APONTAMENTOS E QUESTIONAMENTOS SOBRE POSSÍVEIS DISTORÇÕES HISTÓRICAS: A MEMÓRIA DE BENTO GONÇALVES EM PORTO ALEGRE DURANTE O CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA 1936

Luciano Braga Ramos[1].

Artigo apresentado na Semana Acadêmica do Curso de História da Universidade Luterana do Brasil ULBRA Canoas, 01 de setembro de 2017.

Resumo: A presente comunicação tem por finalidade analisar o trabalho de memória elaborado pelas elites políticas e sociais rio-grandenses no ano do centenário da Revolução Farroupilha, tendo como enfoque principal as representações a respeito da imagem do general Bento Gonçalves. O tema é relevante na medida em que se questionam os exageros de ufanismos sobre as representações criadas sobre o vulto de Bento Gonçalves, e da forma como este se tornou parte da memória social da cidade de Porto Alegre. No entanto na documentação analisada procuro mostrar novas perspectivas sobre a representação, fazendo outra releitura da imagem do personagem, procurando redimensioná-lo para fora do círculo do ufanismo e heroicidade que as elites costumaram fazer uso no presente. Busco desta forma, pela ótica da história cultural analisar o “homem” Bento Gonçalves, procurando por meio das correspondências consideradas, desvelar os anseios, erros, e acertos sobre aquele homem que estava simplesmente agarrado às vicissitudes de seu tempo.

Palavras-chave: Memória – Representação – História – Revolução Farroupilha.

INTRODUÇÃO

            O ano de 1935 foi uma data muito importante do ponto de vista político e social para o Rio Grande do Sul. Não somente pelo fato do governo do Estado ter à frente o general Flores da Cunha, importante líder da Revolução de 1930, mas pelo fato de que naquele ano o Rio-Grande do Sul se preparava para comemorar o centenário de eclosão da Revolução Farroupilha. A revolução como sabemos se tornou uma data magna dos sul-rio-grandenses, já que a mesma teve apoio das elites que costumeiramente se apoiavam naquele passado como forma de reivindicarem no presente tal “herança” sempre vinculada ao poder político das elites.

            Assim, deu-se ênfase na representação de seus “heróis” e feitos, pois, em cima desses os intelectuais reelaboravam a memória que pretendiam materializar através dos discursos e mesmo em praça pública – como foi o caso do monumento a Bento Gonçalves, inaugurado às portas da Exposição Farroupilha, sendo celebrado como símbolo máximo da Revolução Farroupilha, representado como exemplo a ser seguido pelas gerações daquele período.[2]

            Quando o assunto é a Revolução Farroupilha, sabemos que sua memória veio sofrendo a cada conjuntura as vicissitudes impostas pelos poderes e instituições vigentes. No entanto, minha releitura daquele trabalho de memória, forjado para fins específicos me possibilitou analisar aquela memória intencionada, relacionando-a com as cartas escritas por Bento Gonçalves em sua correspondência. Tais documentos, preservados pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), foram no ano do sesquicentenário da Revolução Farroupilha, impressos na integra, assim permitindo o acesso a eles sem, no entanto, precisar manusear a documentação original.

            Para essa análise, empreguei o conceito de memória, a partir da ideia de Jaques Le’ Goff, entendendo a memória como, uma estratégia, atuando como a propriedade de reter informações passadas, servindo aos propósitos dos homens no sentido de reter também, informações que estes representam como passadas. Nesse sentido a memória atua de forma a colaborar com as práticas e representações reelaboradas pelo interesse que uma coletividade tem em se apropriar do passado em função do presente. Sobre o conceito de representação busquei em Roger Chartier seu entendimento, onde o autor conceitua representação como:

(...) presentificação do ausente – ou do morto – e de auto-representação instituindo o tema de olhar no afeto e no sentido, a imagem é simultaneamente a instrumentalização da força, o meio da potência e sua fundação em poder. (CHARTIER, 2002, p. 165).

