PARA A HISTÓRIA DOS CUIDADOS PALIATVOS EM PORTUGAL:  AMATO LUSITANO (1511-1568)

Introdução

Os cuidados paliativos são um avanço recente da medicina, situando-se o início da sua fase científica na década de 60 do século XX, após o trabalho pioneiro da médica inglesa, Cicely Saunders, falecida em 2005. Perante o indivíduo com uma doença “fora das possibilidades terapêuticas” de cura, aquela precursora defendeu que o médico devia continuar ativo, e “usar” a medicina de acordo com as necessidades, contrariando uma atitude não incomum de abandono do doente ou, em alternativa, de prolongamento de medidas também chamadas heróicas, mas fúteis e irrealistas. A famosa frase “já não há nada a fazer”, proferida pelo médico, ressoava com demasiada insistência nas fases mais avançadas das doenças incuráveis.

Mas, agora estava mais claro que a medicina, com os seus prodigiosos avanços, não se esgotava quando a doença arrastava consigo o fim da vida. O estudo que C. Saunders desenvolveu sobre a natureza da dor crónica, a dor total com aspetos físicos, psicológicos, sociais e espirituais, e o seu tratamento foi uma arma poderosíssima para impor o novo modelo de assistência, reagindo assim à prática médica clínica que, paradoxalmente, se ia desumanizando à medida que a tecnologia, por seu lado, ia crescendo no ambiente das instituições médicas.

 Então, a pergunta é esta: como é que, no passado, os médicos lidaram com a questão da doença incurável ou quais são as raizes históricas dos cuidados paliativos? Haverá nas épocas anteriores contributos inquestionáveis para a história desta área da medicina? Nas curas de Amato Lusitano, médico nascido em Castelo Branco, em 1511, e falecido em Salonica, em 1568, que podemos ler na sua obra Centúrias de Curas Medicinais, colocasse esta questão. Há aí alguns sinais sobre o modo como este médico, erudito em Hipócrates e Galeno, tratou as pessoas com o prognóstico de doença mortal. Se aceitamos que a história da ciência é um caminho que vem de longe, e que obrigatoriamente teve que passar por certas posições, Amato Lusitano é uma referência a considerar.

 

O prognóstico na medicina hipocrática

A questão das doenças incuráveis assumiu, logo nos primórdios da medicina científica ocidental, na Grécia antiga, um especial relevo. O prognóstico constituiu uma das partes mais importantes da medicina hipocrática. Littré, grande especialista da obra do genial médico grego, afirmou que o prognóstico foi o “ponto culminante” dessa medicina. Para o médico, prever o curso das doenças não era um mero facto de adivinhação, mas uma conclusão racional construída com base na experiência e no conhecimento. Os médicos tinham em conta o passado da doença, a história clínica, observavam o que estava a acontecer ao doente e permitiam-se, depois, sondar ainda o futuro. O tratado hipocrático O prognóstico, chama a atenção para o facto de não ser possível “devolver a saúde a todos os doentes”.[i] E é partindo desta evidência que, para fortalecimento também do “prestígio” dos médicos, o texto aconselhava a que estes fossem rigorosos a “aprender” e a “prever” a evolução da doença, para poderem tomar decisões corretas, em particular, naqueles doentes que tivessem “possibilidade de cura”. A doutrina aqui apontada é, aparentemente, desfavorável para os doentes incuráveis. “Conhecendo previamente e predizendo aqueles que vão morrer e aqueles que vão salvar-se, (o médico) se eximirá de responsabilidade”.[ii]

O ato de prognosticar, parte essencial de todo o exame clínico, destinava-se, pois, a discernir essa diferença essencial na natureza das doenças, para que o médico decidisse e orientasse bem o que tinha que fazer. O prognóstico evitaria, pode afirmar-se, o uso de medidas fúteis, ou causadoras de dano, de acordo com o importante princípio do “primum non nocere”. A classificação das doenças era bastante clara. Havia doenças de curta duração (agudas) e de longa duração (crónicas), e mortais e não mortais. Tendo em conta a experiência do médico, e através da observação e do inquérito, o prognóstico permitia identificar o tipo de doença. Nas doenças incuráveis por necessidade, o não envolvimento do médico justificava-se, pois, porque a sua acção era entendida como inútil e sem sentido.

Sendo a arte médica (tekhne) um saber que implicava também o conhecimento das causas, a etiologia constituía uma parte essencial da “técnica médica” hipocrática. As causas podiam ser gerais (aitía) ou imediatas (prófasis) e, do ponto de vista da sua origem, externas ou internas. Nas causas externas, apontavam-se, entre outros agentes, a alimentação de má qualidade, a violência, os ventos, o ar corrupto, as variações térmicas intensas, os venenos, etc. As causas internas tinham a ver com a idade, o sexo e o temperamento. Para os gregos a doença resultava do desequilíbrio entre a “força” da causa e a “força” da physis do indivíduo. Pelo “princípio do predomínio”, a hegemonia de uma das forças tinha como resultado a doença.

