Juscelina Santos do Nascimento

Este artigo é um exercício de leitura da obra De vôos e Ilhas: literatura e Comunitarismos (2003) de Benjamin Abdala Jr. Para isso, adotamos o conceito de Atlântico Negro, que pode ser um valioso operador cultural para se estudar e compreender a complexidade da atual condição social, cultural e política das populações negras da diáspora. A expressão Atlântico Negro é uma metáfora que contempla trânsitos culturais, linguísticos, literários e históricos sobre os quais se formam as culturas modernas, caracterizadas por disputas, tensões e hibridismos. Assim é no Brasil, Angola, Estados Unidos e em outros países. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, pois este artigo foi originalmente apresentado como parte da avaliação da disciplina Clássicos das Literaturas e das Culturas dos Países de Língua Portuguesa, ministrada pelo saudoso Prof. Dr. Benjamin Abdala Jr., no departamento de Estudos Comparados   da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dalí resulta uma reflexão crítica sobre os trânsitos culturais na Modernidade e Pós-Modernidade e que continuam produtivos até os nossos dias.

Palavras chave: Transculturalidade, Estudos Comparados, Diáspora, Literatura.

INTRODUÇÃO

A noção de Atlântico Negro tornou-se mais popular nos estudos literários e culturais brasileiros com a sistematização de estudos de Paul Gilroy, publicada com o nome The Black Atlantic2Na referida obra, o autor analisa o espaço geopolítico do Oceano Atlântico, em uma perspectiva simbólica, na qual ele constitui o principal mediador das trocas e trânsitos culturais ocorridos no mundo moderno.

O assunto deste trabalho é o conceito de Atlântico Negro como operador cultural para estudos de relações entre o Brasil e alguns países africanos, sendo que essa leitura será mediada pela leitura do livro De vôos e Ilhas: literatura e Comunitarismos (2003) de Benjamin Abdala Jr. O objetivo deste exercício é mapear algumas balizas teóricas, históricas e conceituais para a leitura do Atlântico Negro. Essa tarefa demandaria, certamente, uma próspera revisão de literatura sobre conceitos abundantes da crítica literária e cultural contemporâneas, bem como a escolha de termos não conflitantes. Contudo, colocarei à baila termos convergentes e divergentes, mas que dialogam, em certa medida, com a noção de Atlântico Negro. Outro recorte necessário delimita o alcance deste mapeamento pelos textos lidos no curso e por outros por ele reclamados.

Noções de transculturação, globalização, hibridização, entre-lugar, crioulização e desenraizamento permeiam esse apontamento. A partir delas, ampliam-se alguns conceitos operacionais que, ao meu ver, compõem a noção mais densa de Atlântico Negro. Desde finais dos anos 80, essas noções aparecem nas discussões sobre as trocas culturais e literárias, sob diferentes aspectos e como operadores para múltiplas relações.

DISCUSSÃO

O Oceano que nos separa também nos une

Partindo-se do estudo da bibliografia do curso Clássicos das Literaturas e das Culturas dos Países de Língua Portuguesa, logo se percebe a ostensiva presença de operadores culturais/literários específicos: hibridismo, comparatismo, entre-lugar, terceira-margem, territorialidade e desterritorialidade, estereótipo, trânsitos, trocas, dentre outros.

Esses termos relacionam-se intimamente ao arcabouço teórico presente em outras obras. Trata-se de The Black Atlantic (1993), de Paul Guilroy, O Trato dos Viventes, de Luís Felipe de Alencastro, O Local da Cultura, (2000) de Homi Bhabha e Identidade Cultural e Diáspora (2001), de Stuart Hall. Outros textos há, mais antigos e mais recentes, que tratam das relações de configurações de identidades culturais na modernidade.