            Por tanto, minha análise vai rediscutir como a memória foi posta em causa, pela manipulação das representações turvadas, repercutindo aquela narrativa com as narrativas das cartas de Bento Gonçalves. Pois pretendo, que a análise dessa documentação possa trazer uma representação diferenciada do personagem Bento Gonçalves e de sua relação como o Rio Grande do Sul, e principalmente com a cidade de Porto Alegre que, costumeiramente, lhe reverencia a cada 20 de setembro.

1. OS REVEZES DA HISTÓRIA NAS ENTRELINHAS DE SEU PASSADO: UMA ANÁLISE DO SUJEITO BENTO GONÇALVES PELA RELEITURA DE SUAS CORRESPONDÊNCIAS.

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São por isso instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico. (CARVALHO, 1990, p.55).

            Podemos insinuar que a representação de “heróis” e símbolos, também existia na mentalidade de grande parte da intelectualidade gaúcha, naquele janeiro de 1936, no dia da inauguração do monumento a Bento Gonçalves. Enfim, tinha-se no bronze a materialização das memórias farroupilhas, expressadas em seu símbolo máximo. Pois Bento Gonçalves foi muito retratado pelos intelectuais da década de 1930, como o principal líder do movimento: “aquele que foi o maior de todos, sereno e justo mesmo na figura revolucionária o patriarca da raça, Bento Gonçalves da Silva”. (SOUZA, 1972, p.30).

            O monumento sendo uma representação, não se constituía como a coisa em si, servindo na verdade como objeto de manipulação do poder vigente que o elegeu em proveito próprio.  Dessa maneira, podemos presumir que se criou na década de 1930, uma imagem estereotipada de Bento Gonçalves. Um modelo de “herói” carregado de valores, criados no presente para um símbolo que respondesse aos anseios dentro do contexto das comemorações do Centenário Farroupilha. Chartier chama esse movimento de “perversão da relação de representação”, como uma forma de preparar o palco da trama da vida social. É nesse ponto que poderá existir o interesse de que o objeto representado seja lembrado por aquilo que ele é celebrado, maquiado.

           

Todos visam, com efeito, a fazer com que a coisa não tenha existência se não na imagem que a exibe, com que a representação mascare ao invés de designar adequadamente o que é seu referente. A relação de representação é assim turvada pela fragilidade da imaginação que faz com que se tome o engodo pela verdade, que considera os sinais visíveis como indícios seguros de uma realidade que não existe. Assim desviada, a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, em um instrumento que produz uma imposição interiorizada, necessária lá onde falta o possível recurso a força bruta. (CHARTIER, 2002, p. 75).

           

            Sendo assim, como aponta Chartier, a representação como uma imagem turvada do que se pretende mostrar, chego ao ponto em que, Sérgio da Costa Franco faz seu questionamento a respeito dos monumentos erguidos em Porto Alegre. O autor fala que a cidade sofreu todo o tipo de sorte durante o período do sítio dos farrapos. Por tanto podemos analisar que foi justamente essa representação turvada que deu margem para a criação de uma memória e de uma identidade do gaúcho. Tal memória e identidade, claro, alicerçadas nas lembranças da Revolução Farroupilha.

 

(...) os trabalhos alusivos à guerra civil de 1835-1945 foram, em geral, marcados pela adesão ao ideário e ao imaginário dos farrapos. A própria propaganda republicana tomou como modelos e heróis lideres farrapos, incensou a frustrada República Rio-Grandense e adotou seus símbolos; armas, bandeiras e hino daquela República tornaram-se símbolos oficiais do Estado do Rio Grande do Sul. (FRANCO, 2000, p. 15).

 

            Pretendo, por meio da bibliografia e das correspondências de Bento Gonçalves, perceber aspectos do homem por trás do mito. Pois dessa maneira espero, na medida do possível, identificar elementos que possam contradizer a imagem “engessada” do herói. Mostrando mais o homem de seu tempo, e de como a história oficial se apropriou deste para a produção de seu mito em busca da identidade do rio-grandense para o século XX.

            A imagem segundo Paiva:

 

(...) não é o retrato de uma verdade, nem a representação fiel de eventos ou de objetos históricos, assim como teriam acontecido ou assim como teriam sido. Isso é irreal e muito pretensioso. (PAIVA, 2006, p. 19-20).

