Análise Global da Prostituição em Belo Horizonte - Definindo um Histórico de Vida Laborativa e de Adoecimento Mental - Emerson Tardieu Pereira
Publicado em 22 de dezembro de 2012 por BH Cidadã
Nos levantamentos preliminares efetuados com o intuito de conhecermos o contingente de mulheres praticantes da prostituição em Belo Horizonte, realizamos diversas enquetes junto a instituições e pessoas com atividades voltadas para esse público-alvo. Nesses levantamentos, descobrimos que tais organizações, inclusive aquelas pertencentes à esfera pública, em geral não possuíam dados concretos ou confiáveis que retratassem o fenômeno. As informações disponibilizadas eram de caráter estimativo e traduziam somente registros de localização e de algumas atividades relativas à prostituição.
Na pesquisa em literatura especializada, enfrentamos também dificuldades em obter referências técnicas mensurando a questão. Em geral, ela é tratada de forma genérica ou tendenciosa, caraterizando-se a prostituição como desvio social, crime contra a pessoa ou os costumes e até mesmo como conseqüência de transtornos psíquicos de comportamento.
Mesmo se tratando de uma prática de amplo conhecimento e registro popular, inclusive pelo fato de um grande número de pessoas se envolverem com ela, podemos perceber que os conceitos usuais situam-se apenas no nível de seu reconhecimento e localização. Em geral, a prostituição é vista pelo ângulo da estereotipia, não se percebendo sua real condição e o que pode decorrer dela.
Partindo dessa constatação e objetivando retratar esse significativo fenômeno social, à luz da metodologia e da estatística, optamos pela realização de uma pesquisa quantitativa, buscando expressar sua realidade numérica, seu desenvolvimento, sua caracterização e as diversas formas de apresentação.
Devemos registrar que, nos espaços construídos para a aplicação dos questionários, com vistas à formulação do banco de dados e à confecção desta publicação, tivemos a oportunidade de realizar também análises de enfoque localizado (qualitativo), o que em muito enriqueceu nossas conclusões.
OS NÚMEROS REGISTRADOS
(definindo o fenômeno)
O município de Belo Horizonte possui cerca de 6.000 mil mulheres atuando na prostituição. Os eixos de localização, assim como da própria atividade, obedecem aos critérios de segmentação sócio-econômica, refletindo a divisão de castas observada em nossa sociedade.
Sua localização no cenário geográfico da cidade obedece também à lógica da valorização imobiliária e da ocupação populacional, definindo-se de antemão, com raras exceções, os preços cobrados pelos programas, a idade e a estética da prostituta. O espaço onde se exerce a atividade e acesso a ele determinam os produtos e serviços ali disponibilizados.
A mercantilização da prática sexual torna-se clara, a nosso ver, a partir do momento que, atendendo a demandas específicas dos usuários, são estabelecidos critérios de mercado - muito semelhantes àqueles encontrados nas várias formas de prestação de serviços -para definir preço, produto, qualidade e tempo médio de utilização (vida útil).
OS EIXOS GEOGRÁFICOS DE LOCALIZAÇÃO
O mapeamento geográfico da prática da prostituição em Belo Horizonte aponta para a existência de quatro eixos básicos, assim divididos:
1.EixoCentro-Sul
(Zona Sul: Av. Afonso Pena, Av. Brasil, Av. Cristóvão Colombo, casas noturnas)
Constituído por boates de luxo e prostituição de rua, praticada nas avenidas Afonso Pena, Brasil, Cristóvão Colombo e ruas secundárias, onde pudemos observar a amostra de melhor estética e, em geral, com o menor tempo de prática. Esse segmento do mercado é considerado pelas prostitutas como o de maior rentabilidade. Nele se constata a presença predominante de jovens, que exercem voluntariamente a atividade, alegando que se iniciaram nela em decorrência das situações de pobreza e desemprego.
