AS CADUQUICES DO MEU AVÔ E A ORIGEM DOS HETERÔNIMOS

Eu ainda era menino, estava no primeiro ano do antigo ginásio e estava lendo um poema do Ricardo Reis, um heterônimo de F.P. para grifar as palavras que eu não entendia, quando meu avô, sempre muito curioso, colocou seus óculos de leitura, inclinou-se sobre a mesa e disse:

                “Ah! O Reis! Conheço muito bem essa história...”

                “Como conhece, vô? O Ricardo Reis é um heterônimo do Fernando Pessoa”, respondi surpreso com o comentário.

                 “Você é que pensa. Ele existiu em carne e osso. O Fernando Pessoa é que andou inventando essa coisa de que ele era um heterônimo. Era nada. Ele mostrava os poemas pro Pessoa que os divulgava como se fossem dele ou aquele que era ele, mas não era”.

               “Mas vô, isso aconteceu em Portugal e você nunca esteve lá, retruquei”.

               “Isso é o que dizem nos livros. O Pessoa passou uma boa parte da sua vida aqui no Brasil. Eu mesmo encontrei com ele várias vezes em Copacabana. Estava sempre nos cafés bebericando. Cansei de vê-lo na confeitaria Colombo”.

               “E os outros heterônimos?”

               “Ora, ora. Será que eu vou ter que explicar tudo”.

               “Tudo o quê vô?”

               “Que não existiu nenhum hetero...?”

               “Heterônimo vô”.

               “Então...  nunca existiu nenhum. Tudo invenção do seu Pessoa, um português metido a besta. O Caeiro, por exemplo, eu também conheci!”

               “Ai é demais né vô! Você conheceu o Caieiro?”

               “Claro que conheci. Muito prazer sou eu mesmo. Em carne e osso”.

               “Ai não dá! Quer dizer que você é o Alberto Caieiro? Você está zuando comigo!”

               “Pois vou lhe contar tudinho. Numa das viagens do Pessoa pelo Brasil, eu o conheci e como falei, era um sujeitinho empertigado, metido a besta, com aquele bigodinho que mais parecia o Charles Chaplin. Estava tomando meu cafezinho ali em Copacabana quando ele se aproximou e pediu para sentar-se à minha mesa porque o estabelecimento estava lotado. Sentou-se, puxou uma caneta e um caderno de anotações e desandou a escrever. Nisso ele observou que eu também estava escrevendo em meu diário. Como o gajo estava muito curioso, perguntei se queria ler e ele prontamente concordou. Era um poema chamado “O Guardador de ovelhas” que eu já vinha escrevendo há um bom tempo. Ele leu, leu, releu e depois disse se eu não me incomodaria que ele levasse para mostrar para uns amigos. Não me opus porque não gostava mesmo do poema. Escrevi por escrever, ora... E foi aí que conheci o tal Pessoa e nas outras vezes em que nos encontramos nem me lembrei de perguntar pelo poema, mas ele me disse num nos nossos rápidos encontros que seus amigos haviam gostado muito e pediu meu nome para publicar numa revista literária em Portugal. Eu disse que não se incomodasse e deixasse o poema como anônimo. E foi assim que escrevi o poema e ele se apossou colocando o nome de Alberto Caieiro e mudou o título. Talvez ele tenha achado que eu tinha cara de Caeiro”.

               “Quer dizer então que o senhor escreveu todos os poemas do Caieiro?

Apenas alguns. Os outros ele copiou meu estilo ou se aproveitou das conversas que tivemos sobre a vida em contato com a natureza, sem metafísicas”.

               “Caramba, vô, então você é o tal. Nunca imaginei que tivéssemos um poeta de tão grande gabarito em casa!” Disse tentando conter o riso.

               “Você não viu nada meu filho! Se soubesse que muitos dos poemas do Drummond foram copiados de um caderno que eu deixei para ele ler lá em Minas...”

               “Essa não vô. Até o Drummond?”

               “Pois é, você acha que eu sou pouca porcaria? Por trás da minha humildade, tem um grande poeta. Nunca me gabei de nada e muita gente se aproveita da minha modéstia para se engrandecer. Aliás, nunca mostrei os poemas que eu escrevi. Escrevo porque gosto e gosto de verdade. Um dia vou lhe mostrar. Não são essas coisinhas do Pessoa e do Drummond, não. São coisas bem melhores”.

               “Ah vô essas eu quero ver. Juro que quero ver”.

               “Está bem, vou lhe mostrar, mas não vá dizer depois que são seus os versos. Concordei e fomos até o seu quarto. Abriu a velha mala de couro e tirou um livro velho, bastante manuseado e disse”.

               “Está escrito aí que são do Garcia Lorca, mas são todos meus. Não gosto de me exibir”.

               “Mas quem é esse tal de Frederico Garcia Lorca?” (na época eu nem sabia de sua existência).

               “É um espanhol de Andaluzia com quem eu me correspondia nos anos 30. Ele publicou meus poemas e ainda me mandou um exemplar. Nem para colocar meu nome na dedicatória. Um ingrato”.

               Eu já estava desconfiando de que alguma coisa estranha estava acontecendo com o meu avô. Depois dessa tarde inusitada fiquei ainda mais apreensivo. Falei com a minha mãe sobre a nossa conversa, mas ela não deu muita importância até o momento em que ele apareceu na cozinha todo engravatado dizendo que ia sair porque tinha uma reunião com o ministério. A partir daí começamos a trancar as portas para evitar que ele saísse sozinho.

               Mas um dia ele saiu pela manhã e nunca mais voltou. Só levou o livro do Garcia Lorca. Meses depois ele foi localizado em uma pequena cidade do interior de São Paulo em um abrigo. Estava magro e abatido, mas continuava tendo crises paranóicas. Contou minha mãe que no seu último encontro ele lhe falou ao pé do ouvido: “Minha filha! Estão querendo me envenenar porque eu sei muita coisa e eles tem medo de que eu possa acabar com essa roubalheira. É o chá da meia-noite.  Não me deixe dormir senão eles me dão o chá e adeus...”. No dia seguinte ele estava morto e eu nunca pude saber ao certo porque ele havia inventado aquela história maluca dos heterônimos e da autoria de poemas do Drummond e do Lorca.  Muito tempo depois ainda ficava a matutar: Se o Fernando Pessoa vivia a inventar personalidades poéticas, porque não aceitar que o meu avô tinha lá o direito de ter os seus delírios?