178 – ANFER , LIMPEZA GERAL

De Romano Dazzi

 

- "Fernando José Antinori! - Guichê cinco!"

A voz esganiçada do alto falante sacudiu-me do torpor que tomava conta de mim.

- "Finalmente! - falei baixinho ao meu colega André - estou aqui desde as sete; estava na hora de se lembrarem de mim!"

André olhou-me com um pouco de inveja - ele também tinha chegado naquela hora e esperava ser chamado, como eu.

- "Boa sorte, companheiro!" - murmurou ele.

- "Obrigado! Espero que você também seja feliz!" - respondi sem muita convicção. Avancei pela sala, rígido, tenso como uma corda de violino; por quê? Simples. Estava havia meses sem trabalho, tinha batido em todas as portas conhecidas e não; tinha recebido dezenas de respostas desanimadoras.

Esta era, talvez, a minha última esperança..

Aguardei sentado, ao lado do guichê e meus pensamentos voaram.

 

Interessante, esse André.

Tão encolhido e reservado  era eu, tão expansivo e exuberante era ele.

Estávamos naquela fila havia três horas, e o que poderia ter sido uma espera monótona e cansativa, tornara-se um intermezzo agradável e movimentado.

Um tempo excelente para travar conhecimento e trocar idéias.

Ele começara falando de Alzira, a esposa, uma "ex-menina de escritório" - como a definiu - e de Matheus, garoto esperto, de quatro anos, que o adorava.

Contou como tinham sido duros os primeiros dois anos de casamento; e como a vida andara melhorando um pouco, até a falência da fabrica em que trabalhava.

Expliquei que eu era auditor; e ele disse logo, brincando: "Para trás, Satanás! Você é meu inimigo; eu sou um contador!".

Mas André era também um lutador - e deixou isso bem claro, quando alguém quis passar à nossa frente na fila.

Eu me encolhi, porque apesar de ter ficado aborrecido, sou do "deixa pra lá", sempre tento evitar confrontos e confusões.

Mas o André não deixou passar; falou alto e grosso, educado, mas firme.

Pensei que fossem voar uns tapas, mas o outro entendeu e foi para o fim da fila, com o rabo entre as pernas.

- "Como você conseguiu isso?" - perguntei admirado, pois nunca tinha enfrentado e nunca teria a coragem de enfrentar uma pessoa, com esta segurança.

- " Porque eu estava com a razão, ele feriu os meus direitos, só isso" - respondeu ele quase surpreso pela minha pergunta;

-" Mas se ele tivesse reagido, se tivesse criado uma confusão?"

- "Ele teria saído mal. Todos aqui viram o que aconteceu. Ele tentou furar a fila; você estava aqui comigo, e também viu tudo. A única atitude possível, é reagir de pronto à injustiça. É a coisa mais natural do mundo, não acha?"

- "Bem, sim, " - respondi confuso - "eu acho que sim, mas...não é melhor evitar complicações? Afinal, estamos numa fila de desempregados, procurando serviço, loucos para sobreviver. Qualquer confusão, e põem-nos na rua..."

" Na rua já estamos, Fernando. Nós estamos tentando entrar"

" Por isso é que eu falo, André. Vai pôr tudo a perder, porque um boçal qualquer tenta tirar o seu lugar na fila? Ora, ele que se dane! Eu quero o meu sossego; e um lugar a mais ou a menos, antes ou depois, não significa nada; vamos todos fazer a entrevista, não é?"

" Não, não, Fernando. Você se acovarda; tem medo de contestar, de firmar seus direitos. Você está errado."

"Não; eu tenho medo de apanhar - é diferente. Esse cara, com um único soco pode pôr-me nocaute por uma semana"


 

"Ele nem precisa lhe dar esse soco, se for este o caso. Você já foi nocauteado quando deixou que ele passasse por cima de seu direito. "

" Mas assim, se todo o mundo reagir, vamos acabar vivendo num mundo de brigões, de enfezados, de cabeças quentes".

" Não. É a impunidade que dá coragem ao ladrão. Porque quem não respeita os direitos dos outros não passa de um ladrão."

" Pode ser, André. Mas eu prefiro minha paz, minha tranqüilidade. Daria tudo o que tenho, para ficar sempre em paz com todo o mundo".

" Pois eu lhe digo uma coisa: toda a vez que tenho alguma dúvida sobre como agir, imagino que estou com o meu Matheus ao lado.

Ele espera que eu tome a atitude correta, que faça a coisa justa.

Se eu tentar encobrir minha reação natural à injustiça,  puxando o cobertor do medo, ele saberá que tem um pai covarde".

" Mas sabe quantos corajosos vão mais cedo para o cemitério? "

" Sei, mas prefiro ser um corajoso morto a um covarde vivo; e tenho certeza que o Matheus, quando chegar à idade da razão, concordará comigo."

Esta tomada de posições deu o tom às duas horas seguintes. Todos escutaram e acompanharam a conversa; e cada um certamente reavaliou suas idéias.

No fim, pensei que se o mundo tivesse mais Andrés e menos Fernandos, seria um pouco mais justo e seria mais fácil viver nele...

Aproximei-me do guichê cinco. Um funcionário de mau humor observava a papelada enquanto espiava minhas reações.

- "Você está ao par que a proposta deste emprego é de ajudante geral? Vai se submeter a fazer servicinhos de terceira, mesmo possuindo as qualificações que estão aqui nesta ficha?"

- “Sim, estou aqui para isto.” - respondi um pouco ressabiado.