 

            No entanto isso dentro da perspectiva da história oficial, não era nenhum absurdo e mesmo possível. Como podemos identificar através das bibliografias e periódicos de época, buscava-se a heroicidade dos “grandes vultos”. Alcides Maya publica no Correio do Povo em 15 de janeiro de 1936, em artigo expressando o significado da imagem de Bento Gonçalves para o presente. Percebe-se em Maya, a distorção da representação do “herói” em relação a seu monumento erigido na “leal e valorosa cidade de Porto Alegre”. “Será corrida hoje a cortina do monumento à memória augusta de Bento Gonçalves, protótipo gaúcho da evolução rio-grandense”. Despertando segundo autor um sentimento de forma que: “Ufana-se Porto Alegre de ser o rincão eleito para a magna consagração”. (MAYA, 1936, p. 10). “Esqueceram-se” naquele período, as atrocidades cometidas contra a cidade submetida dentro do sítio imposto pelas forças de Bento Gonçalves. Então porque esta deveria ufanar-se de ter um monumento à memória de seu sitiador? Ainda segundo o autor:

 

Recebeu a terra da Várzea o primeiro sangue derramado em defesa do tricolor farroupilha. Onde ali, pela primeira vez, após o toque de clarim da Azenha, o glorioso trapo simbólico e imorredouro dos farrapos invictos. Pairam ao redor daquele sítio os rútilos sonhos que ainda, felizmente nos animam. (MAYA, 1936, p. 10).

 

            No entanto, fora da visão de exacerbada ufania da época, Sérgio da Costa Franco, nos traz em seu trabalho outro perfil do chefe farroupilha. Tal perfil nos faz refletir sobre todo o processo de heroicidade construído na década de 1930 a respeito não só do líder farrapo como também da “moral” dos homens de 1835, e dos propósitos da revolução. Segundo Franco:

 

(...) não soaria simpático aos porto-alegrenses o relato dos reiterados canhonaços e bombardeios com que forças de Bento Gonçalves (...) (nas intermitências de rebeldia) (...) alvejaram repetidamente a cidade, intranquilizando e atemorizando sua população. (FRANCO, 2000, p. 16).

 

            Após a reação legalista de 15 de junho de 1836, acirrou-se mais o sítio que então impuseram os farroupilhas à cidade. Bombardearam esta indiscriminadamente. Não poupando civis, mulheres e nem crianças. Franco, nos da à ideia do que foram tais ataques, e dos bombardeios das armas farrapas para dentro dos muros da cidade. Segundo o historiador:

 

A 29 de junho, já afastadas as possibilidades de uma trégua, o General Netto atacou pesadamente com sua artilharia. O efeito do bombardeio – segundo MOREIRA BENTO – foi arruinar 13 casas, incendiar duas e matar 7 pessoas, sendo duas crianças. Foram feridas muitas pessoas. (FRANCO, 2000, p. 51).

 

            Nas correspondências de Bento Gonçalves, editadas em trabalho do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), é perceptível às atitudes tomadas por Bento Gonçalves – acertadas ou não. Suponha-se que as correspondências do chefe farrapo, ao contrário do que sustentou – e ainda se sustenta na sociedade – a historiografia oficial, podem traçar o perfil de um homem que viveu os revezes de uma conjuntura de guerra. Nem herói nem vilão mais um homem disposto, a sacrificar-se como sempre quis demonstrar a história oficial, mas também disposto ao sacrifício alheio pelos seus interesses e de sua classe. Vejamos a intimação que Bento Gonçalves dirigiu à cidade de Porto Alegre, coagindo-a a render-se ou, sofrer as consequências. O discurso é de desforra pela retomada legalista do dia 15 de junho de 1836.

 

Ilmo. Exmo, Sr.

