ANGOLA, UM PAÍS INDEPENDENTE MAS NÃO LIVRE:

FILOSOFIA AFRICANA

 

RESUMO

 

Nesta breve reflexão filosófica, reflecte-se em torno de uma das questões fundamentais da Filosofia Africana: a liberdade de África. Mas se reflecte especificamente sobre a liberdade de Angola, porque, se apologiza que a construção da liberdade de África, deve ser reflectida e feita, em primeiro lugar, a nível dos países em particular; só posteriormente, é que se deve construir a nível do continente em geral, pelo facto de que, este é constituído pelos países. O objectivo que se pretende alcançar, consiste essencialmente em identificar alguns passos fundamentais para se fazer o caminho da liberdade em Angola. Para o efeito, reflecte-se sobre o alcance da independência; a conquista da paz nacional e a possibilidade de construir a almejada liberdade; os entraves para a construção da liberdade e, por fim, os passos para a liberdade. Não obstante o facto de não se reflectir sobre o homem africano em geral e sobre a África no geral, defende-se que os países africanos devem ser realmente unidos, mas não necessariamente que se devem unir materialmente, formando uma espécie de Estados Unidos da África, como apologizaram os estadistas Kwame Nkrumah e Muamar Kadafi.

Palavras-chaves: Angola; Independência; Investimento; Cidadão angolano; Autonomia; Liberdade.

 

ABSTRAT

 

This brief philosophical reflection is reflected around one of the fundamental questions of African Philosophy: freedom of Africa. But it is reflected specifically on Angola's freedom, because it is that the construction of Africa's freedom must be reflected and done first, at the level of the countries in particular; only later should we build at the level of the continent in general, on the fact that it is made up of the countries. The aim is essentially to identify some key steps towards the path of freedom in Angola. To this end, it is reflected on the scope of independence; the conquest of national peace and the possibility of building the desired freedom; barriers to the construction of freedom and, finally, the steps towards freedom. Despite the fact that it is not reflected on the African man in general and on Africa in general, it is advocated that African countries must be truly united, but not necessarily that they must unite materially, forming a kind of United States of Africa, as statesmen Kwame Nkrumah and Muamar Gaddafi have said.

Keywords: Angola; Independence; Serious investment in the Angolan citizen; Autonomy; Freedom.

 

INTRODUÇÃO

 

A liberdade não se conquista, constrói-se. Porque, ela está em nós, é parte constitutiva do nosso modo de ser, portanto, ninguém nos pode retirá-la. Mesmo que nos aprisionem, permaneceremos livres, pois, existir é possibilidade, é poder ser, é liberdade. Porém, o facto de sermos essencialmente livres, não impede que venhamos a viver aprisionados. Isto porque, a vivência livre exige necessariamente a autonomia de pensamento, no sentido do Da-sein optar por isto ou aquilo, porque quer, ou porque, por si mesmo julga ser o melhor a fazer-se. Portanto, quando não se é autónomo na maneira de pensar e agir, vive-se aprisionado às concepções e paradigmas instaurados pelos outros, pelos poderosos.

Nesta breve reflexão filosófica, dedicamo-nos a reflectir em torno de uma das questões fundamentais da Filosofia Africana: a liberdade de África. Mas reflectimos especificamente sobre a liberdade de Angola, porque, somos apologistas de que a construção da liberdade de África, deve ser reflectida e feita em primeiro lugar a nível micro, isto é, a nível dos países em particular; só posteriormente, é que se deve construir a nível do continente em geral, pois, este é constituído pelos países.

Com o presente artigo, pretendemos essencialmente identificar alguns passos fundamentais para se fazer o caminho da liberdade em Angola. Para o efeito, reflectimos sobre o alcance da independência; a conquista da paz nacional e a possibilidade de construir a almejada liberdade; os entraves para a construção da liberdade e, por fim, os passos para a liberdade.

É importante sublinhar que esta, é uma reflexão filosófica africana, embora não se tenha reflectido sobre o homem africano em geral e sobre a África no geral, porque, apologizamos a necessidade da reflexão filosófica africana dirigir-se mais aos países em particular, de modos a contribuir para a libertação destes, tendo em conta que o continente é constituído por estes.