The black Atlantic (2001), do sociólogo Paul Gilroy, propõe, de início, uma viagem marítima pelo Universo construído através do Atlântico Negro. Essa expressão [...] refere-se, metaforicamente, às estruturas transnacionais criadas na modernidade que se desenvolveram e deram origem a um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais. A formação dessa rede possibilitou às populações negras, durante a diáspora africana, formarem uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, americana, ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo. 3

A expressão ‘Atlântico Negro’ vincula-se, portanto, a algumas premissas: 1) o fato histórico da existência do colonialismo e da escravização de povos negros; 2) o Oceano Atlântico como mediador dessas relações de hibridização e de desterritorialização; 3) esses como elementos que não podem ser delimitados por fronteiras étnicas nem nacionais. Nesse particular, cabe salientar a ênfase dada por Gilroy à inadequação, hoje, dos conceitos fixos de soberania dos Estados-Nações, de Raça e de outros termos da modernidade, até hoje empregados como marcos definidores de povos e culturas.

O conceito de ‘Atlântico Negro’, de Gilroy, amplia a discussão dos anos 90 sobre globalização, cultura, identidade, multiculturalismo, fronteiras e hibridismo. Seu mérito está na visão desses elementos como conceitos políticos flutuantes que não têm um sentido imanente, nem tampouco uma razão temporal e geográfica imutáveis e definitivas.

Fundamental em sua argumentação é a noção de diáspora com uma acepção positiva que engendra novas dinâmicas de identidades, trocas, territorialidades e pertencimentos. O que diferencia seu emprego da idéia de degredo e catástrofe, sem qualquer aproveitamento.

Nessa perspectiva, a compreensão das identidades políticas, econômicas e culturais forjadas nos trânsitos pelo Atlântico desloca a potencialidade dos vínculos sanguíneos e geográficos da territorialidade fixa, como elementos determinantes das identidades, para centrá-los na cultura. E na cultura como produto de realizações humanas que não são exclusivas de um povo, de um tempo ou de uma raça. Nessa concepção, a cultura ou as culturas de qualquer povo estaria irremediavelmente permeada por relações diretas e indiretas de outros constructos sociais.

Assim sendo, o raciocínio engendrado pelas correntes do Atlântico Negro, suscita, novamente o fato de que o agente cultural – escritor, coreógrafo, político, arquiteto – está preso à impossibilidade de ser radicalmente original. Essa falta de inventividade pura, contudo, não deve ser valorada com a escala de melhor/pior, fonte/influência. A impossibilidade de ser puro é colocada como condição para existir enquanto ser social.

O estado cultural, político e econômico de hoje é, então, fruto de contatos e trocas ocorridos no passado, em territórios diversos: colônias na África, Estados Unidos e Brasil. Nas decisões sobre o cultivo da cana-de-açúcar no Caribe, no Brasil e em África. Nas concorrências em torno das lavouras de algodão, da Vírgínia, da Carolina do Sul e de Portugal. E, de forma mais rápida e intensa, nos navios – híbridos territórios móveis da modernidade.

Ao negar qualquer possibilidade de pureza na pós-modernidade, Gilroy declina da propriedade de se usar, hoje, formas enraizadas de identificações, como as sugeridas pelos movimentos negros dos anos 60: o movimento da negritude, the black panthers, black power, dentre outros.

Operar as relações dos países do norte com os países do sul a partir do Atlântico Negro, da desterritorialidade e do hibridismo cultural, ao invés de ater-se a uma cultura territorialmente delimitada, cujos ícones seriam os aspectos físicos dos seus ocupantes requer novos posicionamentos e uma ressignificação dos pressupostos teóricos com os quais operamos o tema das identidades, do Estado-Nação, da economia e política nacionais até agora. Isso por que [...] Sob a chave da diáspora nós poderemos ver, não a raça, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem4.

Embora não tenha nascido em Gilroy, a angústia do pertencimento ambíguo dos povos negros, asiáticos e outros periféricos, à modernidade e pós-modernidade ocidentais, constitui um ponto fértil para discussão. O fato é que os povos da diáspora criaram modos de existir, pensar e digerir a modernidade ocidental, a catástrofe que lhe foi imposta e toda sua plataforma de legitimidade: obras, autores, mitos, ciências e religiões. Esse saber ancestral permanece e atualiza-se nos discursos das gerações mais novas. No entanto, essa elaboração de modos de existir, numa sociedade e cultura complexas e excludentes, não foram compreendidos pelos grupos hegemônicos ocidentais, como manifestação de inteligência, nem de valor.