Tendo caído essa capital em poder dos facciosos por meio da mais negra traição. E constando-me que V. Exa. Se acha à frente das forças que a guarnecem movido unicamente pelos desejos de poupar a efusão de sangue e de remover os males que podem sobrevir, sendo eu compelido a retomá-la por viva força, intimo-lhe que hoje mesmo antes de se por o sol deponham as armas as mencionadas forças e seja reconhecido o legitimo governo do Exmo. Sr. Vice-Presidente o Dr. Marciano Pereira Ribeiro. Persuando-me que V. Exa. Não quererá cobrir seu nome de opróbrio e maldição insistindo em uma inútil resistência; não resta recurso algum a facção rebelde; a cidade do Rio Grande e a vila do Norte estão já livres do pesado jugo que as oprimia, e o caudilho dos anarquistas, Bento Manuel, batido em a noite de 31 do mês próximo passado, corre com precipitada, vergonhosa fuga a ocultar-se nas brenhas e desertos de Missões acossado ainda pelas minhas forças. Basta de carnagem e seja o último sangue vertido o que banhou em os dias 21 e 22 do corrente as margens dos passos de São Leopoldo e Portão, quando foram completamente derrotados os colonos ocidentais que aliciados pelos facciosos vinham em seu auxilio. Não queira V. Exa. ser insensível as angustias desse povo, vítima dos males que traz consigo o sítio apertado em que se acha; atenda aos gemidos de tantas esposa desoladas, de tantos órfãos infelizes, que lhe pedirão severa conta de seus maridos e pais imolados à louca tenacidade de um punhado de perversos; e rendendo prontamente as armas evita V. Exa. os imensos desastres que já ameaçam de perto a essa capital; pelas quais faço a V. Exa.  e a todos os demais chefes da reação responsáveis perante o céu e o mundo. Espero que V. Exa. Assim o fará, podendo contar que nenhuma só gota de sangue será derramado uma vez que V. Exa., dentro do prazo acima indicado, anua esta minha intimação. Deus guarde a V. Exa.

Campo junto à cidade, 27 de junho de 1836. Bento Gonçalves da Silva. (SILVA, 1985, p. 48).

                                                                                                  

             Pode-se interpretar, que Bento Gonçalves, nesta carta transferia a culpa da sorte dos sitiados a eles mesmos, por insistirem em não se entregarem. Ele se eximiu da culpa pelo derramamento de sangue, pelas viúvas e órfão que suas armas produziriam pelos bombardeios e as atrocidades que um ataque pudesse infligir à cidade.  Mas a onde está o Bento Gonçalves histórico da década de 1930? Este certamente pela inteireza moral que apontou Fernando Osório (1935), não estaria de acordo a sacrificar sangue inocente em nome da República. Pois dentro do sítio segundo Franco, não existiam somente soldados legalista. Existia uma população estagnada pela opressão em que se encontravam, mas pronta a resistir, pois a guerra não era deles, se tornou deles.

 

Em 11 de maio o General Netto intimou a guarnição da Capital a render-se. Sem proposta restabeleceu o cerco á cidade, com uma força que se calcula em 1400 homens. Iniciava-se desta forma o segundo sítio, que se estenderá até fevereiro do ano seguinte. Queirós – documento inédito que encontramos nos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, e que supomos seja continuação do relatório de Antônio de Freitas Barreto Queirós. Este, em 23 de junho de 1837, diante de um ataque dos farroupilhas, refere que as defesas contavam com mais de dois mil homens, acrescentando, entre parênteses, “já se sabe, o maior número de paisanos”. Os civis armados seriam, assim a deficiência numérica dos efetivos militares. Na iminência de ataques, a população afluía às trincheiras, com as armas de que pudesse dispor. (FRANCO, 2000, p. 49).

 

            Por tanto era um sítio à população de Porto Alegre. Porém, no ano do centenário da Revolução Farroupilha, tentava-se silenciar o acontecimento. No entanto, quando tal acontecimento foi relembrado era sempre representado como uma reação dos legalistas sem a participação civil que se encontrava atrás das defesas da cidade. O historiador Walter Spalding, escrevendo no contexto do Centenário Farroupilha, consegue distorcer os fatos falando da pilhagem das casas pelos legalistas. Em outro instante acaba mostrando em seu discurso que foi a necessidade devido ao próprio cerco imposta a cidade pelos farroupilhas. Portanto é uma História que acaba criando suas contradições quando se tenta dar uma explicação plausível ao contexto comemorativo do Centenário. Pois era um trabalho de história que visava à defesa de um líder e sua causa em proveito do presente.