 

1.      O ALCANCE DA INDEPENDÊNCIA

 

Diz-nos Aristóteles que, “toda a perícia e todo processo de investigação, do mesmo modo todo o procedimento prático e toda a decisão, parecem lançar-se para um certo bem.”[1] Neta senda, ao reflectirmos em torno do alcance da independência dentro da problemática da liberdade de Angola, questionamo-nos o seguinte:

O que é que moveu o povo angolano a lutar contra o regime colonial português?

Será que o objectivo almejado foi alcançado com a “conquista” da independência?

É importante termos em conta que, no período de 1880-1910, o continente africano, com excepção da Etiópia e da Libéria, foi conquistado e ocupado efectivamente pelas potências imperialistas europeias, que posteriormente, especificamente entre 1910-1935, instauraram o sistema colonial.[2] Segundo Adu Boahen, “nessa época, […] a África não é assaltada apenas na sua soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais.”[3]

Diante disto, os povos africanos não cruzaram os braços. Impelidos pela necessidade antropológica e desejo intenso de viver livre, procuraram combater as potências imperialistas. Especificamente no meado e na segunda metade do século XX, levaram a cabo todo um conjunto de reivindicações pacíficas e violentas, entre elas, a produção de obras literárias que expressavam o desejo intenso de liberdade; a criação e o desenvolvimento de filosofias que defendiam a cultura, a dignidade do homem africano; bem como, filosofias sobre o desenvolvimento político e social de África e lutas armadas contra o opressor colonial.

O povo angolano não foi excepção, portanto, o que o impeliu a opor-se ao regime opressor colonial português por meio de grupos e movimentos de libertação nacional, foi também esta necessidade antropológica e desejo intenso de viver livre. No entanto, por insuficiência de meios, os movimentos de libertação sentiram-se compelidos a renunciar, consciente ou inconscientemente, o papel de sujeito da sua própria história para se tornarem mero “objecto”; cedendo o papel de sujeito às superpotências mundiais, EUA e URSS, que no contexto da guerra fria se lançaram para a África apoiando os diversos movimentos de libertação. Os EUA pretendia travar a expansão da influência da URSS em África. Por conta disto, optou por promover a cessação do colonialismo dentro de uma estratégia de cooperação com as potências coloniais.[4] Deste modo, as potências colonias tiveram que preparar as condições para outorgar a independência aos povos africanos. No entanto, Portugal mostrou alguma resistência, mas depois teve que cumprir com as exigências da estratégia dos EUA.

Foi neste contexto que alcançamos a independência nacional, à meia-noite de 11 de Novembro de 1975. Por isso, é que o processo para o seu alcance, foi assaz tenso e pouco pacífico. Pois, não havia uma única política de descolonização; nem união entre os principais movimentos de libertação nacional, FNLA, MPLA e UNITA, porque, a URSS apoiava o MPLA e os EUA a FNLA e a UNITA; os movimentos também colocaram a ambição pelo poder acima do interesse nacional; os novos decisores portugueses tinham interesses divergentes, enquanto uns desejavam que fosse o MPLA a governar, outros a FNLA e outros ainda a UNITA.[5]

Fruto disto, sobretudo por conta dos interesses das superpotências, a independência foi proclamada pelos três movimentos de libertação nacional. O MPLA proclamou-a em Luanda, enquanto a FNLA e a UNITA proclamaram-na juntos no Huambo. O MPLA foi reconhecido como governo legítimo, enquanto a FNLA e a UNITA dissociaram-se ainda mesmo no dia 11.[6]

Ainda dentro deste cenário, em 1974, os principais movimentos de libertação, instrumentalizados pelas superpotências, utilizados como “objecto” da sua própria história, engendraram a guerra civil, a guerra fratricida, cuja cessação oficial sucedeu a 4 de Abril de 2002, com a realização do memorando de entendimento de Luena.[7]

É evidente, destarte, que com o alcance da independência, Angola não conseguiu ganhar a autonomia necessária para construir a tão almejada liberdade, que foi a finalidade que moveu os seus filhos a lutar contra o opressor colonial português. Isto porque, já havia perdido a condição de sujeito da sua própria história e passou a ser objecto. De facto, a independência foi alcançada num clima de conflito entre os próprios movimentos de libertação, porque os fautores e “donos” da nossa história na altura disputavam pela conquista de Angola. Portanto, Angola alcançou a independência e engendrou a guerra civil como instrumento de vontades alheias.