 O raciocínio hipocrático era, no entanto, ainda mais complexo, uma vez que também considerava o modo de acção destas causas: ou por necessidade (anánke) ou por “acaso”, isto é, por determinação contingente (tykhe). Só neste último caso, a actuação do médico seria útil. Quer dizer, o homem podia dominar aquilo que na natureza acontecia por “acaso”, mas era absolutamente incapaz de actuar sobre os acontecimentos de necessidade. Esta ideia tinha profundas implicações na tekhne médica. Assim, de acordo com este raciocínio, havia doenças “curáveis por necessidade”, ou seja as doenças que consideramos auto-limitadas, outras que eram “mortais por necessidade”, e outras ainda que eram “curáveis não por necessidade”.

Eram estas últimas que necessitavam da ajuda “técnica” do médico. Mas, se não actuasse devidamente, a doença poderia ser fatal. Entende-se assim que o conhecimento do médico sobre as particularidades etiológicas da doença tinha um significado dramático. “O objectivo do método (clínico) Hipocrático era, inquestionavelmente, descobrir, identificar e aumentar as diferenças individuais, para poder conhecer esta doença concreta, este doente singular”,[iii] como diz M. S. Marques, e, portanto, para reduzir a incerteza sobre o conhecimento “verdadeiro” da doença. Perante um caso clínico concreto, como é que o médico decidia para o associar a um dos grupos de doenças atrás assinalados sabendo que isso determinava a sua tekhne? É “nessa interrogação que o médico hipocrático teve um dos seus mais graves problemas intelectuais e morais”[iv].

 

Amato Lusitano e o doente incurável

Amato Lusitano também faz referência à medicina hipocrática quando prognostica uma doença mortal. Temos, por exemplo, o caso do mercador ragusino, Aloísio, que adoeceu subitamente. Quando “no mês de Setembro navegavam de Veneza para Ragusa (…) num bergantim, umas tantas pessoas, sucedeu que ao tocarem na cidade de Iadera, na Dalmácia, uns quatro ou cinco rapazes juntaram-se e comeram, de sociedade, abundantementes pólipos. Daqui lhes surgiu uma grande soltura (…) e em breve se recompuseram”.[v]  Mas Aloísio não teve a mesma sorte. “Começou a expulsar sangue”, piorando rapidamente até que chegou a Ragusa. Amato foi “encontrá-lo completamente frio ao tacto (…). O pulso mal se percebia” (…) “Apresentado o diagnóstico de que ele em breve morreria, como todos observaram ter acontecido, assim dois dias depois, pedindo desculpa retirámo-nos, apoiados no conselho de Hipócrates – que só com os prognósticos se deve deixar os lamentados”.[vi]  E, continua: “To davia, para não parecermos insensíveis, se formos chamados de novo a ver os que assim estão lamentavelmente perdidos, é nossa obrigação visitá-los para que eles próprios não caiam no desespero”[vii]. É evidente aqui o conflito do médico perante o seu doente. Respeitar, por um lado, a medicina herdada de um mestre, Hipócrates, mas, por outro, o dever de não abandonar o doente e acompanhá-lo, a exemplo do que defende a medicina paliativa de hoje e a ética médica. Sobre Hipócrates diz “que usa de razões muito verdadeiras e sem contestação”[viii]. Mas, o comportamento deste clínico é também iluminado pelo espírito intemporal da medicina. O médico junto do doente até ao fim.

No tratamento dos doentes incuráveis há outra visão que aponta para o futuro, de acordo com as Centúrias de Curas Médicinais. Ao tratar de um cancro da mama de uma religiosa, que recusou a cirurgia, numa nova observação, dois anos depois da primeira visita, verificou que “em vez do pequeno tumor, sofria de uma ulceração cancerosa, de grande tamanho” e tinha “raízes de tal modo implantadas que era de crer tivesse ocupado os pontos mais íntimos do corpo”[ix]. Esta é uma descrição do cancro metastizado, um conceito que foi atribuído, posteriormente, a Claude-Anthelme Récamier (1774-1852), já no início do século XIX.[x] A ideia de Amato Lusitano é, no entanto, bastante sugestiva e corresponde a uma narrativa apropriada da evolução da doença. Recorda Galeno, para quem as “raízes do cancro” (...) são as “veias repletas de sangue negro e melancólico que se distendem pelas regiões circundantes” ao tumor, mas refere-se também à “ocupação de pontos íntimos do corpo”, o que significa que o médico renascentista tem uma mais profunda compreensão do processo da doença em causa e portanto, mais de acordo com a realidade científica.