A respeito da reação e o que se seguiu na capital, relata Antônio Álvares Pereira Coruja, secretario da Assembléia e testemunha ocular dos acontecimentos de então: ‘Uma senhora, ao ouvir grande barulho na rua, depois da reação neste dia 15 de junho, chegou a janela e voltou em seguida, explicando ao esposo: - Marido, mingau virou água; os caramurus tomaram conta da cidade’. Em seguida, relata o cronista citado referindo-se à falta de alimentação na praça: ‘O café, o chá e o mate em muitas casas eram adoçados com rapadura e o pão branco com manteiga substituído por pão de milho sem ela’. E isto, diz ainda o citado autor, porque depois de 15 de junho ‘começaram logo os saques de gente de casa em casa, e depois também os saques das despensas, porque a cidade ficou logo sitiada por terra e por água, e com falta de recursos alimentícios. (SPALDING, 1982, p. 113-114).

 

             O próprio Walter Spalding (1982), nesta obra atesta que a cidade de Porto Alegre nunca mais caiu em mãos farroupilhas. E mesmo o autor confirma que a população esteve envolvida na resistência ao lado dos legalistas, no que o autor chama de contrarrevolução. No dia 19 de outubro de 1841, foi publicado um decreto imperial que reconhecia os esforços dos súditos do império em defesa da cidade. Pois afinal de contas a “leal e valorosa cidade” era feita de homens. Sobre a lealdade e o valor podemos interpretar como, sendo o título conferido à sua população. Assim o decreto imperial estava:

 

(...) conferindo à cidade de Porto Alegre o título de “Leal e Valorosa”, em recompensa e para perpetuar o valor e lealdade com que se portaram seus habitantes na contra-revolução que restabeleceu nela o governo imperial e o heroísmo com que tem resistido aos diversos cercos dos farroupilhas. (SPALDING, 1982, p. 190).

 

 

            Podemos compreender que muitos indícios da conjuntura da Revolução Farroupilha, não apontam de maneira alguma que a cidade tivesse algum apreço pelos farroupilhas. Isso mostra a importância e o interesse por parte do governo e das instituições governamentais em fazer uma memória para a cidade de Porto Alegre. Baseavam-se numa recuperação das tão faladas verdades históricas. Suponho por meio das fontes analisadas, que a resistência ao cerco de Porto Alegre é um tema importante para percebermos a queda das máscaras dos heróis construídos na década de1930. Esta história não mostrou um Bento Gonçalves que se orgulhava de seus generais por estes infligirem à cidade de Posto Alegre um cerco. Cerco este que tinha o intuito de fazer seus habitantes sucumbirem senão pelas armas, pela fome. Como mostra sua correspondência publicada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).

 

Foi inexplicável o prazer que senti ao receber sua carta de 10 do corrente em resposta à minha segunda (...). Aproveito a opurtunidade de dizer a VC. Sa. que as circunstancias atuais urgem que o [Coronel?] Canabarro seja conservado por hora no sítio de Porto Alegre por [1v.] fazer indispensável a prestação de seus importantes serviços naquele ponto, aonde apareceu em ocasião muito oportuna e de sua estada com a força de seu comando tem resultado grandes vantagens à causa que defendemos pelo apuro que tem posto aos inimigos de nossa liberdade que desde então tem sofrido grande falta dos recursos que tiravam deste lado.

Bento Gonçalves da Silva

Novo Triunfo, 30 de dezembro de 1837. (SILVA, 1985, p 52).