 

2.      CONQUISTA DA PAZ NACIONAL E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUIR A ALMEJADA LIBERDADE

 

Em 2002, com a conquista da paz, fruto de uma decisão verdadeiramente livre[8], abriu-se-nos a possibilidade de realizar o nosso sonho genuíno, que nos impeliu a lutar contra o colonizador; sendo que já não havia a figura de um “não-eu”, que almejasse o poder, poderoso ou apoiado por poderosos. Deste modo, havia condições suficientes para que os irmãos da mesma pátria pudessem reconhecer que foram instrumentalizados e, em função disto, operarem uma mudança paradigmática; unindo-se e caminharem rumo à construção da liberdade, elemento fundamental para que a sociedade faça a história, como confirma Juan Cruz Cruz ao escreveu: “a realidade histórica pertence ao âmbito dos atos, da operatividade humana.”[9] É importante sublinhar, porém que, a possibilidade de realizar o nosso sonho genuíno não era absoluta. Porque, em muitos aspectos, sobretudo a nível económico, teríamos de nos sujeitar às regras, ao paradigma internacional. Por outro lado, o partido governante e vencedor da guerra estava comprometido política e moralmente com os países que o ajudaram a conquistar o poder e a vencer a guerra.

Deste modo, não obstante estes condicionamentos, ainda assim havia alguma possibilidade de se construir a liberdade e tornarmo-nos assim senhores da nossa história, embora não em um curto período tempo. Destarte, o que se nos exigia era apenas optar por medidas que servissem de meios para nos auto libertar da condição de “objecto” da nossa própria história, tais como, essencialmente o investimento sério na pessoa humana (o cidadão angolano); de modos a alcançarmos o desenvolvimento social, político, económico, cultural, científico e etc., para que conquistássemos a autonomia, factor fundamental para a construção da “liberdade existencial.”[10] No entanto, o que sucedeu é que, para a nossa infelicidade, optamos pelo caminho oposto. Ou seja, decidimos livremente continuar a ser mero “objecto” da nossa própria história, porque se colocou o interesse individual, os particulares e partidários acima do interesse comum. Por causa disto, não fomos capazes de desenvolver verdadeiramente do ponto de vista económico, político, social, educativo, científico, bem como das relações internacionais e entre outros.

É importante esclarecer que, a opção pela continuação no estado de mero “objecto” da nossa própria história, não é exclusivamente responsabilidade do partido governante, mas também é dos partidos políticos e coligações na oposição, sobretudo os que têm acento parlamentar, bem como da sociedade civil em geral. Isto porque, de um lado estão os nossos governantes, que decidiram e continuam a imitar no seu aspecto essencial a política do colonizador. Isto é, governar sem ouvir dos governados que tipos de país querem e podem construir, fazendo destes meros instrumentos da sua vontade.

Do outro lado, estão os partidos na oposição, que se preocuparam e continuam a preocupar-se sobretudo com a conquista do poder. Note-se que, aqueles que possuem acento no parlamento agem igualmente ao partido governante, no que se refere à imitação da política do colonizador no seu aspecto essencial. Pois, é notável que estes, diante de questões fundamentais, muitas vezes preferem optar pelo populismo, pelo marketing político, servindo-se dos meios de comunicação social para levantar tais questões; criticar severamente o executivo, mas não são capazes geralmente de realizar acções concretas que visam à construção de uma Angola melhor.

Do outro lado também está a sociedade civil, que geralmente se aparta da sua função essencial, que é de ser participante activa na construção do país. Esta, dificilmente é capaz de se organizar devidamente de modos a opor-se contra as políticas implementadas pelo executivo, que julga não serem as mais indicadas e apresentar uma contra proposta.

Deste modo, todos, mas todos nós, somos responsáveis pela continuação no estado de mero “objecto” da nossa própria história. Porque, de um lado é a sociedade civil e os partidos na oposição, que permitiram e continuam a permitir que uma pequena elite governasse e continue a governar como governa; e do outro lado, é esta elite imbuída no espírito de sujeito oprimido, segundo a perspectiva de Paulo Freire[11], que governa sem perspectivas de transcendência para a autonomia, por conseguinte, para a construção da liberdade.

