ANTINOMIA JURÍDICA EXISTENTE ENTRE A LEI Nº 11.382/2006 E A LEI Nº 6.830/1981

Vivian Zaroni[1]

O presente trabalho tem por escopo analisar a antinomia jurídica existente entre a Lei 11.382/2006 e a Lei 6.830/81, que tratam, respectivamente, da execução de título extrajudicial e da execução fiscal. Para tanto, adotaremos como julgado paradigma o Recurso Especial no. 1.291.923/PR, de relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, publicado no Diário Oficial ao 1º de março de 2012, cuja ementa segue, in verbis:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. EFEITO SUSPENSIVO. NÃO-INCIDÊNCIA DO ART. 739-A DO CPC. NORMA DE APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA À LEI 6.830/80. INTELIGÊNCIA DE SEU ART. 1º INTERPRETADO EM CONJUNTO COM OS ARTIGOS 18, 19, 24 E 32 DA LEF E 151, DO CTN.

1. Controvérsia que abrange a discussão sobre a aplicabilidade do art. 739-A e § 1º, do CPC, alterados pela Lei 11.382/06, às execuções fiscais.

2. A Lei 6.830/80 é norma especial em relação ao Código de Processo Civil, de sorte que, em conformidade com as regras gerais de interpretação, havendo qualquer conflito ou antinomia entre ambas, prevalece a norma especial. Justamente em razão da especialidade de uma norma (LEF) em relação à outra (CPC), é que aquela dispõe expressamente, em seu artigo 1º, que admitirá a aplicação desta apenas de forma subsidiária aos procedimentos executivos fiscais, de sorte que as regras do Código de Processo Civil serão utilizadas nas execuções fiscais apenas nas hipóteses em que a solução não possa decorrer da interpretação e aplicação da norma especial.

3. O regime da lei de execução fiscal difere da execução de títulos extrajudiciais, pois regula o procedimento executivo de débitos inscritos na dívida ativa, ou seja, constantes de títulos constituídos de forma unilateral.

4. A interpretação dos artigos 18, 19, 24, inciso I, e 32, § 2º, da LEF leva à conclusão de que o efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal decorre da sua apresentação. Isso porque tais dispositivos legais prevêm a realização de procedimentos tendentes à satisfação do crédito (manifestação sobre a garantia, remissão, pagamento, adjudicação, conversão de depósito em renda) apenas após o julgamento dos embargos ou nas hipóteses em que estes não sejam oferecidos, evidenciando a suspensão do prosseguimento da execução até o julgamento final dos embargos.

5. Ainda a evidenciar o regime diferenciado da execução fiscal e o efeito suspensivo inerente aos embargos que se lhe opõem, está o § 1º do artigo 16 da Lei 6.830/80, segundo o qual "não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução", o que denota a incompatibilidade com as inovações do CPC quanto ao efeito suspensivo dos embargos à execução.

6. Recurso especial provido.

 

Para melhor esclarecer a problemática, iniciaremos o estudo apresentando considerações sobre a antinomia jurídica no direito como sistema, a classificação das antinomias e seus critérios de solução. Por fim, analisaremos a resposta apontada pelo julgador no acórdão acima referido ao caso concreto levado a julgamento.

 Quando se fala em direito como sistema o que se está pretendento é criar uma metodologia de estudo deste ramo da ciência. Segundo Maria Helena Diniz “o direito não é um sistema jurídico, mas uma realidade que pode ser estudada de modo sistemático pela ciência do direito.”[2] Desta forma, o sistema jurídico resume-se a um modo de ver e interpretar a norma estabelecendo um nexo lógico, dando-lhe uma certa unidade e sentido. Claus-Wilhelm Canaris[3] apresentou o sistema jurídico como uma ordenação racional de proposições axiológicas normativas.

Essas definições nos ajudarão a adjetivar este sistema de aberto e dinâmico. Isto implica em afirmar, que os movimentos das relações humanas interferem diretamente nas exigências e necessidades da vida e, assim, influenciarão prontamente no entendimento deste sistema.

Outro apontamento essencial é o de enquadrar o direito, não simplesmente como norma, mas sim dentro do tridimensionalismo de Miguel Reale como fato, valor e norma, de maneira que o sistema é formado por pequenos subsistemas que influenciam diretamente uns nos outros, formando um todo indissolúvel.

A antinomia consiste em um conflito dentro de um desses subsistemas: o normativo. Este conflito consiste na ação de duas forças contrárias sobre um mesmo ponto, criando uma oposição entre duas normas distintas.

Numa visão sistemática do direito, como acima explicitada, não seria possível a admissão destas contradições normativas. A unidade preza pela ausência de contradições, devendo os conflitos normativos serem solucionados e afastados pela via interpretativa, garantindo a coerência.

Neste momento verificamos que a solução da antinomia, feita pelo juiz no caso concreto, não soluciona a questão propriamente dita. A interpretação ali adotada restringe-se àquele caso concreto deixando ao alvitre do legislador a possibilidade de extirpação das contradições no subsistema normativo.

As antinomias podem ser classificadas quanto ao critério de solução; quanto ao conteúdo; quanto ao âmbito e quanto à extensão da contradição.

Quanto ao critério de solução, elas serão reais ou aparentes. As reais constituem naquelas ocorrentes quando não há na ordem jurídica qualquer critério normativo para sua solução. Já as aparentes possuem critérios legais para solucioná-las.