 

            Em outra carta fica bem mais evidente a situação em que se encontravam os habitantes da cidade. Conforme a troca de correspondências entre Canabarro e Bento Gonçalves, podemos presumir que da parte dos farroupilhas, tanto fazia a cidade render-se pela fome como pelas armas. Mas o discurso entre os oficiais farroupilhas pressupõe que estes esperavam que os sitiados escolhessem o caminho das armas. O que nos levou a perceber o interesse e a intenção dos oficiais em aniquilar os sitiantes, querendo a capitulação dos defensores, militares e civis. Podemos interpretar que estes devido ao prolongado cerco puseram em cheque o “respeitável” exército farroupilha no dizer de seus comandantes.

 

Caçapava, 26 de abril de 1839.

(...), e em ofício de 19 me diz; deveis contar que daqui me moverei com 600 a 700 homens sem distrair força alguma da que põe assédio em Porto Alegre. O nosso amigo Canabarro em carta do 16 do corrente me diz: ‘o inimigo tem somente dois caminhos a seguir, ou entregar as armas pela fome, ou procurar-nos para nos bater; é provável que tome o segundo; deste modo ficará mais depressa nosso país livre dos tiranos. Nosso Exército esta tão respeitável que seria absurdo duvidar da vitoria’. (...). Bento Gonçalves da Silva. (SILVA, 1985, p 100).                                                 

 

            Pela análise dos documentos pesquisados, percebem-se as possibilidades de outras interpretações a respeito dos discursos proferidos na década de 1930 a respeito das representações da Revolução Farroupilha. Assim como é possível perceber contradições no discurso da inteireza moral de seus líderes. Sobretudo Bento Gonçalves “heroicizado” e comemorado em monumento em praça pública às portas da “leal e valorosa” cidade de Porto Alegre.

            Mereceu destaque, a demasiada representação de Bento Gonçalves pelos intelectuais gaúchos dos anos 1930, como defensor ferrenho dos princípios liberais e republicanos. Tais princípios eram de um extremo sentimento de brasilidade que segundo os historiadores oficiais, tinha por objetivo unir as províncias irmãs, inserindo-as nas instituições republicanas. Esse discurso era em muito apreciado pelos políticos de 1935, que desejavam construir um discurso de brasilidade do gaúcho.

 

Proclamando aos brasileiros, em 43, dizia: – Bento Gonçalves – ‘Uma República Federal baseada em sólidos princípios de justiça e recíproca conveniência uniria, hoje todas as províncias irmãs, tornando mais forte e respeitável a nação brasileira se o interesse individual e a traição não violentasse o espírito público’. (SOUZA, 1972, p. 51).

           

            A posição de Bento Gonçalves a favor de uma República se evidencia após sua prisão. A República foi proclamada quando o general encontrava-se prisioneiro do Império, depois do desastre da Fanfa. Segundo Coelho de Souza: “A separação era um meio e não um fim. Seccionado do Brasil o Rio Grande do Sul nunca deixou de pensar na grande Pátria”. (SOUZA, 1972, p. 47-48). Porém anterior a sua prisão constatamos na correspondência de Bento Gonçalves, sua visão e ideia sobre a instituição republicana.

 

Ilmo. Sr. Felício Soares de Silva e Urbano Soares da Silva Estância da Boa Vista, 17 de janeiro de 1836.

Já lhe escrevi comunicando-lhe que nossos inimigos fantasiaram um partido republicano que pretende a separação da Província. Esta caluniosa invenção foi o meio mais a propósito que eles encontraram para dividir-nos, e, sob o pretexto de baterem o inventado partido,(...) que tanto mais se agrava quanto se esforça o novo Presidente em repetir o eco de nossos inimigos com respeito a república e separação. Onde pois existe esse partido republicano? Que são seus chefes? Quem seus agentes? Onde os documentos que comprovem uma tal invenção? (...). Não os patriotas do 20 de setembro como eu detestam a república e a separação da Província, querem o Presidente nomeado, (...) eu protesto, a face dos céus e dos homens, acabar antes nas ruínas de minha Pátria do que vê-la escravizada. (...) estou e estarei sempre firme. Nada de República, nada de separação da Província, (...). V. Sa. Prº amigo muito grato” AP.CV-8278; APCV-8279; GN.1836-BGS

Bento Gonçalves da Silva. (SILVA, 1985, p.37).