É certo que este caso não trata de uma doença aguda incurável, que eram as situações previstas no tratado O prognóstico. Mas é de assinalar que a “verificação” das “raízes”, nesta doença, tinha para o médico do séc. XVI implicações importantes quanto à decisão clínica. Diz Aamato: “está confirmado, pois, ser este um cancro que só admitia tratamento benigno”. A partir daqui, desenvolve a ideia da paliação: “se nada mais fizermos, é necessário que limpemos ao menos o pus, usando qualquer substância líquida, não ao acaso mas já encontrada por experiência ou indicação”.[xi] Quer dizer, a intervenção não seria com o objetivo de curar a doença, como o prognóstico confirmou, mas continuava a indicar tratamentos fundamentados nos verdadeiros princípios da medicina, que aparentemente só seriam válidos quando o objetivo era a cura. Na doença incurável, os efeitos da sua evolução não deixavam de ser tratados também de acordo com a o espirito científico. Estas palavras, “experiência e indicação”, para escolher o que o médico devia fazer, são uma chave da medicina, que foi assim progredindo até aos nosos dias. Não há abandono e os tratamentos são aqueles que devem ser.

Amato Lusitano considerava, nestes casos, as outras manifestações associadas à doença grave e incurável. Como, por exemplo, a dor, tema já abordado noutro trabalho[xii], onde se assinalam alguns traços de modernidade, tais como a relação da dor com o sofrimento e o seu tratamento pelo método escalonado.

A medicina paliativa, que se considera ser um importante avanço da medicina moderna, tem como base algumas destas ideias. Amato Lusitano, um clínico de grande renome, mostrou orientar-se por princípios que fazem parte da essência do trabalho médico de todos os tempos, embora não sejam aplicados sempre que o médico está presente. Nem em todas as épocas da história da medicina, teve a mesma relevância. Pode mesmo perguntar-se, porque é que é um escândalo o atraso histórico da formação dos cuidados paliativos como componente normal da medicina, na modernidade, se há cerca de 500 anos encontramos ideias muito aproriadas para lhe darem base e os fazerem progredir? Em Amato Lusitano, as doenças incuráveis continuavam a ter tratamento médico, não para curar, mas para controlar os seus problemas e aliviar o sofrimento. Há nas Centúrias de Curas Medicinais, sobre esta matéria, ideias muito brilhantes, apesar do tempo obscuro que decorreu, praticamente até ao século XX, quando se olha para o modo como a medicina se comportou, a propósito.

Amato Lusitano foi um médico que habitou a fronteira do pensamento científico da própria medicina, em expansão muito particular no século XVI, “uma época que deixou a sua impressão indelével sobre o mundo que veio depois”. Reconhecemos que tais ideias e a forma de tratar os doentes incuráveis não conduziram de forma direta e simples aos cuidados paliativos modernos. De modo nenhum. Mas não é de aceitar, por isso, que estas orientações dos médicos, e a sua obra, sejam silenciadas ou desvalorizadas. Há um brilho e uma surpresa.

Qual foi o seu verdadeiro alcance na história da medicina, nesta caso, nos cuidados paliativos? São questões que estão e continuarão, provavelmente, em aberto.

 

Bibliografia:

Ludwig Edelstein, Ancient Medicine. The Johns Hopkins University Press, (1987), p. p. 65-85

Pedro Lain Entralgo, La medicina hipocrática (1987), Alianza Universidad,  (1987), p. p. 267-276



[i] Hipócrates, Tratados Médicos. Barcelona, Editorial PlanetaDeAgostini, (1995), p.p. 83-84.

[ii] Hipócrates, op. cit.

[iii] Manuel Silvério Marques, A Medicina enquanto Ciência do Indivíduo, Lisboa, (2002), (Tese de Doutoramento).

[iv] Entralgo, op. cit., p. 98.

[v] Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais, Volume IV. Universidade Nova de Lisboa, (sem data), p. 114.

[vi] Ib.

[vii] Ib.

[viii] Ibidem, p. 116.

[ix] Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais, Volume II, (sem data), p. 222.

[x] Marie-José Imbault-Huart. - História do Cancro, in: As Doenças têm História. Terramar, Lisboa, p. 170.

[xi] Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais, Volume II. Universidade Nova de Lisboa, (sem data), p. 22

[xii] A. L. Marques, A realidade da dor nas curas de Amato Lusitano. In: Cadernos de Cultura “Medicina na Beira Interior – da Prè-História ao séc. XXI”, N.º 5, (1992), p.p. 19-22