Essas jovens prostitutas, em sua maioria, são oriundas das regiões Norte e Nordeste do Estado, onde viveram, como é costume para uma larga faixa da população ali residente, graves problemas financeiros. Em geral, são induzidas à prostituição por pessoas que sobrevivem da exploração dessa prática. Sozinhas, raramente poderiam se deslocar para a capital, encontrar um local para morar e iniciar-se em pontos específicos de alta renda para a atividade.
Com características semelhantes, sentindo as conseqüências do desemprego e a dificuldade de inserção no competitivo mercado de trabalho, uma parcela significativa de jovens naturais de Belo Horizonte também adere à prostituição de luxo (se assim podemos dizer), como opção rápida para a solução de seus problemas - baixos salários ou falta de trabalho.
As jovens prostitutas voluntárias, de modo geral, iniciam sua trajetória pelas casas de luxo, onde realizam um número menor de programas, recebendo as melhores remunerações. Com o passar do tempo, frente ao desgaste de imagem junto aos freqüentadores dessas casas e à depreciação estética, migram-se para as rua da Zona Sul.
A perda do local privilegiado para trabalhar é um divisor, iniciando-se aí o processo de depreciação. Na ausência de clientes que remunerem melhor e da segurança oferecida pelas casas noturnas, passam a conviver com a violência das ruas e com a necessidade de realizar um número maior número de programas por dia.
2. Eixo Central
(Região Central: hotéis de alta rotatividade - Rua Guaícurus, Rua São Paulo)
Local onde se concentra o maior número de pessoas militando na prostituição em Belo Horizonte. A distribuição física é definida pela presença única dos hotéis - estabelecimentos que comportam de 20 a 80 mulheres por turno. Normalmente funcionam em dois turnos, porém existem registros de hotéis que funcionam em tempo integral (24 horas).
Esses estabelecimentos são classificados pelas prostitutas e pelos clientes em categorias. São definidos como hotéis de primeira linha aqueles onde se concentram as mulheres mais jovens e com melhor estética. Nos de segunda linha ("sacolões"), encontramos uma amostra muito diversificada. A denominação popular, adotada pelas próprias freqüentadoras, provém da variação (idade, cor, preço, modalidades sexuais, etc) e da quantidade de mulheres ali dispostas como objetos e dos baixos preços cobrados.
Tais hotéis são ocupados basicamente por locatárias que já estiveram exercendo a atividade em outras capitais ou grandes cidades nordestinas e por antigas militantes de boates e ruas da Zona Sul de Belo Horizonte. O desgaste proporcionado pelo tempo, a exposição excessiva a agentes nocivos e o estado de acomodação psíquica, quase sempre doentio, estimulam a opção pelos hotéis.
Nesses locais, o programa tem seu preço drasticamente reduzido, situação compensada pelo grande aumento da demanda pelos serviços. Como conseqüência dessa situação, as mulheres realizam um número absurdo de programas diários, na tentativa de manterem a renda antes auferida.
Aqui devemos ressaltar a ocorrência do conceito de profissionalização da atividade e, por conseqüência, a descoberta da ausência de mecanismos legais para que ela seja regulamentada. A inexistência de uma legislação específica a respeito contribui substancialmente para a exploração financeira.
Desamparadas e temendo sofrer sanções penais face ao estado de clandestinidade, as mulheres se submetem a situações abusivas. Esse estado favorece a destituição psíquica dos princípios básicos norteadores da cidadania e, por conseqüência, dos direitos civis e constitucionais.
Os episódios que caracterizam a exploração são percebidos quando avaliamos o montante pago pela locação de um quarto e a forma como esse aluguel é cobrado. A profissional é obrigada a pagar altas diárias, geralmente pela utilização parcial do quarto (um turno: 8 horas), mesmo nos dias em que não trabalha. Na inexistência de regulamentação e de contratos formais de locação, a situação torna-se perdulária em todos os hotéis do eixo.