Todos no mesmo barco

Poucas vezes apresenta-se a Europa como um continente crioulo5: híbrido, impregnado de culturas diversas. A França de hoje, com cerca de 8% da população judia e mais 22% de imigrantes de outras nacionalidades. A Inglaterra com os indianos. Portugal com os africanos, e assim por diante. Essa combinação – é certo que, nem sempre pacífica – altera as feições da cultura, da política e da economia locais, dando a essas nações traços de crioulidade6, heterogeneidade e hibridismo que surgem dos atritos e das trocas cotidianas impostas pela necessidade da convivência com o outro e da auto-afirmação nesse universo plural.

Tomando o caso do triângulo formado por Portugal, Angola e Brasil, observa-se que a economia colonial do 1º Império, abalada pela Guerra dos Trinta Anos, encontrou grandes perspectivas de recuperação nas rotas do Oceano Atlântico. Trata-se da exploração da Costa da África, de um lado, e do Brasil, de outro. A alteração da topografia atlântica pelas metrópoles era tal, que havia a pretensão, da Inglaterra, de conquistar a África “do Cairo ao Cabo”, cortando o continente verticalmente. De forma análoga, Portugal projetou o “mapa cor-de-rosa”, no qual Angola e Moçambique, juntos, são representados sobre a Europa portuguesa. [...] fizera-se da mesma forma evidente em Lisboa que o Brasil tinha continuidade fora das fronteiras americanas, em Angola. Cartas régias, provisões, contratos da Coroa, atas dos conselhos palatinos, difundiam o postulado enunciado na guerra anti- holandesa: Angola sustenta o Brasil, o qual sustenta Portugal.7

O espaço, portanto, apresenta-se como uma entidade fluida e deslizante, sobretudo nas relações coloniais e culturais. Alguns dos elementos responsáveis pela alteração da geografia atlântica foram as diásporas e as transculturações intensificadas pelo colonialismo, quando africanos, espanhóis, portugueses, árabes dentre outros forjaram o perfil singular das Américas, e do Brasil, em particular.

Em meio às maciças entradas de africanos e de colonos para o Brasil, também houve o movimento inverso. O Brasil, durante muito tempo, exportou mercadorias para a África e Europa, contribuindo para a manutenção da política colonial e beneficiando-se com ela. Eram montarias, cana-de-açúcar, cachaça, tecido, farinha, carne e peixe secos, além de nzimbos e de soldados, governadores e missionários religiosos, dentre outros agentes, que inseriram o Brasil na rota de transformação da economia e da cultura modernas.

Segundo Luis Felipe de Alencastro8, as relações entre Brasil, Portugal e África, perfaziam, basicamente, cinco percursos, variáveis de acordo com a conjuntura política e econômica e com os movimentos sazonais. Em um primeiro movimento, as frotas portuguesas em viagem, sujeitas às monções que atrasavam as viagens e causavam perdas de tripulação, de escravos e de montarias, resultaram no fornecimento de cavalos do Brasil para a África. Além disso, o Brasil era uma parada estratégica para os europeus, devido à presença de corsários no mar e de variações climáticas.

Um segundo movimento do Brasil na rota do Atlântico deu-se com a Independência. Essa obrigou o fim da rota triangular, porém não fez cessarem as relações com Portugal, Holanda e África. Pelo contrário, o “ciclo da mandioca” (século XVII) aumentou os contatos entre os dois lados do Atlântico e definiu outros campos de exploração: o índio e o negro. O roteiro desse negócio envolvia Portugal, Angola, Recife, Bahia, Rio de Janeiro e Peru. O Brasil trocava a mandioca por escravos e por prata peruana contrabandeada.

O Brasil, como apoio logístico ao colonialismo em África, forneceu para Angola e Portugal: açúcar e cachaça, além da produção de ração para escravos e tripulação de navios negreiros. A entrada da ex-colônia no mercado operado através do Atlântico barateou os custos da operação colonial e ajudou na adaptação de escravos, comerciantes estrangeiros e aventureiros. Isso porque a cultura alimentar brasileira rapidamente se espalhou pela África e Europa. Além do que, algumas culturas de plantas asiáticas contribuíram muito para a melhoria das condições alimentares das redes de tráfico.