Portanto, somos nós mesmos que livremente nos auto renunciamos a possibilidade de vivermos livres e não o ocidente, como muitos apologizam. Assim sendo, o nosso desafio não deve consistir em reclamar, criticar e solicitar a liberdade ao ocidente, ao homem branco, bem como às potências mundiais em geral; mas sim, em tomarmos consciência da nossa pobre e vergonhosa condição de “objecto” da história, da economia, da política e por diante, e tomarmos urgentemente medidas para construirmos a liberdade, removendo os obstáculos que nós mesmos criamos e continuamos a criar imbuídos no espírito irracional e infantil de ambição sem sentido. Pois, saqueamos as nossas próprias riquezas para enriquecer aqueles que já nos exploram.

3.      ENTRAVES PARA A CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE

 

Volvendo a nossa atenção aos obstáculos que criamos (cremos que inconscientemente) para dificultar a construção da nossa própria liberdade, notamos que os principais ou os de maior impacto são: a primazia do interesse individual ao comum; a excessiva partidarização; os esforços desmedidos para manutenção e salvaguarda do poder; a luta pela conquista do poder e a débil consciência política e cívica por parte da sociedade civil.

Concernente à primazia do interesse individual ao comum, este é um dos principais obstáculos, na medida em que dificulta significativamente o processo de desenvolvimento do país. É de facto comum em Angola, os detentores de cargos públicos preocuparem-se mais em enriquecerem-se por meio da coisa pública do que trabalhar propriamente em prol do bem comum; consequentemente, constata-se um nível elevado de corrupção, uma constante prática do crime de peculato, instaurando assim um enorme caos social, político e económico. Fruto desta situação, muitos cidadãos estão impedidos de usufruir determinados direitos, entre estes, a educação, a habitação e a informação. Muitos não estão inseridos no sistema de ensino, por ausência de escolas suficientes, bem como de valores financeiros para aderirem às instituições privadas ou mesmo corromper para ingressar nas instituições públicas, pois, já se tornou “institucional” tal prática. Como também, maior parte da população carece das condições básicas para poder viver com o mínimo de dignidade possível, tais como, uma residência digna, água, alimentação, acesso à internet entre outros.

Quanto à excessiva partidarização, este é um mal antigo e conhecido, no entanto, negativamente o actual governo continua a insistir nesta prática. Basta volver o nosso olhar aos deputados, que são formalmente os representantes do povo, conforme estabelece a Constituição da República no seu artigo 147.º, porém, materialmente são exclusivamente representantes dos seus partidos políticos. Fruto disto, as leis geralmente são elaboradas e aprovadas em função do interesse do partido A ou B. Portanto, a vontade do povo não é tida nem achada. O acesso ao exercício de cargos públicos de relevância, tanto a nível micro como macro, é praticamente exclusivo aos homens dos partidos políticos, sobretudo do partido governante.

Fruto deste partidarismo, infelizmente os homens dos partidos primeiro tomam as decisões sobre questões vinculadas ao destino do país e só depois é que as mesmas são discutidas e analisadas “publicamente”, mas sem qualquer dignidade oficial.

É importante realçar que este é um dos principais obstáculos, porque, é um paradigma antidemocrático e totalitarista, na medida em que o exercício da actividade política é praticamente exclusiva aos partidos políticos, tornando assim o povo em mera marionete da vontade dos mesmos. O professor Bonavides confirma esta perspectiva ao escrever:

A democracia do Estado social é a democracia do Estado partidário, que se não confunde com a democracia parlamentar e representativa do Estado liberal. Nela são os partidos a expressão mais viva do poder. Caracteriza-se como democracia coletivista, social, onde a compreensão dos valores humanos terá de fazer-se sempre com referência a grupos e não a indivíduos.[12]

Note-se que, o exercício real da democracia é uma das ferramentas fundamentais para a construção da liberdade.

No que toca aos esforços desmedidos pera manutenção e salvaguarda do poder, bem como para a sua conquista, estes são males evidentes. De facto, por conta disto, há uma enorme dificuldade de colaboração entre os partidos políticos, sobretudo entre os que se encontram na oposição e o que governa, no que tange a elaboração de políticas que visam verdadeiramente a construção de uma Angola melhor. Pois, o que governa geralmente elabora políticas e leis visando sobretudo os seus interesses enquanto partido político, em contrapartida, os partidos na oposição contestam tais políticas, tais lei, visando também os seus interesses enquanto partido. Portanto, neste conflito entre os partidos políticos, o interesse comum, nacional, patriótico acaba sendo descurado; consequentemente estagna-se o desenvolvimento do país.

