Calvino.Termina com uma síntese dos erros de vários teólogos modernos. 

Abade de Saint-Cyran

Jean Duvergier de Hauranne tornou-se amigo de Jansen em Paris, e passaram ambos alguns anos em Bayonne. Em 1620, Duvergier tornou-se abade comendatário de Saint-Cyran, donde provém o nome por que se tornou conhecido. Segundo o historiador Giacomo Martina, as personalidades dos dois amigos eram complementares, pois enquanto Jansen era o teórico, Saint-Cyran orientava-se para a ação, para a realização. Deste modo, Jansen foi o primeiro grande teórico do jansenismo, o seu primeiro fundador, Saint-Cyran foi o verdadeiro fundador do jansenismo francês e o grande impulsionador da nova doutrina. Deste modo, tornou-se diretor espiritual do mosteiro de Port-Royal, que tinha como superiora a madre Angélica Arnauld. Esta, durante alguns anos, deixou, com outras monjas, o convento de Port-Royal e dirigiu o convento das Filhas do Santíssimo Sacramento. 

Antoine Arnauld

Aontonie Arnauld  foi discípulo de Saint-Cyran e o seu grande continuador. Durante mais de cinquenta anos defendeu o jansenismo através dos seus escritos, com uma grande tenacidade e uma incansável obstinação, dedicou-se a responder a todos os ataques, intervindo em todas as polêmica causadas pelo jansenismo. 

A Comunhão frequente

A propósito da conveniência ou não de comungar frequentemente, Antoine Arnauld decidiu entrar em cena com um livro sobre esta temática destinado ao grande público. Foi a sua primeira obra, publicada em 1643, e tinha por título De la fréquente communion. Na primeira parte da obra, o autor explica a prática da Igreja primitiva, Na segunda parte, expõe-se a forma da penitência anterior à comunhão, A terceira parte da obra fala dos frutos da comunhão. Esta obra teve um grande sucesso, sendo louvada inclusivamente por teólogos e bispos. 

Port-Royal

Este mosteiro de beneditinas, a dado momento, ficou sob a orientação espiritual de Saint-Cyran. Uma vez que em Port-Royal entraram seis irmãs da família Arnauld, com seis sobrinhas, o mosteiro era praticamente uma espécie de casa de campo da família. A vida religiosa não tinha ali qualquer significado: não se observava a clausura nem a modéstia no vestir. Sob a direção de Saint-Cyran, Port- Royal tornou-se o grande centro do jansenismo, vida espiritual daquelas religiosas passou a ser dominada por angústias e escrúpulos. Algumas aproximavam-se do sacramento da penitência com terror, receosas de não estarem preparadas, e não se atreviam a receber a absolvição. Os mesmos temores rodeavam a comunhão. Associados a Port-Royal estiveram também os chamados “solitários”. Tratava-se de um grupo de homens que decidiram viver solitariamente, junto do mosteiro, praticando uma vida de estudo e oração, sem votos religiosos, com liberdade para entrar e sair e para deixar aquele modo de vida quando quisessem, entre eles estiveram Antoine Arnauld e, durante algum tempo, Blaise Pascal, cuja intervenção foi importante na história do jansenismo. 

As cinco teses

As teses tratam basicamente e sintetizam  o conteúdo do Augustinus. Em 1649, um professor de uma universidade submeteu as teses para uma apreciação e segundo sua opinião sintetizava o Augustinus. A discussão era tanta que enviaram as teses a Roma a fim de que o papa tomasse uma decisão. Papa Inocêncio X no dia 31 de maio de 1653 formalizou a condenação das teses através da bula Cum occasione.

As teses são as seguintes:

  • Alguns mandamentosde Deus são impossíveis para os justos, com as forças que têm no presente, embora queiram e se esforcem, e também lhes falta a graça que os torna possíveis.
  • No estado de natureza decaída nunca se resiste à graça interior.
  • Para merecer e desmerecer, no estado de natureza decaída, não se requer no homem a liberdade de necessidade, mas somente a liberdade de coacção.
  • Os semipelagianosadmitiam a necessidade da graça interior preveniente para cada um dos atos, mesmo para o início da ; e nisto eram hereges, em quererem que essa graça fosse tal que a vontade humana lhe pudesse resistir ou obedecer-lhe.
  • É semipelagiano dizer que Cristomorreu e derramou o seu sangue por absolutamente todos os homens. 