De certa forma, a segurança dos mares próximos ao Brasil, a facilidade da rota de contrabando de prata e os produtos alimentícios brasileiros contribuíram para a longevidade do tráfico de escravos. Outro fator de encaixe do Brasil na economia-mundo foi a exploração do nzimbu9 baiano para Angola. Isso quebrou o monopólio econômico do Congo que era o principal fornecedor dessa “moeda”. O nzimbu baiano, exportado em grande escala, desvalorizou a moeda, provocando uma grande inflação. Daí resultando a tomada de uma medida antiinflacionária pelo rei do Congo, Mbiki-a-Mpazu (d. Álvaro III, 1615-22).

Nas relações estabelecidas entre o Brasil e a outra margem do Atlântico, o Rio de Janeiro, Bahia e Luanda eram lugares cobiçados pelas potências européias devido a suas posições estratégicas. Nesse espaço cada vez mais escorregadio, o Brasil passou a contrabandear açúcar e escravos para a América Central e logo já era considerado um rival da ex-metrópole, pois os brasileiros também exploravam a África e com influências cada vez maiores. Dessa forma, o Brasil tanto lutou, ao lado de Portugal, na expulsão dos holandeses que ocuparam Angola, em 1650, quanto perpetrou uma grande carnificina de gentes africanas, matando os sobas e escravizando os negros.10 Além de haver transplantado para a ação exploratória em África as experiências de captura de índios e de lutas contra os quilombos. Isso exemplifica a intenção brasileira de também colonizar a África, começando sua empreitada por Angola.

Outro movimento brasileiro que modificou substancialmente as formas de relacionamento entre os povos da diáspora foi o luso-tropicalismo11 que concebe uma especificidade positiva ao colonialismo português. Em Portugal, o luso-tropicalismo constituiu um braço forte da ideologia colonial, durante o Estado Novo. Não só no Brasil e nas colônias portuguesas, mas em outros países, a teoria da “mestiçagem feliz” e da democracia racial cunhada por Gilberto Freyre, tornou-se presente como um elemento caro à noção de troca e globalização12, de modo que ainda hoje, a igualdade material entre determinados grupos   tem nas teorias de Freyre um dos maiores agentes complicadores.

Ancorados por histórias e linguagens

Para além de fatos históricos e conceituais que diluem o Brasil nas correntes atlânticas, também são incontestáveis as relações culturais e literárias que inserem-no no Atlântico Negro. Em De vôos e ilhas: literatura e comunitarismo13 (2003), tem-se um exame dessa situação, a partir da análise e de um aproveitamento diferenciado do conceito de utopia.

A obra já admite, de saída, a constatação de traços comuns entre os países de língua portuguesa, como as tradições histórico-culturais que remontam a Idade Média. O autor centra-se na Língua Portuguesa, como elemento ativador das dinâmicas das culturas e literaturas dos referidos Países, dentro do que examina os mecanismos linguísticos, como elementos comuns entre os sistemas nacionais.

O autor recupera a cronologia das formações nacionais do Brasil, de Portugal e dos PALOPS e considera que, cada qual a seu tempo, porém, marcados por circunstâncias peculiares e ao mesmo tempo globais, são envolvidos por diferentes formas de imperialismo. No século XVI: o Imperialismo mercantilista que implicou na invasão européia do Brasil e do Continente Africano. No século XVIII o Imperialismo Inglês e suas formas de intervenção, que acelerou a ocupação e exploração das colônias e , posteriormente, a descolonização, e, finalmente, o Século XX, com o Imperialismo norte-americano.

Também em Heterogeneidade, transculturação, hibridismo: a terceira margem da cultura latino-americana 14a noção central de descentramento e de pertencimentos múltiplos dos produtos culturais, aqui exemplificados pelas obras de Guimarães Rosa e de seu impacto em outras literaturas, indica um caminho teórico possível para discutir-se as literaturas de países ditos periféricos.