Quanto à débil consciência política e cívica por parte da sociedade civil, é importante reconhecer que já houve alguma evolução quanto a este aspecto. No entanto, o nível de consciência política e cívica por parte da mesma, na sua maioria ainda é muito reduzida. De facto, maior parte desta concebe a actividade política como uma tarefa exclusiva aos partidos políticos, por conseguinte, muitos não se consideram parte integrante do processo de construção da comunidade política. Portanto, o exercício da cidadania por parte desta, que é quase reduzida ao simples sufrágio, é geralmente norteada por princípios de adeptos de equipas de futebol, ou seja, a escolha do presidente e, por conseguinte, do partido que se deseja que nos governe, é feita em função da simpatia por este ou aquele partido; pelos benefícios recebidos destes; por amor ao partido; por dissabores do passado e não em função do projecto de sociedade política que os mesmos apresentam. Porém, é importante reconhecer que muitos factores contribuem para tal, entre estes, o índice elevado de analfabetismo, de pobreza e a deficitária educação académica, pois, do ponto de vista material o nosso sistema de ensino ainda é assaz precário.

Ainda assim, pensamos que a sociedade civil é também em parte culpada pelo estado em que se encontra, porque, não obstante às inúmeras dificuldades, ainda há possibilidades de desenvolvimento intelectual, porque hoje, o mundo está demasiadamente aberto; o nível de globalização é enorme e sobretudo pelo facto de ser constituída por pessoas, esta é um ser livre. Diz-nos Romano Guardini, citado pelo professor José Enrique Sobrero Bosch que, “a liberdade é «auto-pertença».”[13]

Concebendo a liberdade como auto-pertença, isto é, a capacidade da pessoa ser dona de si mesma, capaz de decidir por si mesma, de forma autónoma; faz isto ou aquilo porque quer, porque julga ser o melhor a fazer-se; como escreve Guardini, “eu percebo-me livre quando me sinto como pertencente a mim mesmo em meu ser, na minha decisão, no meu agir. Me pertenço no meu agir, e não só actua em mim uma realidade «impessoal»”[14]; compreende-se que os factores supra mencionados obstruem de facto Angola de ser livre, na medida em que estes impedem o desenvolvimento do país. Pois, os que governam, para se manterem no poder, criam todo um conjunto de meios que contribuem para a alienação dos seus próprios irmãos; negando-lhes a educação ou dando-lhes uma educação não libertadora, bem como, lhes negando o essencial para se poder viver com o mínimo de dignidade. Enquanto, os partidos na oposição dedicam-se pura e simplesmente a lutar para alcançar o poder. O povo, alienado e instrumentalizado, perde-se no interior desta dura realidade como se estivesse num labirinto.

Diante deste cenário, é o próprio país no geral que se destrói. Porque, por ausência de condições humanas suficientes para utilizar a imensa riqueza do país para o nosso próprio benefício, somos obrigados a depender de outros países, importando até coisas básicas que nós mesmo possuímos, mas não as produzimos como tal; como também, vendemos determinados recursos naturais a preços baixos para outros países e estes servem-se dos mesmos e fabricam materiais, que posteriormente, nós necessitamos de os adquirir e geralmente a preço elevado.

Portanto, o não abandono, a não transcendência destas atitudes, destas práticas, tornar-nos-á cada vez mais prisioneiros da vontade dos poderosos mundiais, porque, continuaremos no estado de menoridade.[15]

Todavia, a remoção dos obstáculos da liberdade constitui um imperativo para o bem de Angola no geral, quer para os governantes, quer para os governados. Porque, estes obstáculos estorvam o desenvolvimento a nível político, económico, social, educativo, científico, bem como, engendram a pobreza, a divisão e sobretudo contribuem sobremaneira para a anulação do desenvolvimento da pessoa humana, sujeito insubstituível da economia, da política, da educação e de todos os outros factores da vida em sociedade.

 

4.      PASSOS PARA A LIBERDADE

 

A via para construirmos a liberdade, factor essencial para uma existência verdadeiramente humana, faz-se fundamentalmente por meio do investimento sério no cidadão angolano. Porque, é a pessoa humana, ser dotado de inteligência racional e vontade livre, que gera, produz e desenvolve a política, a economia, a educação, a ciência e todas outras actividades inerentes à vida em sociedade. Assim sendo, o investimento no cidadão é um imperativo e condição sine quo non para a libertação de Angola, no sentido de que, com a capacitação do sujeito humano, Angola terá maiores possibilidades de se desenvolver, sem ter que ser dependente de outros países. Portanto, se não se apostar seriamente no cidadão, Angola vai continuar no cativeiro da menoridade, dependendo sempre de outros países, condição que impede a construção da liberdade. Pois, a dependência reduz ou anula mesmo a liberdade, porque, as relações entre os Estados é movida por interesses, pelo desejo de alcançar algo que se julga ser um bem para si. Portanto, a dependência é um factor de alienação.