3. Eixo Norte
(Região Norte: Pampulha - Av. Montessi - ruas)
Sua localização afastada da área central da cidade se deve à existência de um grande número de antigos motéis na região. Com o crescimento demográfico local, esses estabelecimentos passaram a servir às diversas modalidades de prostituição, atendendo a uma demanda de usuários que, pela distância, não se direciona a outros pontos onde se exerce a atividade.
Trata-se da amostra de maior diversificação observada. Ali encontramos várias modalidades de prostituição no mesmo local. Entre as características básicas do eixo, destaca-se a existência da prostituição infanto-juvenil. Lado a lado, convivem prostitutas de rua, com mais de dez anos de ponto naquele local, jovens recém-iniciadas e travestis.
Sua localização geográfica e o perfil dos usuários propiciam, em geral, uma diferenciação dos padrões da trajetória das prostitutas em Belo Horizonte. As delimitações e segmentações financeiras normalmente observadas em outros eixos não possuem as mesmas características nessa região.
4.EixoLagoinha
(Região do complexo viário da Lagoinha: ruas Bonfim, Paquequer, Jaguarão e imediações - na mesma modalidade incluímos a Av. Paraná e a Rua Guarani)
Nessas regiões encontraremos muitas mulheres nas antigas casas de prostituição (zona boêmia) e outro número significativo delas trabalhando nas ruas, bares e botequins.
No histórico da prostituição e boêmia em Belo Horizonte, regiões que anteriormente eram consideradas nobres hoje sequer guardam resquícios de seu apogeu. Com a evolução dos costumes, a massificação e banalização da prática sexual e o uso em larga escala da prostituição, os hotéis de alta rotatividade, localizados na região centrai da cidade, de fácil acesso, reaparecem no cenário social, proporcionando uma inversão no fluxo de usuários.
Atualmente, concentra-se nessas regiões o maior número de prostitutas em final de carreira. Com média de permanência nas ruas já acima de 20 anos, essas mulheres já se encontram bastante depreciadas.
Registramos no eixo índices acentuados de alcoolismo, drogadicção, adoecimento mental e mulheres vivendo em situação de miséria, atípica nas outras áreas pesquisadas.
Assim, não mais conseguindo atrair um número de clientes capaz de proporcionar um rendimento que lhes assegure condições dignas de existência, essas mulheres, em sua maioria, são compelidas a residir no local de trabalho.
a divisão em categorias: pseudo-profissionais e episódicas
Em geral a prostituição feminina divide-se em duas modalidades básicas. Na primeira, encontram-se as mulheres que acreditam ter-se profissionalizado na atividade, o que ocorre por volta do décimo ano de atuação. Na segunda, de maior amplitude, enquadram-se aquelas que se utilizam dessa prática em situações episódicas.
Esse significativo grupo episódico geralmente inicia suas atividades acreditando na prática da venda do corpo como meio de obter grandes rendas em um reduzido período de tempo. Também acredita que, através da prostituição, estará burlando ou fugindo às regras e dificuldades observadas no mercado formal de trabalho (qualificação profissional, horários rígidos, salários aviltados, etc). Procura, assim, escapar de sua condição sócio-econômica e cultural e modificar seu status, definido pela capacidade de consumo.
Para as mulheres desse grupo, o abandono da prostituição ocorre no momento em que tomam consciência da trajetória inadequada a ser percorrida. Os episódios de violência física, comuns para aque-as que atuam nas ruas, e o adoecimento por DSTs aceleram a decisão de mudar de vida.
Porém, parte significativa delas se manterá na atividade, passando a se intitular "profissionais do sexo". Nesse segmento, observamos altos índices de desorganização psíquica, situação associada ao comprometimento afetivo e das funções adapto-sociais. Aqui observamos que a aceitação torna-se passiva e fatores mesógenos decorrentes de seu modo de vida, como o estresse e a auto-violação psíquica, não mais são percebidos na rotina de trabalho. Somente o risco de dissociação grave, como o extermínio, é notado como não natural e digno de atenção. O fenômeno psicológico da institucionalização é claramente percebido. Surgem então as preocupações relativas à legalização da profissão e aos direitos previdenciários.
