ANENCEFALIA: sob o prisma do biodireito, da bioética e da vida.

  1. 1.            A anencefalia na ótica do Biodireito.

 

Cumpre inicialmente esclarecer o que se entende por anencefalia, que em poucas palavras significa a má-formação total ou parcial do cérebro ou da tampa do crânio. Segundo Maria H. Diniz para quem a anencefalia é:

Feto anencéfalo é aquele que por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). (DINIZ, 2001)[1].

  A medicina afirma que em caso de constatação da anencefalia, a vida do feto se inviabilizará. Tratando-se de um coração que bate sem cérebro, em outras palavras, são órgãos em funcionamento sem função de existir, mas que traz graves consequências à saúde física e psíquica da gestante e por vezes atingindo os familiares de forma direta ou indireta.

Com isso houve a necessidade de se discutir a possibilidade do aborto anencéfalo, sendo, portanto, primeiramente confirmada por uma junta médica, de no mínimo 02 médicos para a verificação da inviabilidade do feto. Assegurando com isso que os diagnósticos hoje são 100% seguros, de acordo com regras da resolução do CFM Nº 1.989/2012[2].

Diante da constatação médica-científica da má-formação do feto não deverá prevalecer qualquer espécie convicção moral ou religiosa que impeça a gestante e o profissional de medicina para realizar a operação, atuando assim dentro dos ditames da lei pátria e universal da Dignidade da Pessoa Humana, sem que se possa falar em violação as regras internacionais de Direitos Humanos, da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Artigo 4 .  Direito à vida:

Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.  Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.  Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente[3].(CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS).

(Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969) 

  1. 2.            Posição do STF

 

Diante da celeuma acerca da tipicidade ou atipicidade da conduta para a caracterização do crime de aborto no Brasil que é crime, tipificado nos arts. 124, 126 e 128, I, II do Código Penal, além de inúmeras ações judiciais por todo o país ajuizadas pelas mães que pediam o direito de realizar o aborto, a fim de se evitar ainda mais sofrimento, e por outro lado os médicos que após exames realizados com as gestantes ficavam impedidos de realizar a operação sob pena de responderem por crime de aborto e segundo MIRABETE “Aborto é a interrupção da vida intrauterina, com a destruição do produto da concepção” [4].

A partir de então houve a provocação do judiciário através da ADPF 54[5], onde a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde do Brasil pedia a corte do STF que desse uma nova interpretação da anencefalia de acordo com a Constituição e a afastasse do direito repressivo. Ocorrendo, portanto, uma verdadeira “abolitio criminis”.

Acolhendo logo o pedido neste sentido todo e qualquer crime desta natureza deveria ser encerrado, arquivado inquéritos, processos encerrados e baixados, liberação de todos que estivessem naquele momento no cárcere e que logicamente não haveria mais a necessidade de autorização judicial para a realização desse tipo de procedimento. E hoje o fato se tornou atípico, não podendo ninguém ser processado por isso.

Hoje a decisão cabe apenas ao médico em realizar ou não a operação, mas longe está de ser tida como conduta delituosa, que obrigava milhares de mulheres a recorrerem a clínicas clandestinas para que pudessem exercer seu direito de não prolongar o sofrimento com o prolongamento de uma vida inviável.

  1. 3.          Dignidade humana

 

Logo o norte da bússola se volta para este princípio que foi internalizado e posto como cláusula pétrea no ordenamento pátrio. A religião não pode forçar a mulher a se submeter a uma crença que a impede de ter dignidade. Mas se por outro lado a mulher por uma questão pessoal quiser levar a gravidez até o fim, que a decisão seja única e exclusivamente dela.

É o que se depreende em passagens do voto do relator Marco Aurélio:

 

“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”. 

Para ele, é inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição.

Obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura. (ADPF 54).

Cabe á mulher, portanto, colocar na balança os valores, sentimentos e crenças para que possa tomar uma decisão livre de ressentimentos e arrependimentos, cujo caráter de decisão é de cunho estritamente pessoal. Pois o direito só deve operar se for para a proteção da dignidade da pessoa humana, consagrado como valor universal  e que nesse caso deve estar presente para proteger as mulheres que já se encontram atingidas  de maneira antecipada pela perda prematura de um de um filho que venha a ter vida extrauterina contada em horas[6].

  1. 4.         Do fato ao Direito.

 

Tecnicamente a solução apontada pelo direito no caso do STF, foi no sentido de que o embrião tem apenas uma expectativa de vida, e que o direito visualiza apenas à vida como bem maior a ser tutelado pelo Estado, logo constatada a anencefalia este já se afigura como natimorto, assim não pode ser alcançado pelo direito repressivo, tornando-se desta maneira uma conduta atípica a realização da operação do aborto. Pelo fato afasta-se a possibilidade da vida, depois se afasta a tutela, mais adiante se afasta a tipicidade, assim afasta-se o crime.   

Conclui-se em apertada síntese que, o código penal já traz a possibilidade de aborto em duas ocasiões, a saber: quando há risco a gestante ou quando resultado de estupro, agora com esse novo entendimento dado a essas situações de anencefalia nosso ordenamento jurídico aponta a terceira via, embora esteja longe de atender aos ditames universais de liberdade, dignidade, autonomia dentre outros tantos, temos a certeza que se trata de um enorme passo nessa direção.

Marcio Roberto Lenco

 

 

 

 

 

 

A ANENCEFALIA:

Sob o prisma do Biodireito, da Bioética e da Vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Biodireito

Orientadora: Dra. Mary

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Universidade Santa Úrsula – USU

2014.



[1] DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 281.

[4] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 24ª ed., 2006, p. 62.

[5] STF - ADPF: 54 DF, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 27/04/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007 DJ 31-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02287-01 PP-00021.

[6] LFG- Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e codiretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).