Das obras De vôos e Ilhas: literatura e Comunitarismos e Literaturas em movimento: Hibridismo cultural e exercício crítico emergiram alguns questionamentos que serão retomados futuramente. As proposições seguintes têm no conceito de Atlântico Negro seu possível melhor operador textual. Um exemplo possível desse trânsito cultural é difusão do mito do Sebastianismo, que transcende as fronteiras de Portugal e, em situação de abandono e desalento das comunidades politicamente órfãs, ressurge, com um significado ideológico semelhante ao “original”. Esse fato deu-se no Brasil, no discurso de Antonio Conselheiro, também em Angola, Moçambique entre outros países de língua portuguesa15.

A incorporação de tais crenças, em paragens longínquas das outras margens do Atlântico ilustra a produtividade desse espaço de trocas e perlaborações que é o Oceano Atlântico, em que pesem a força do colonialismo no imaginário das ex-colônias e a valorização dos mitos fundadores metropolitanos sobre as narrativas locais.

Hoje, é certo que a globalização já impôs a todos os países, e a quase todas as culturas, os fluxos e influxos de outras séries culturais, de modo que já não há lugares desconhecidos, intocados ou impossíveis de serem alcançados pelo homem de qualquer cultura ou país. A globalização da economia e seu similar no âmbito da cultura diluiu as fronteiras e alterou, de forma irremediável, a geografia e os rumos da cultura, política e economia mundiais.

Outra questão que emerge em torno da noção de Atlântico Negro é a investigação dos modos pelos quais o Imperialismo norte-americano, a guerra-fria e o pós-Segunda Guerra, no bojo de suas contradições, colaborou para a aceleração das independências nacionais em África e para a insurgência, nos Países do Sul, de um novo [...] intelectual, a menudo un intelectual diaspórico, sensibilizado com los problemas ligados a la desterritorializacion, com transformaciones importantes en la perspectiva de su observación, situado em um espacio disciplinário diferente de nuevas confluências, com intereses plurales y renovadamente crítico16.

A consciência do processo criativo como um elemento de engajamento nas Literaturas de Língua Portuguesa constitui, também e na mesma medida, uma tendência contemporânea? Ou seria um fato circunstancial?

Se considerarmos que nessa série cultural maior (comunidade de Língua Portuguesa), os países mais antigos tiveram momentos em que suas literaturas eram expressões de um jogo estético, de tentativa de assimilação dos moldes europeus etc e que os países africanos têm menor vivência dessa natureza, devido a serem os mais jovens nessa relação de primazia ocidental, seria razoável explicar a arte africana tendo como parâmetro os teóricos ocidentais? Como pensar um sistema literário africano baseado na estética ocidental, na consciência da técnica literária ocidental, se essa expressão cultural, em muitas de suas representações, constitui-se uma reserva de justiça, de política e de Direitos Humanos, antes mesmo de querer-se literatura?

Segundo o autor, a apropriação, a paródia e outros instrumentos teóricos da literatura moderna não se referem á bricolagem, mas a uma forma de dessacralização da obra de arte. Parece-me, porém, que o emprego consciente das técnicas literárias não é condição bastante e suficiente para constituir a literatura. Principalmente as periféricas de outros tempos, quando as ‘intenções’ do artista eram outras, que não a estética, e quando a tecnologia não permitia o trânsito de informações em tempo real.

Até porque a dessacralização pressupõe o conhecimento fundo do original e de seu status de coisa de valor. Pressupõe a consciência e vontade de macular esse original. Nas séries brasileiras: Mário de Andrade e muitos dos modernistas com relação ao parnasianismo e ao romantismo. Em Portugal, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro entre outros modernistas, bem como Cardoso Piris, Saramago e outros contemporâneos. E em África? Que momentos, autores e obras nos colocam claramente o problema da sacralização/dessacralazição da obra de arte ocidental e da discussão teórica que a acompanha? Seria indispensável ao estudo das Literaturas Africanas buscar nelas indícios de pertença a essa série cultural ocidental,  através dos instrumentais   da Teoria da literatura como tradicionalmente a concebemos?