- "Sabe" - continuou ele - "devo lhe dizer que desconfio de todos ex-executivos bem preparados; são orgulhosos,e vaidosos; em geral acabam brigando com os colegas e os inspetores e criando casos. Prefiro os analfabetos humildes, que fazem o que lhes mandam sem discutir. Além disso em geral eles têm muito mais prática de vassoura e pano de pó”.     

- "Quanto a isso, pode contar que eu aprendo rápido "- tentei retrucar.

O semblante do funcionário pareceu serenar-se aos poucos; tornou-se mais acessível e conciliatório. Esboçou até um sorriso.

- "Temos dois lugares para ajudante geral, no Banco X " - anunciou -" registro em carteira, salário mínimo, horário das 22 às 6, cinco dias por semana. Pagam um lanche à meia noite, uma condução de ida e volta e uma cesta básica de 45 reais.

O Banco fornece todo o material de limpeza necessário. São doze andares com 140 metros cada um. Serve? "

Claro que aceitei; e meu colega André também.

Começamos a trabalhar na semana seguinte. Sabe como é: atestados, exames, fotos, enfim correu uma semana inteira.

O trabalho era simples demais. Logo ficou aborrecido. Mas tentávamos fazê-lo da maneira melhor que sabíamos e que podíamos, banheiros inclusos. O difícil era o combate ao sono. Lá pela três da manhã, não dava mais. Tínhamos que molhar o rosto, tomar café, bater palmas, fazer movimento, para não dormir sobre a enceradeira.

Ao cabo de um mês, tínhamos dominado o serviço e conhecido os seus segredos. Acostumados com organização e planejamento, em quatro horas fazíamos o serviço que demoraria oito.

Foi natural começarmos a espiar, a fuçar, a fuxicar. Como qualquer faxineira que se preza. Descobrimos pequenos segredos, guardados descuidadamente nas gavetas; relacionamentos afetivos de pessoas que não conhecíamos, mas que se tornavam visíveis pouco a pouco, pelo que haviam escrito ao longo dos dias.


 

Finalmente, uma noite, não resistimos à curiosidade. Entramos na rede interna dos computadores.

E - juro que foi sem querer - descobrimos uma falcatrua sem tamanho.

O banco emprestara a uma só firma, que acreditávamos ser um cliente importante, mais de 60 % de seus recursos. Isto é, usava o dinheiro dos depositantes para alimentar alguém que não conseguia devolver nenhum dos empréstimos. E os empréstimos continuavam., um sobre o outro, um escondendo o outro, um maior que o outro... .

Era assunto de policia; ou, pelo menos, de fiscalização financeira.

Eu, como sempre, mantive-me na minha casca e tentei não enxergar nada.

Pensava que não era como parecia, que deveria haver uma explicação, que talvez esses números fossem só um exercício, uma simulação.

Não, não era. Definitivamente.

André ficou tão abismado quanto eu, mas antes de tomar uma atitude - eu sabia que ele nunca iria ficar quieto, sempre iria meter a boca no mundo - ficou matutando um bom tempo.

Poderia ser uma operação montada por gerentes; ou, mais facilmente, uma manobra de diretores; mas, pior do pior, podia ser uma enorme jogada, criada e gerida pela própria diretoria do banco e que desviava milhões.

Passamos duas semanas seguidas, perdendo horas e mais horas atrás de documentos e comprovações;, foi trabalhoso, mas relativamente fácil.. no fim, estava tudo lá: um panorama completo, tecnicamente perfeito. Bingo!

Afinal, apesar de já estarmos bem afiados como faxineiros, ainda não tínhamos perdido o pelo da profissão anterior.

E agora?

Tentei ficar na minha - na nossa. - "Vamos ficar quietos" - argumentava - "Vamos salvar o nosso salário mínimo, o leite das crianças..."

"Não, não e não" - retrucava André - "não vou calar, nem que a vaca tussa         "

Este assunto de vaca tossindo eu nunca entendi; mas era um ditado, uma prova da sabedoria popular, deveria dizer alguma coisa.

Pois bem. Depois de muita hesitação, acabamos falando no ouvido de um importantão, que logo se arrepiou.

A coisa resvalou para um grupo de outros importantões.

As pessoas envolvidas eram de altas rodas e o escândalo foi abafado.

Mas uma noite, irrompeu no banco um grupo de três importantões que nunca tínhamos visto. Convidaram-nos a sentar no décimo andar, no salão da diretoria. Foram rápidos e elegantes. - "Bom trabalho, rapazes!" - disse-nos com entusiasmo um "boss" que parecia ser o "big". -" Queremos que continuem o serviço, do mesmo jeito!. E agora será para a Associação Bancaria Nacional. Aqui estão as credenciais."

Foi assim que surgiu a grande oportunidade de nossa vida.

Criamos a ANFER (André e Fernando) Ltda, uma firminha sem pretensões, especializada em limpeza e faxina das instituições bancárias.

Continuamos trabalhando a noite, fuçando, remexendo, cavoucando nos papéis.

Sem esquecer de cumprir religiosamente todas as etapas da limpeza oficial.

Podem dizer que não é muito ético; mas do jeito que a justiça anda emperrada, só assim é que se consegue perseguir quem nos rouba.

Tinha razão o André: “É a impunidade que dá coragem aos ladrões; quem não respeita os direitos dos outros, os está roubando; é um ladrão; e deve ser tratado como tal”.

Os resultados do nosso trabalho são confidenciais e, portanto não nos é permitido divulgá-Ios.

Só posso acrescentar que o pequeno Matheus, que agora já vai à escola e está aprendendo a ler e escrever, fica todo orgulhoso, quando fala do pai: "O que faz o meu Pai? Ele é uma pessoa muito importante! É um ajudante geral!..."