É importante realçar que este investimento deve ser feito de modos a capacitar o cidadão angolano para ser capaz de desenvolver a política, a economia, a educação, a ciência e etc., com finalidade a alcançar a autonomia, elemento fundamental para se viver livre. No entanto, este investimento não deve ser simplesmente no especto educativo e científico, mas sim, deve ser feito de forma integral. Pois, ensina-nos o provérbio latino:“prímum vivere, deinde philosofare”[16], e Mondin comenta-o com as seguintes palavras:

[…] Sem determinadas condições sociais, económicas e políticas, torna-se impossível qualquer especulação filosófica (como, além disso, qualquer outra actividade cultural séria). Quando o homem é atormentado pela fome ou pela miséria, ou oprimido pela escravidão ou pela ignorância, não tem tranquilidade, nem tempo nem disposições mentais para formular hipóteses filosóficas [bem como a nível de outras áreas do saber] rigorosas e sistemáticas […][17]

Portanto, julgamos que os principais passos para se fazer o caminho da liberdade, que consiste fundamentalmente no investimento sério no cidadão angolano, são:

·        Reconhecimento humilde e renúncia da nossa pobre e lamentável condição de instrumento de vontades alheias;

·        Remoção dos obstáculos que criamos livremente para nos auto-alienar;

·        Conversão da consciência de escravo à consciência livre;

·        Instauração de uma política de todos e para todos;

·        Combater a pobreza, procurando fazer com que todos beneficiem equitativamente dos bens do país, que pertencem a todos os cidadãos;

·        Transformar as instituições educativas em espaços capaz de formar homens e mulheres com capacidade de utilizar as nossas riquezas para a fabricação de bens, de modos a conquistar a autonomia económica e também de produzir teorias que possam nortear e dar resposta às diversas questões de Angola, tanto a nível político, económico, educativo e entre outros.

Vamos destacar apenas alguns dos pontos que ainda não foram desenvolvidos, entre eles, o terceiro e o quarto.

A conversão da consciência de escravo à consciência livre, a consciência autónoma, consiste em deixar de absorver de forma passiva a cultura e todo o conjunto de ideias e padrões ocidentais e não só, passando a servirmo-nos de nós mesmos, da nossa própria razão para decidir o que queremos e como queremos. Note-se que, foi com esta consciência livre, autónoma, que os iluministas no século XVIII produziram brilhantes ideias que suscitaram e nortearam a Revolução Francesa, que operou uma grande transformação política e social a nível mundial; como escreveu Eric Hobsbawm no seu livro “A Era das Revoluções (1789-1848)”: “se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa.” [18]

Para a materialização da conversão da consciência, é necessário que se crie condições para que se possa fazer ciência em Angola, não simplesmente por meio das instituições de ensino, mas também por meio individual. Deste modo, será importante a criação e implementação de políticas que instiguem, apõem e possibilitem a iniciativa científica espontânea, de modos a suscitar uma classe intelectual verdadeira, livre e autónoma. Pois, é esta classe, que geralmente difunde ideias que impulsionam as revoluções sociais, política, económicas entre outras.

Quanto à instauração de uma política de todos e para todos, aqui é compreendida como uma política inclusiva e participativa, onde todos os cidadãos independentemente de serem ou não membros de partidos ou coligações políticas, tenham a possibilidade de participar de forma activa na vida política do país, inclusive possam fazer parte do aparelho governativo do Estado. Nesta senda, esta política exclui toda e qualquer forma de divisão e exclusão nefasta.

Pensamos que, assim como Kwame Nkrumah e posteriormente Muamar Kadafi defenderam a unidade africana, julgando que os Estados africanos individualmente são demasiados fracos na relação com as grandes potências da Europa e da América[19], analogamente Angola também se encontra débil; devido em parte ao existente conflito dialéctico entre o partido que governa e os que se encontram na oposição, bem como, entre o partido que governa, os que se encontram na oposição e a sociedade civil. Portanto, entendemos que, necessitamos de deixar de parte os conflitos, as divisões e desuniões, de modos a unirmo-nos para nos fortalecermos a fim de ganharmos robustez diante do quadro das relações internacionais.