Contudo, os discursos das críticas brasileira e portuguesa frisam sempre essas influências, como se não fosse possível aos países africanos pensarem estratégias – estéticas ou sociais – antes de nós, ou melhor que nós. Exemplo dessa aproximação é a construção da sintaxe por Guimarães Rosa, onde as inovações são palavras multi-híbridas e a oralidade é gritante. Não seria mais plausível crer na existência desses recursos em África antes de em Guimarães Rosa – considerando-se a riqueza de línguas e a crioulização das culturas?

Á GUISA DE CONCLUSÃO

Partindo da leitura das obras De vôos e Ilhas: literatura e Comunitarismos e Literaturas em movimento: hibridismo cultural e exercício crítico, constata-se a impossibilidade de operar expressões culturais ditas periféricas, como as literaturas do Brasil e dos PALOPS, apenas com os pressupostos teóricos da Teoria Literária convencional. Daí a importância de se pensar no conceito de ‘Atlântico Negro’ como um operador cultural, passível de ser aplicado em futuros trabalhos. Considerando sua abrangência semântica que envolve descentramento, desterritorialização, hibridismo, diáspora, crioulização e transculturação, o ‘Atlântico Negro’ indica balizas teóricas, históricas e conceituais para se pensar os modos ambíguos e conflitantes com que os países periféricos entram na modernidade e na pós-modernidade, sem, contudo, fazerem parte dela.

REFERÊNCIAS

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3 Eufrázia Cristina Menezes Santos. In. Revista de antropologia. Nº1.

4 Paul Gilroy. O Atlântico Negro. P.25.

5 O termo criolo e crioulização tem uma de suas acepções primeiras no campo da Lingüística. Segundo Diva Bárbara Damato, a crioulização diz respeito à [...] língua formada por contribuições de importância variada, de línguas indígenas, européias e africanas e forjada, durante a colonização, pelas condições de sobrevivência nas plantações. In: Literaturas em movimento, 2003, p. 36. Contudo, a expressão crioulo e crioulização, na acepção do comparatismo, é aquela cunhada por Edouard Glissant, em O discurso antilhano. Ele opõe a criolização ao fenômeno da francisação.

6 [...] A crioulização, que é um dos modos do emaranhado – e não apenas uma resultante lingüística – é exemplar só nos seus processos e não certamente nos seus conteúdos a partir dos quais eles funcionariam. É o que faz nossa diferença com o conceito de crioulidade. (...) O que nos impulsiona não é apenas a definição da nossas identidades, mas também a relação delas com todo o possível: as mutações mútuas que este jogo de relações gera. Edouard Glissant. A poética da relação. 1990. p. 103.

7 Luis Felipe Alencastro. O Tratado dos Viventes. Cia da Letras...p.217.

8 Luis Felipe Alencastro. O Tratado dos Viventes. 2001.

9 Nzimbus eram pequenas conchas marinhas, abundantes no litoral da Bahia e do Congo que, durante algumas décadas do século XVII, tinham valor de moeda em algumas regiões africanas.

10 Ver as expedições de Salvador de Sá, em Angola e de Raposo Tavares, no Brasil.

11 A partir de Casa Grande e Senzala (1933), o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, propôs uma visão diferente para se pensar a história e as contribuições de cada povo formador da cultura brasileira. Na sua visão, [...] A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo o que o grosso do que se pode chamar de “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. (...) Sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se. (Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. P.60).

12 Claudia Castelo, em O mundo que o português criou, analisa a recepção das teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre, e sua influência sobre a ideologia colonial portuguesa no período de 1933 a 1961, quando o sistema colonial recrudesceu na África, agravado pelo salazarismo.

13 ABDALA JR. Benjamin. In: De vôos e Ilhas; literatura e Comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003

14 Marli Fantini. In. Literaturas em movimento: hibridismo cultural e exercício crítico. São Paulo: arte& Ciência, 2003. p. 51 a 65.

15 Eduardo Lourenço. Mitologia da Saudade.

16 Ana Pizarro. Cuestiones conceptuales: mestizaje, hibridismo... 2003, p.21