As cantigas da cigarra e da formiga na fábula de La Fontaine

 

Karen Tatyane Cavalcante dos anjos

 

Resumo: A partir das teorias de Gilles Deleuze e Michel Foucault sobre a arte e a linguagem, nos propomos a analisar as cantigas dos personagens de uma das fábulas da literatura infantil de La Fontaine narrada em cd áudio, A cigarra e a formiga.  Pretendemos através deste trabalho, descobrir se o canto da cigarra junto ao canto das formigas trabalhadoras produz um novo sentido e, se produz em que medida isso acontece.

Palavras-chave: fábula, literatura, devir, arte, sentidos, linguagem.

A partir deste trabalho refletiremos a cerca da junção das cantigas dos personagens da fábula: A cigarra e a formiga, e não sobre esta obra deLa Fontaine em seu total. Porém para facilitar a compreensão faremos um breve resumo da mesma.

A história inicia-se com a narrativa sobre as formigas que trabalham armazenando comida e ao mesmo tempo cantam:

1, 2, 3 sacos de farinha
4, 5, 6 sacos de feijão
Trabalhando
Dona Formiguinha
Vai enchendo aos poucos seu porão

numa marcha seguida como se fosse um hino.  No entanto, a cigarra o dia todo,

apenas canta, observando as formigas que trabalham incessantemente. Então quando chega o inverno as formigas se recolhem, pois têm alimento para toda estação, e a cigarra faminta e com frio vai à casa da formiga pedir abrigo. A princípio a formiga se recusa e pergunta à cigarra o que ela fez durante todo o outono. E a cigarra responde que cantou e que seu canto alegrava o trabalho das formigas. Porém a formiga não considera o canto da cigarra um trabalho e diz: As formigas também cantam sem parar de trabalhar. Continuando a cigarra diz que este canto é muito triste e que se unissem suas cantigas ficaria melhor. Então a formiga chama as demais companheiras e pede que cantem com a cigarra, ao fim concorda com a mesma e a convida para ficar em sua casa. E a cigarra continua a cantar:

Sou feliz
Cigarra cantadeira
Canto a vida, canto a luz
Pois quem cantar
Canta a vida inteira
Torna os sonhos mais azuis
De que vale um tesouro
Junto às flores do arrebol?
Quem quiser que junte todo o ouro
Eu prefiro a luz do sol

A música da cigarra é suave e lírica, porém junto à cantiga das formigas não faz diferença alguma, pois a cigarra a adéqua dentro do ritmo da melodia das formigas.

Segundo Deleuze só produz sentidos o que é arte, e arte não é copia do real, significa por si mesmo e em si mesmo, é o puro devir. Aquilo que significa para um passado e para um futuro, e causa sensações no leitor. E este cada vez que lê ou vê uma obra de arte pode perceber diferentes sentidos, pois a arte é linguagem e vice versa. E a linguagem, segundo Foucault 1996, é infinita.

Na cantiga da cigarra junto a da formiga o sentido continua o mesmo: a formiga continua representando uma classe operária trabalhadora que despreza aquilo que não considera trabalho, enquanto a cigarra representa aqueles que fazem seu trabalho acima de tudo por prazer, pois a cigarra considera seu canto lírico também um trabalho e diz que este alegra o dia e o trabalho das formigas.

Para Deleuze o devir está na verdadeira arte, a incompletude, esta possibilidade de o objeto não encerrar em si próprio, faz os sentidos derivarem de acordo com quem faz a leitura e com a situação e tempo em que o faz, significando em si mesma.

Uma vez que literatura é arte não é qualquer coisa que pode ser considerada literatura. Assim,

(...) a literatura segue a via inversa, e só se levanta quando descobre sob as pessoas aparentes a potência de um impessoal que de modo nenhum é uma generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível (...)  (DELEUZE, 1993 – p. 3,4)

Dessa forma (...) escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor (...) (P. 08), ou seja, o escritor nunca vai escrever a mesma coisa, sempre diferente, pois cada vez que se lê é algo diferente, é sempre inacabado, incompleto. Pois a arte não se faz com experiência do vivido, não existe possibilidade de verossimilhança. A arte é linguagem em si mesma, pode-se dizer que é a única coisa que se conserva no mundo. E na constância para ressignificar a linguagem parte para o infinito. (...) O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. (P. 213) Ou seja, o envolvimento e sensações que a arte é capaz de causar no homem.

            O perceptos é uma rede de sentidos de significação e o afectos é o devir não humano do homem, os sentidos incompletos em nós. E(...) o artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto de vê ficar de pé sozinho. O mais difícil é que o artista o faça manter-se de pé sozinho. (...) (P. 214)

Neste sentido, o canto da cigarra unido ao da formiga na fábula de La Fontainenão pode ser considerado arte, pois não produz um novo sentido, tanto as cantigas quanto as melodias não são auteradas, apenas juntadas, adaptadas uma a outra, continuando o mesmo sentido. O fato de juntarem suas cantigas não da possibilidade a criação de nenhum sentido diferente. As formigas continuam trabalhando e cantando e a cigarra cantando, e a melodia também não é modificada, não traz nenhuma novidade, se for transcrita para a partitura, percebe-se que não há alteração no arranjo musical. Apesar de convencer a formiga e nos atrair, não é capaz de nos invadir e nos envolver profundamente.  E segundo Deleuze a arte é justamente isso, e o artista é mostrador de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá. (...) (P. 227)

Como pudemos compreender arte também é linguagem e linguagem é arte. Deste modo segundo Foucault

(...) escrever para a cultura ocidental, seria inicialmente se colocar no espaço virtual; da auto-representação e do redobramento; a escrita significando não a coisa, mas a palavra, a obra de linguagem não faria outra coisa além de avançar mais profundamente na impalpável densidade do espelho, suscitar o duplo desse duplo que é já a escrita, descobrir assim um infinito possível e impossível, perseguir incessantemente a palavra, mantê-la além da morte que a condena, e liberar o jorro de um murmúrio. (...) (Foucault, 1963 – P. 49)

Assim a fábula deLa Fontaineé llinguagem e dá possibilidades para que as cantigas da cigarra e das formigas possam criar novos sentidos e significações, mas isso não acontece e os sentidos se encerram em si mesmos. No entanto é preciso compreendemos que arte e linguagem andam juntas e caminham para o infinito, significando em si mesmas e criando o novo em cada momento e circunstância, criando um passado e um futuro a partir do próprio presente, significando e conservando-se perenemente.

                                                                                                                                              

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O eu é a filosofia? Trad.: Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Editora 34 (coleção TRANS).

__________. A literatura e a vida. Paris, 1993.

FOUCAULT, Michel. A linguagem ao infinito. Tel quel, nº 15, outono 1963.