Quanto ao conteúdo, elas serão próprias ou impróprias, de maneira que as impróprias se subdividirão em antinomia de princípios, valorativas e teleológicas. As próprias se dão por razão formal e não material. Já as impróprias constituem na inversão. As antinomias de princípios configuram-se por haver uma desarmonia do subsistema normativo, pelo fato de fazerem parte dele diferentes ideias fundamentais conflitantes. As antinomias valorativas ocorrem quando o próprio legislador for infiel a uma valoração por ele próprio realizada. Por fim, a antinomia teleológica apresenta-se quando há uma incompatibilidade entre os fins propostos por uma norma e os meios previstos por outra norma para alcance daquele fim.

Quanto à extensão da contradição, elas serão total-total, total-parcial e parcial-parcial. Será total-total quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra. Será total-parcial quando embora não possa ser aplicada em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra, o conflito entre elas ocorre, tão somente, em parte. Já a parcial-parcial se configura quando em parte as normas se conflitam e em parte não.

   Como critérios solucionadores às antinomias do direito interno, apresentam-se: (a) o hierárquico (lei superior derroga lei inferior); (b) o cronológico (leis posterior derroga lei anterior); e (c) o da especialidade (lei especial derroga lei geral).

Com base nessas considerações doutrinárias passaremos a análise do caso concreto, propriamente dito.

De acordo com a regra do artigo 739-A, §1º, do Código de Processo Civil, os embargos do devedor, nas execuções de título extrajudicial, independem de garantia do juízo e somente terão efeito suspensivo se presentes a relevância da fundamentação e o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, desde que garantida a execução por penhora, depósito ou caução suficientes. Em contrapartida a Lei nº 6.830/80 não tem dispositivo expresso sobre o efeito suspensivo dos embargos. No entanto, em inteligência do disposto nos artigos 16, 18, 19, 24, I e 32, §2º, é imperioso que nas execuções fiscais, que também são execuções de título extrajudicial, o efeito suspensivo decorra automaticamente da apresentação dos embargos e a garantia da execução seja condição si ne qua non para apresentação destes. Ainda, há que se observar que o artigo 1º desta mesma lei, afirma que se aplica subsidiariamente o Código de Processo Civil às execuções para fins de cobrança de dívida ativa da administração pública direta.

Ora, é evidente que entre estes dois diplomas normativos há um conflito de normas, que podemos classificar da seguinte forma: (a) quanto à solução em aparente, (b) quanto ao conteúdo em imprópria - valorativa, (c) quanto à extensão, em parcial-parcial. Se não vejamos:

Quanto ao conteúdo, tem-se por conflito impróprio-valorativo na medida em que, não há conflito formal entre elas (ambas as normas são ordinárias) e, ainda, os valores de ambas as normas são conflitantes. A lei de execução fiscal foi editada no ordenamento jurídico como responsável por atribuir privilégios à Fazenda Pública na cobrança de seus débitos. No entanto, com a aplicação das regras previstas na Lei no 6.830/80, em detrimento da Lei no 11.382/06, há uma inversão dos valores, é o contribuinte visto como o maior beneficiado pela aplicação de tais regras. Em outras palavras, aqui o legislador foi infiel aos seus próprios valores, na medida em que a Fazenda Pública estaria sendo privilegiada pela ausência de efeito suspensivo automático aos embargos à execução, como previsto no artigo 739, §1º, do Código de Processo Civil e não pela aplicação das disposições da Lei de Execuções Fiscais.

Quanto à extensão, a antinomia é total-total. A aplicação dos dispositivos da Lei no 6.830/80 impede totalmente a adição das normas do artigo 739-A, §̕1º, do Código de Processo Civil e, o contrário, tem-se por verdadeiro. Desta forma, no que tange, especificamente, à atribuição do efeito suspensivo aos embargos à execução, há total incompatibilidade das normas vigentes. 

Por fim, quanto à solução, a antinomia é classificada em aparente. Há, no ordenamento jurídico, critério legal solucionador ao impasse. Ora, diante deste caso específico é possível a aplicação de dois critérios distintos, criando o que a doutrina denomina de antinomia jurídica de 2º grau. É possível a adoção do critério cronológico (onde a norma posterior derroga a norma anterior), no qual prevaleceria à disposição do artigo 739-A, §1º, do Código de Processo Civil; ou do critério da especialidade (norma especial derroga norma geral) no qual as disposições da Lei de Execução Fiscal prevaleceriam.

       Entre estes dois critérios não há uma hierarquia absoluta. Nas palavras de Maria Helena Diniz “Em caso de antinomia entre o critério da especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogar priori speciali, segundo o qual a regra da especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse metacritério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro que o anterior. A meta-regra lex posterior generalis non derrogar priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori spciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata um oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.”[4]

   Estabelece-se, assim, uma antinomia real, cabendo ao juiz-aplicador utilizar-se de critérios para preenchimento de lacunas, garantindo uma solução ao caso concreto.

No julgado abordado no presente trabalho, no item “2”, fica evidente a posição do julgador em adotar o critério da especialidade - norma especial derroga norma posterior geral. Para tanto, ele motiva sua decisão adotando critérios interpretativos do texto da própria norma, que em outra disposição, aduz sobre aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.

Como conclusão racional, portanto, admite-se que inexiste, neste caso específico, lacuna a ser preenchida a fim de solucionar a antinomia aparente, abortando a idéia de se estar frente a uma antinomia real.        

           


[1] Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-graduada em Relações Internacionais pela FAE Business School; pós-graduada em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco/Marcato; mestranda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e assessora jurídica no Tribunal de Justiça do Paraná.

[2] DINIZ, Maria Helena. Conflitos de normas. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 8.

[3] CANARIS, Claus – Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução: CORDEIRO, A. Menezes. 2ª edição. Fundação Calouste Gulbenkian.

[4] [4] DINIZ, Maria Helena. Conflitos de normas. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 50.