Referindo-se à África no geral, Severino Ngoenha dentro da perspectiva de Nkrumah explica como a ausência de união entre os Estados africanos contribui para a autodestruição dos mesmos, escrevendo:

Os Estados africanos, individualmente considerados, são demasiados fracos perante as grandes potências da Europa e da América [e da Ásia], firmemente associados à NATO de Obama, ao BM de Robert Zoellick, e ao FMI de Christine Lagarde. Esta fraqueza leva-os a procurar a sua segurança em acordos com as ex-potências coloniais ou com as potências neocoloniais, permitindo, eventualmente, que sejam utilizados uns contra os outros, a favor de alianças ou rivalidades dessas mesmas potências imperialistas.[20]

Fazendo uma analogia com Angola, é nítido que a ausência de união interna, não nos ajuda a libertarmo-nos dos encarceres da instrumentalização.

Todavia, o caminho para a liberdade deve fazer-se essencialmente pela aposta séria no cidadão angolano, de modos que sejamos capazes de conquistar sobretudo a autonomia política, económica e científica. Isto só será possível, se reconhecermos humildemente que estamos alienados, que somos instrumentos de vontades alheias, por tanto, não somos autónomos, por conseguinte, não somos livres, e decidirmos auto nos libertar de tal condição, cujos únicos culpados somos nós mesmos; instaurando uma política de todos para todos; removendo os obstáculos da liberdade que livremente criamos, entre eles, a primazia dos interesses individuais ao comum; a excessiva partidarização; os esforços desmedidos pera manutenção e salvaguarda do poder; a luta pela conquista do poder e a débil consciência política e cívica por parte da sociedade civil.

 

CONCLUSÃO

 

Nesta peregrinação racional com o intento de identificar os passos para se fazer o caminho da liberdade em Angola, reflectimos sobre as seguintes questões:

1.      O alcance da independência;

2.      Conquista da paz nacional e a possibilidade de construir a almejada liberdade;

3.      Entraves da liberdade;

4.      Passos para a liberdade.

Quanto ao primeiro ponto, entendemos que o fim que moveu o povo angolano a lutar contra o regime colonial português para conquistar a independência, foi a necessidade antropológica e desejo intenso de viver livre; este, com o alcance da independência, não foi concretizado. Isto porque, a independência não foi conquistada, mas sim outorgada, em função dos interesses dos “sujeitos” da nossa história na altura (URSS e EUA), que disputavam por Angola dentro do contexto da guerra fria.

Na reflexão sobre a conquista da paz nacional e a possibilidade de construir a almejada liberdade, compreendemos que com o alcance da paz, se nos abriu a possibilidade de construirmos o caminho da liberdade. Mas, negativamente, livremente, talvez inconscientemente, optamos por permanecer na condição de “objecto” da nossa própria história, escolhendo opções que nos aprisionam.

No terceiro ponto, identificamos os principais factores que estão na base da não construção do caminho da liberdade. Estes são: a primazia do interesse individual ao comum; a excessiva partidarização; os esforços desmedidos para manutenção e salvaguarda do poder; a luta pela conquista do poder e a débil consciência política e cívica por parte da sociedade civil.

Quanto ao último ponto, apresentamos o que julgamos ser os principais passos para fazer o nosso caminho da liberdade, que são: reconhecimento humilde e renúncia da nossa pobre e lamentável condição de instrumento de vontades alheias; remoção dos obstáculos que criamos livremente para nos auto-alienar; conversão da consciência de escravo à consciência livre; instauração de uma política de todos e para todos; combater a pobreza, procurando fazer com que todos beneficiem equitativamente dos bens do país, que pertencem a todos os cidadãos; transformar as instituições educativas em espaços capaz de formar homens e mulheres com capacidade de utilizar as nossas riquezas para a fabricação de bens, de modos a conquistar a autonomia económica e também de produzir teorias que possam nortear e dar resposta às diversas questões de Angola, tanto a nível político, económico, educativo e entre outros.

Todavia, pensamos que a tarefa de construção da liberdade, deve ser uma responsabilidade de todos os cidadãos angolanos, de modo especial, da classe política e da classe intelectual livre.