 

            Outro aspecto de Bento Gonçalves, analisado nos documentos e que supomos por em cheque a inteireza moral do “herói”, esbarrou, talvez, nas necessidades de guerra. Assim, encontramos uma maneira mais suave de dizer pilhagem de guerra que se fez, ou como queriam os revolucionários, em nome da causa da república. O primeiro documento desse gênero que temos em mãos fala do recrutamento de carretas em nome da causa. Quero começar por este documento por este sugerir que tais instrumentos foram recrutados.

 

Amigo e Patrício

Caçapava, 8 de fevereiro de 1839.

Depois de vencidas algumas dificuldades faço hoje seguir o numero de carretas que pôde arranjar neste município, e se estas não forem suficientes convenho que se deixe alguma carga na fazenda de Severino, debaixo de boa guarda, até que daqui voltem algumas para a conduzir.

Tenho dado ordens para o distrito de Lavras se recrutem algumas carretas, e logo que elas aqui cheguem as farei seguir a encontrá-lo. (...).

Bento Gonçalves da Silva. AP.CV-8355. (SILVA, 1985, p.37).

           

            Como a correspondência acima trata de um recrutamento não podemos atestar se este era forçado, ou espontâneo. Já em correspondência posterior, Bento Gonçalves lança uma portaria autorizando os oficiais a requisitar a potrada dos cidadãos da República. Já para os simpatizantes dos inimigos, que se tomassem a força as cavalhadas e bestas de carga. Podemos perceber que por este documento, que, República e princípios liberais feitos à espada, não soavam bem a todos os habitantes da província. Não que por parte dos imperiais não acontecessem semelhantes fatos. Todavia as hostilidades na província iniciam na tomada da Ponte da Azenha. Já para os proprietários, tomados pala causa revolucionária havia mais complacência como veremos abaixo.

 

Ilmo.Sr.

Sendo dos interesses do Estado em geral a boa administração nas fazendas de criar pois que delas se tiram imensos recursos para a sustentação da presente luta, e sendo de necessidade a conservação de alguns peães em algumas fazendas, principalmente naquelas que são administradas por patriotas que andam com as armas na mão em defesa da causa nacional e que não tem bastantes escravos para o costeio do gado como acontece na estância da proprietária Dona Maria da Fontoura Corte Real, ordeno portanto a V. Sa. mui terminantemente que faça com que os juízes de paz e chefes de polícia seus subordinados respeitem as portarias que nesta data se expediram para quatro peães se conservarem sempre na estância da mencionada senhora Dona Maria, não sendo nenhum destes homens brancos ou com bens da fortuna; queira V. Sa. portanto fiscalizar que seja esta minha ordem mui restritamente cumprida, advertindo porém que sempre que os ditos peães deixem de persistir na estância por qualquer motivo que seja, ficará ela sem nenhum efeito. Deus guarde V. Sa.

Quartel em Caçapava, 6 de abril de 1839. Bento Gonçalves da Silva. (SILVA, 1985, p.95).

 

            Supomos que Bento Gonçalves, era o presidente dos “seus”. O rio-grandense que supostamente não abraçasse a causa estava sujeito à pilhagem. Chama a atenção que os documentos analisados datam ambos aproximadamente da metade do decênio farroupilha. Isso nos leva a duas vias: ou a logística da república não era tão estruturada, ou se tinha a prática como vimos de baixar portarias a mando de Bento Gonçalves que legalizavam a pilhagem como forma de subjugar os rio-grandenses que não simpatizassem com a República.

 

Ilmo. Sr.

Achando-se esta Divisão com muita falta de cavalhadas e dependendo talvez a sua salvação e a da Pátria da pronta vinda de cavalos, preciso se faz que V. Sa. Exija-os dos cidadãos de seu departamento; se porém alguns houverem, o que não é de esperar-se, que se negarem, V. Sa. deles lançará mão, pois quando se trata da salvação da Pátria não devem haver contemplações. Para essa diligencia vai o Capitão Ortiz com seis soldados, que o coadjuvarão e regressarão com a cavalhada. Espero que V. Sa. mandará o maior número possível de cavalos e com a brevidade que exigem as circunstâncias. Deus guarde a V. Sa.