Pasquier Quesnel e a Bula “Unigenitus” e o fim do Jansenismo Francês

Pasquier Quesnel nasceu em 1634, estudou em colégios jesuítas e foi ordenado sacerdote. Era de tendências rigoristas e propensas ao Jansenismo. Pendeu para o agostinianismo, mas conhecia bastante bem a obra de Santo Tomás de Aquino.Tinha uma forte orientação Galicana. A partir de 1666, Quesnel começara a compor um livro intitulado Réflexions morales sur le Nouveau Testament, impregnado de ideias Jansenistas.

A obra Réflexions Morales, de Quesnel, fora denunciada em Roma já em 1703. Após análise, foi condenada pelo breve Universi Dominici Gregis. Contudo, mais uma vez por causa das liberdades galicanas, o documento não foi aceite em França. Alguns bispos, porém, decidiram proibir a obra nas suas pastorais, e tiveram a ideia duma pastoral conjunta. Outros bispos, contudo, opuseram-se.

Vendo o perigo duma cisão no episcopado, Luís XIV  mais uma vez solicitou ao papa uma condenação definitiva, o que veio a acontecer em 1713, com a bula Unigenitus, em que se condenavam 101 proposições retiradas das Réflexions Morales. Com a morte, em 1719, de Quesnel, o jansenismo ficou sem chefe. Com esta morte e o fim de Port-Royal, podemos dizer que o jansenismo francês teve o seu fim. 

O Jansenismo na Holanda e na Itália

Na Holanda o jansenismo era visto com certa simpatia. Estava perto de Lovaina, o primeiro centro do movimento, onde Jansen defendera as suas ideias. Acolheu por diversas vezes alguns dos grandes nomes jansenistas, como Arnauld e Quesnel, além doutros. Desde o início do séc. XVII, a Holanda, território maioritariamente protestante, era administrada eclesiasticamente por um Vigário Apostólico.

Por alturas das grandes polêmicas jansenistas, o vigário era Johan van Neercassel, que exerceu essa função de 1663a 1686, que também se notabilizou por um certo rigorismo. O clero holandês era mais severo e exigente, e por isso olhava com simpatia para o jansenismo, tão diferente da tibieza verificada em muitos cristãos. Os protestantes olhavam os católicos com desconfiança mas, pelo contrário, nutriam certa simpatia pelos jansenistas.

Na Itália, o jansenismo assumiu o significado quase exclusivamente político que referimos. De notar apenas o famoso sínodo de Pistóia, realizado nesta cidade toscana em 1786. Sob a direção do bispo Scipione de Ricci, com o apoio de jansenistas holandeses, franceses e italianos, e com a presença de 234 sacerdotes, este sínodo pretendeu realizar reformas e dar o impulso para a criação duma Igreja nacional. 

O Jansenismo visto pela Igreja Romana

O jansenismo, a maior controvérsia doutrinal do séc. XVII, exerceu uma influência em larga escala sobre a vida dos cristãos, não tanto no seu aspecto dogmático e disciplinar/político, que acabaram por se extinguir, mas sobretudo no seu aspecto moral e sacramental.

A espiritualidade jansenista, procurando escapar ao devocionismo para se centrar no essencial, acabou por transformar Deus num ídolo, ao fazer dele um juiz terrível e poderoso, dono absoluto da nossa sorte. Uma relação com tal deus baseia-se no temor. 

 Referências Bibliográficas 

CRISTIANI, Monsenhor. Breve história das heresias: sei e creio, enciclopédia do católico no século XX. Trad. José Aleixo Dellagnelo. São Paulo: Flamboyant, 1962.

JEDIN, Hubert. Manual de história da igreja: reforma, reforma católica e contrarreforma. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Vozes, 1996.

MARTINA, Giacomo. História da igreja de Lutero a nossos dias, II: a era do absolutismo. São Paulo: Loyola, 1996.

TCHULE, German. Nova história da igreja III: reforma e contra-reforma. Petrópolis: Vozes, 1983.

ZAGHENI, Guido. A idade moderna: curso de história da igreja III. Trad. José Maria de Almeida, São Paulo: Paulus, 1999. 

[1] O autor, Samuel Colombo Pirola, é Bacharel em Filosofia, graduando em Teologia e especialista em Liderança e Administração Eclesiástica.