Apolo ao boi é um ensaio que trata da história e importância da cultura bovina, para as sociedades antigas e especialmente para o Brasil, desde o período colonial aos dias atuais. O texto é tema de abertura de uma coletânea acerca da presença do boi em todo o Brasil, simbolizando paradoxalmente riqueza e devastação, tradição e modernidade.

 

APOLOGIA AO BOI

História, Mitologia e Misticismo

- Por Antonio Maciel(*)

A literatura sobre o boi é vasta. Ele tem sido motivo temático – histórico, mítico, místico, artístico-cultural – para realização de eventos, celebrações, cerimônias ritualísticas de cunho religioso e profano ou popular, desde eras bem remotas. Antigas civilizações cultuavam o Zebu como símbolo fortemente presente na construção do pensamento humano sobre a origem da vida, no planeta. Para o hinduísmo, o touro é “símbolo do poder gerador da natureza”. A utilização do boi foi fundamental para a sobrevivência e desenvolvimento humano, devido o fornecimento de alimentos ricos em proteína animal, além de sua utilização na fabricação de instrumento de trabalho, utensílio, proteção corporal. O ancestral do Zebu – “Uro” – deve ter desempenhado um papel importante para os nossos antepassados paleolíticos, o que explicaria numerosos registros nas cavernas e rochas, por meio de pinturas rupestres, primeira expressão artística humana.

O boi foi alicerce imprescindível na construção da história do homem, numa época em que este ainda não dispunha de tecnologia aprimorada para fazer o preparo da terra para suas plantações. Contribuiu inclusive para que o homem abandonasse a vida nômade que levava, havia milhares de anos, e assentar-se em torno da agricultura de subsistência. A importância do boi no cotidiano dos egípcios era tamanha, que a história do antigo Egito registra o culto sagrado ao boi Ápis. Entre os assírios, o boi tinha status de moeda, além de inúmeras utilidades inerentes à versatilidade do animal. Na Índia, até hoje o povo hindu manifesta sua fascinação pelo boi, cultuando a vaca como animal sagrado. No Horóscopo chinês, o búfalo é um dos integrantes do grupo de animais que atendeu ao lendário chamado de Sidarta Guatama, por isso, Buda o imortalizou em seu Calendário. Durante as pregações, o sábio aparece sendo transportado por um touro. O Zodíaco grego mostra a imagem de um boi com características humanas, simbolizando força e virilidade; o Minotauro (touro de Minos), figura mitológica criada na Grécia antiga – representado por um homem com cabeça de touro – simbolizava o aprisionamento humano nos próprios labirintos de sua natureza animal; por sua vez, o Centauro, também um ser mitológico grego, representava o predomínio dos princípios superiores e da razão humana sobre as ações e os sentimentos instintivos, ou seja, a superação da irracionalidade.  

O povo hebreu, quando em marcha para a “terra prometida”, fez um bezerro de ouro e o adorou, contrariando as determinações do líder Moisés. Na iconografia católica romana, o boi simboliza o evangelista Lucas; a figura do boi aparece nas pinturas do teto e nos vitrais de muitas igrejas e catedrais, ao lado do leão, da águia e do homem (ou de um anjo). Nos Presépios que representam o Natal de Cristo, o boi figura entre pastores e reis, na bucólica cena da manjedoura.

Memórias de Boi no Brasil

Sabemos que o boi fez parte da “bagagem” trazida lá da Península Ibérica pelo europeu, quando da implantação do colonialismo lusitano no Brasil, inaugurado em 1532 por Martim Afonso de Souza, na antiga Vila de S. Vicente pertencente à província do Piratininga, hoje, estado de São Paulo. A relativa prosperidade da Colônia deveu-se, em boa parte, à participação efetiva do boi, ao lado do elemento nativo que foi submetido ao trabalho escravo, nos engenhos de cana-de-açúcar de Martim Afonso e o sócio holandês J. Hilst. A partir da chegada da Companhia de Jesus ao Brasil(1549), matrizes bovinas foram introduzidas no Nordeste, iniciando-se pela Bahia. Assim, o boi seguiu a esteira do colonizador, abrindo os caminhos para a ocupação da Nova Terra, espalhando-se por várias regiões do país, gerando riquezas econômicas e culturais. Durante séculos, o boi dividiu com o índio e com o negro escravo os mesmos espaços e funções, nos campos e fazendas senhoriais. A efetiva participação do boi, na construção do Brasil, ao longo de cinco séculos de história, o transformou numa referência de progresso e desenvolvimento, para alguns segmentos de nossa sociedade. É verdade que nem tudo foi romantismo. Além do prejuízo ecológico – bosques e matas foram devastados para dar lugar às pastagens bovinas –, grande parte da sociedade brasileira ficou à margem dessa prosperidade. Não obstante as críticas, fatores positivos são atribuídos ao nosso herói bovino: o pioneirismo no serviço de transporte de homens, víveres e produtos em cidades e vilarejos; sua necessária e oportuna força na propulsão dos arados, moendas e outros engenhos movidos à tração animal, para a industrialização da cana-de-açúcar, café, cacau, algodão; sua generosa fonte de alimentos – leite, carne, derivados e laticínios; sua rica fonte de matéria prima na fabricação de calçados, bolsas, chapéus; a secular inspiração na criação dos folguedos de boi, Brasil a fora.

O advento da moderna tecnologia tornou obsoleto o boi em suas múltiplas funções, não somente nos centros urbanos industrializados, como também nas longínquas regiões da zona rural ou agrícola. A lentidão bovina foi substituída pela velocidade acelerada dos automóveis, dos trens e caminhões. Sua força descomunal, imprescindível num passado distante, cedeu lugar aos eficientes tratores, motores eletrificados, dentre outros inventos fabulosos! Há que se reconhecer, no entanto, que se por um lado estes modernos “personagens” favoreceram uma série de benefícios, conforto, bem-estar, por outro trouxeram poluição, violência urbana, estresse, desequilíbrios sociais e ecológicos, além de outros fatores negativos proporcionados pela modernidade desvairada.             

Desse modo, numa velocidade espantosa, fruto de um processo irreversível, o saudoso ranger dos carros-de-boi, o estalido dos chicotes – ruídos de um Brasil-menino – vão sendo sufocados pelo ronco ensurdecedor das máquinas, buzinas, apito das fábricas e o som das sirenes, símbolos das turbulências do presente, das vozes de milhões de brasileiros modernizados, anunciando cinco séculos de história de erros e acertos desta imensa nação. Porém, ainda que a humanidade atinja o ponto mais alto da tecnologia de ponta, o mugir do boi sempre será ouvido pelos distantes campos deste planeta, nos enlatados ou nos “bumbódromos” de entretenimento, porque nosso herói bovino milenar não perderá, jamais, o seu espaço e importância na promoção da vida humana!

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(*) Dr. Antonio Francisco de Almeida Maciel é professor do IFPA/Itaituba.

E-mail: [email protected]

Itaituba/PA, 29.01.2017