É importante sublinhar que, não concebemos a liberdade como absoluta, mas sim, como limitada. Deste modo, o facto de necessitarmos construir o caminho da liberdade, não significa que devemos optar pela postura de Mônada, excluindo-nos da relação, da cooperação com outros países, quer sejam europeus, americanos ou Asiáticos. Portanto, a construção da liberdade, não deve ser entendida como um meio para enxergarmos as potências europeias, americanas, asiáticas, bem como, outros países não africanos, como inimigos e adversários, mas sim, deve servir de meio para que caminhemos como adultos, isto é, ser senhor do nosso próprio destino.

De igual modo, é importante esclarecer que somos apologistas de que os países africanos devem ser realmente unidos, mas não necessariamente que se devam unir materialmente, formando uma espécie de Estados Unidos da África, como defenderam os estadistas Kwame Nkrumah e Muamar Kadafi. Portanto, defendemos que, a construção da liberdade de África deve ser feita em primeiro lugar a nível micro, isto é, a nível dos países em particular, só posteriormente, é que se deve construir a nível do continente em geral.

 

REFERÊNCIAS

 

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RAMPAZZO, Lino. Metodologia científica: para alunos dos cursos de graduação e pós-graduação. São Paulo: Edições Loyola, 2015, 8. ed..

 

[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Liv. I, I, 1094a, 1.

[2] Cf. BOAHEN, Albert Adu (Ed.). História geral da África: África sob dominação colonial, 1880-1935. rev. Brasília: UNESCO, 2010, 2. ed., 7 vpp. 1-3.

[3] Ibidem, p. 3.

[4] Cf. SÁ, Tiago Moreira de. Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola. Alfragide: Dom Quixote, 2011, pp. 24-25.

[5] Cf. Ibidem, passim.; MARQUES, Alexandra. Segredos da descolonização de Angola: Toda a verdade sobre o maior tabu da presença portuguesa em África. Alfragide: Dom Quixote, 2013, passim.

[6] Cf. SÁ, Tiago Moreira de, op. cit., p. 262.

[7] Cf. Ibidem, p. 157; KAKULO, Firmino; MORAIS, Beto de. Angola: Uma História, Uma Perspectiva. Itália: Propaganda- PD, 2015, p. 106.

[8] Consideramos a conquista da paz uma decisão verdadeiramente livre, porque, decidimos por nós mesmos, absolutamente livres e conscientes, sem estar intencionalmente dentro do esquema de interesse das superpotências ou quaisquer outras forças exteriores. Como escreveu Firmino Kakulo e Beto de Morais na obra citada: “ […] no final de tudo, a paz foi negociada e alcançada pelas negociações dentro dos apelos há muito lançados por angolanos e não só.” (PP.106-107).

[9] CRUZ, Juan Cruz. Filosofia da HistóriaTradução de Fernando Marquezini. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “ Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2007, 2. ed., p. 20.

[10] Este termo é utilizado no texto para designar a existência autêntica, entendida como existência livre em que o Da-sein decide por si mesmo, em conformidade com a sua vontade e consciência.

[11] O espírito de sujeito oprimido segundo a perspectiva de Paulo Freire a que nos referimos, consiste em o oprimido almejar ser o opressor na luta pela sua libertação, como explica Freire na obra “A Pedagogia do Oprimido”: […] quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade. [s.p]

[12] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, 10. ed., [s.p.].

[13] GUARDINI, 1987 apud BOSCH, 2018, p. 94.

[14] GUARDINI, 1996 apud BOSCH, 2018, p. 97.

[15] O estado de menoridade é definido por Immanuel Kant na obra “Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo?”, como, “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem.” (P.1). Este estado, aqui é compreendido como a incapacidade de um país se auto desenvolver por falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a guia de outrem.

[16] Primeiro viver, depois filosofar.

[17] MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução de Benôni Lemos; revisão de João Bosco Lavor Medeiros. São Paulo: Paulus, 1981, 3. ed. , 1 v, p. 16.

[18] HOBSBAWM, Eric J. Era das Revoluções (1789-1848).[S.l.]: Paz e Terra, [s.d.]. [s.p.].

[19] Cf. NGOENHA, Severino Elias. Das independências às liberdades. Águeda: Paulinas, 2014, p. 76.

[20] Ibidem, loc. Cit.