A partir de dois anos de atuação como profissional do sexo, e com a falta de qualificação escolar e de experiência trabalhista com registro formal, a inserção no mercado de trabalho torna-se praticamente impossível. A permanência na prostituição surge como única opção viável. A inexistência de políticas públicas de amparo a essas pessoas leva a um sombrio prognóstico sobre sua situação, a ser confirmado brevemente.
Sob essa ótica, devemos enfatizar que os cursos profissionalizantes proporcionados pelo programa "Construindo a Cidadania" a 150 profissionais do sexo obtiveram, na categoria de prostitutas antigas, excepcionais resultados*. A continuidade do programa significará para um grande contingente de mulheres a possibilidade única de ruptura com esse estado de letargia e adoecimento.
O NÚCLEO FAMILIAR E O ESTADO CIVIL
O estado civil das mulheres que praticam a prostituição seguirá a lógica determinada pela idade e pelo estado de amadurecimento emocional, assim como pelo código de conduta vigente no meio.
O perfil básico da amostra aponta a idade média de 21 anos e a inexistência de vínculos afetivos formais (a maioria é composta de mulheres jovens e solteiras). Nesse segmento, as preocupações estarão voltadas basicamente para a obtenção de renda, não se demonstrando interesse pelo estabelecimento de relações afetivas duradouras.
No ambiente da prostituição, a manutenção de vínculos afetivos quase sempre estará ligada ao surgimento da figura do explorador (agenciador, cafetão). Em face do preconceito social, raramente veremos indivíduos que se interessem afetivamente por pessoas que praticam a prostituição. São inúmeros os exemplos de prostitutas que se envolvem emocionalmente com
parceiros e que, levadas pela carência afetiva, se tornam vítimas da exploração.
No código de ética e conduta da prostituição, se assim podemos nos referir às regras observadas, o envolvimento afetivo com clientes ou terceiros é encarado como transgressão grave, sinal de fraqueza. Porém, na prática, observamos que, quando destituídas do papel de profissionais do sexo ou de mulheres vividas, essas pessoas desejam estabelecer relações afetivas, que incluem vínculos duradouros e até constituição de um núcleo familiar formal, de respeito e aceitação social.
Nesse tópico perceberemos uma significativa mudança nas relações e costumes familiares tradicionais. Na amostra global, 11,3% são casadas ou amasiadas, integrantes de um núcleo familiar. A prostituição, como se poderia supor, não é definida pela situação de desemprego do parceiro (77,1% deles possuem atividades no mercado de trabalho), mas como opção para aumentar a renda familiar. Os índices de prática da prostituição por outros membros da família, de 26,3%, parecem demonstrar que existe um estímulo à atividade.
concluindo parcialmente
Esta breve análise prepara o campo para que outros profissionais possam, cada um em sua especialidade, explicitar suas idéias dentro da temática proposta. O material disponível é suficiente para a confecção de alguns livros, com descrições e análises aprofundadas, sem restrições de espaço.
Pretendemos, no formato da revista, constituída por textos objetivos e de menor porte, atingir um universo maior e mais diversificado de pessoas, inclusive as profissionais do sexo, retornando a elas uma pequena parcela do rico material que nos foi oferecido.
Gostaríamos ainda de fomentar o interesse pela realização de programas de intervenção psicos-social nesse grupo, especificamente nas áreas de Saúde Pública, Trabalho, Seguridade Social e Segurança Pública. Parte significativa dos problemas existentes nesses campos resultam do desconhecimento observado sobre a temática.
Estamos fornecendo, através de nosso banco de dados, parcialmente publicado, números precisos sobre o fenômeno, que, trabalhados, poderão gerar novas leituras e compreensões. A formulação de políticas públicas que atendam às necessidades da categoria só se tornará viável a partir do conhecimento da questão.
Desta forma, resta-nos o dever de convidar o leitor, agora ciente de nossas restrições, a descobrir, através dos textos seguintes, novas interpretações para um antigo fenômeno social.