 Campo na coatá de Santa Barbara, 13 de maio de 1839. Bento Gonçalves da Silva. (SILVA, 1985, p. 102).

           

            Possivelmente, devido a circunstâncias em que se encontravam os farroupilhas, a historiografia oficial avaliaria a situação dizendo que os fins justificavam os meios. Mas isso certamente iria de encontro aos princípios do “campeador máximo”. “Mercê de tantas qualidades, reuniu o entusiasmo e a dedicação dos conterrâneos; o Rio Grande jamais viu maior prestigio”. (SOUZA, 1936, p.10). E o “Bento” histórico era só adjetivos à época do centenário. “E Bento Gonçalves avulta na claridade de seu idealismo e hoje toda uma população, reverente a sua memória, o cultua como o nome tutelar de sua terra” (SOUZA, 1936, p.10). Essa narrativa é indicativa de manipulação da memória, pela seleção de lembranças que interessam ao presente.

            Levanto a hipótese de que Bento Gonçalves em suas correspondências, não representava na integra a imagem daquele lutador idealizado no Centenário Farroupilha. No Centenário, o pintaram como o incansável lutador pelos princípios liberais e republicanos. Contudo, nesta análise, percebe-se um sujeito maleável, conforme, o andamento dos acontecimentos e do contexto e conjuntura em que ele se encontrava.

            Encontrei na correspondência, evidências de um estrategista multifacetado, que a nosso ver, em nada se compara, com a imagem estática de claros princípios, pintada na conjuntura de 1935, como um convicto republicano liberal. Ao contrário, Bento Gonçalves, como político e general, surgiu como um homem de estratégia e artimanhas, que dentro da conjuntura do decênio, se metamorfoseou entre; um imperial que desejava cumprir a constituição; um liberal republicano federativo; e por fim, um republicano separatista.  Hipoteticamente falando, é possível supor que uma década de guerra permitiu que a identidade dos homens que fizeram a revolução, e, sobretudo a de seu principal líder fosse se moldando, embalada pelas circunstâncias conjunturais.

 

CONCLUSÃO

            Concluir? Creio que dentro da perspectiva da história cultural qualquer conclusão é provisória. Mas esse trabalho, em poucas palavras, atentou para a questão central, já levantada pelo historiador Sérgio da Costa Franco. O historiador contestou em seu trabalho as homenagens prestadas aos “heróis” farroupilhas pela cidade de Porto Alegre a posterior. Os quais lembra o historiador, foram seus “malfeitores”.

            A documentação analisada reforçou a ideia do historiador, quando a própria, reafirma a tendência dos farroupilhas em sitiar e mesmo impor pesadas penas aos defensores da cidade de Porto Alegre. Assim, quando expus para o diálogo as fontes que demonstravam o trabalho de memória das elites para o centenário da revolução, ao mesmo tempo contrastei tais fontes com a correspondência de Bento Gonçalves que me revelou outra face do “herói”, pouco ou quase nada rememorada por aqueles que a cada vinte de setembro revolvem a memória farroupilha.

 

 

 

Fontes e referências

 

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

 

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre sitiada (1836-1840): um capítulo da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Sulina, 2000.

 

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed., Campinas, São Paulo: 2003.

 

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[1] Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – Área de concentração em Estudos Históricos Latino-Americanos, com a dissertação: “Um Lugar de Memória para a Revolução Farroupilha: a construção do monumento a Bento Gonçalves em Porto Alegre 1934-1936”. Possui Especialização em História do Rio Grande do Sul pela mesma universidade, com a monografia: “Um Herói em Bronze: o monumento a Bento Gonçalves em Porto Alegre”. Licenciado em História pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Atua como professor de História na rede pública do RS.

[2] Sobre os detalhes da Construção do Monumento a Bento Gonçalves ver: RAMOS, Luciano Braga. Um Lugar de Memória para a Revolução Farroupilha: A Construção do Monumento a Bento Gonçalves da Silva em Porto Alegre 1934-1936. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, 2015.