Ântropos Hipotétikos

 

Os passos sinuosos e um costumeiro tropeço; fala sempre tão desconexa e palavras cujo som confunde-se com o peso dos lábios entorpecidos tanto quanto a mente; calça jeans manchada pela urina; peito ao vento, efeito da perda da camisa em um jogo de cartas: Caxeta. Uma alegria sempre tão gratuita, como o sorriso defeituoso pela falta de dentes. Unhas e cabelos agora atuam como acepção legítima do termo repulsa, como se a vaidade ensinada por seus ascendentes esvaecesse-se célere por força do vício. Alguns soluços compelem a boca salivante a retomar do princípio aquela música contumaz que não lhe sai do pensamento. Alguns flatos ao longo do caminho – não faria sentido se isto não fosse citado – até que, enfim, eis ali, ao improvisado perpétuo do portão de seu barraco, este homem hipotético.

Entra chamando pelo gênero que virou nome: Mulér![1] Chuta o cachorro em seu caminho; maldiz o vagabundo – o filho de doze – faz um carinho dolorido nos gêmeos de sete; abraça embaraçosamente a filha pirracenta de três enquanto se desequilibra e, finalmente, cai no chão batido onde o entulho orgânico mês e meio esteve. Alguns gritos balbuciando vocábulos tomam a atenção dos vizinhos – Eis aí a causa comum dos risos desprovidos de juízo e parcimônia. Um privilégio sem razão de ser. O alívio do espectador é a redução do tormento alheio à esfera do palco que não mais lhe abrange – até que a hipótese se ergue enfurecida. Tão logo se lança porta adentro.

No fogão – este improvisado tanto quanto o portão de há pouco – uma só panela espera receber, para o postulado alívio da família-fome, o alimento. Mulher pede pela farinha, apanha e chora. Depois das triviais horas de ofensas mútuas, a carne perde o respeito: A lágrima mistura-se ao fétido suor daquela hipótese; a boca e mucosa tentam o beijo negado pelos lábios da esposa. Motivo: não mais suportar o hálito etílico que lhe afoga os pulmões. E para consumar o érebo deste instante, tem-se manchado de mijo e apático sêmen o santo sangue uterino: Louvemos este acontecimento bíblico, que somente assim vejo o filho carregar no corpo o pecado de seu pai[2].

A cama guarda o desespero deste último estupro; enquanto as fotografias nas paredes memorizam o espectro de um amor defunto. À porta da cozinha, mal vestido, aquele pálido resquício de mulher manda à rua seus filhos – meninos que receberão como sobrenome esta mesma[3] –. Já tomada pela embriagues deste tormento, enfim, delibera o suicídio. Agoniza nas escadas o lúrido corpo de mais ninguém… enquanto o recém, no pérfido berço desta nítida discórdia, ainda chora a ausência da mãe que morreu. Daqui ouço Raul Seixas. O perfume barato toma o ar como anúncio da partida. Camisa do Flamengo; calça jeans com o zíper aberto e o surrado boné do CEASA – lugar onde se costuma “comprar fiado” –. Chinelos Havaianas, para o conforto dos calejados pés de quem do reciclável sobrevive. Não me furto a indagar: De qual parte dos meus traumas tu vieste? Aonde vais agora, meu maldito hipotético? Pega tua vida. Vais que te guardo. Desprezo-te, mas te aguardo. Porque tu és minha hipótese… e meu futuro te confirma.

Autor: David Guarniery

Idade: 24 anos

Início: 22:00

Término: 22:24

Tempo Gasto: 24 minutos

Dia: Terça-Feira

Data: 18 de maio de 2010

Classificação: Crônica Lírica

Obra: 001

In Memoriam:

*

*

*

*

*

Brasil/ Paraná/ Cambé



[1] Peço ao leitor a devida licença à acentuação de que faço jus. Penso que deste modo a palavra em questão melhor corresponda a meu intento.

[2] Meu filho vai ter nome de [homem e nunca de] santo.

[3] Menino de Rua.