Nos levantamentos preliminares efetuados com o intuito de conhecermos o contingente de mulheres praticantes da prostituição em Belo Horizonte, realizamos diversas enquetes junto a instituições e pes­soas com atividades voltadas para esse público-alvo. Nesses levan­tamentos, descobrimos que tais organizações, inclusive aquelas pertencentes à esfera pública, em geral não possuíam dados concre­tos ou confiáveis que retratassem o fenômeno. As informações disponibilizadas eram de caráter estimativo e traduziam somente registros de localização e de al­gumas atividades relativas à pros­tituição.

Na pesquisa em literatura espe­cializada, enfrentamos também dificuldades em obter referências téc­nicas mensurando a questão. Em geral, ela é tratada de forma gené­rica ou tendenciosa, caraterizando-se a prostituição como desvio soci­al, crime contra a pessoa ou os cos­tumes e até mesmo como conse­qüência de transtornos psíquicos de comportamento.

Mesmo se tratando de uma prá­tica de amplo conhecimento e re­gistro popular, inclusive pelo fato de um grande número de pessoas se envolverem com ela, podemos perceber que os conceitos usuais situam-se apenas no nível de seu reconhecimento e localização. Em geral, a prostituição é vista pelo ângulo da estereotipia, não se per­cebendo sua real condição e o que pode decorrer dela.

Partindo dessa constatação e objetivando retratar esse significa­tivo fenômeno social, à luz da metodologia e da estatística, opta­mos pela realização de uma pes­quisa quantitativa, buscando ex­pressar sua realidade numérica, seu desenvolvimento, sua caracte­rização e as diversas formas de apresentação.

Devemos registrar que, nos es­paços construídos para a aplicação dos questionários, com vistas à for­mulação do banco de dados e à confecção desta publicação, tive­mos a oportunidade de realizar também análises de enfoque loca­lizado (qualitativo), o que em muito enriqueceu nossas conclusões.

OS NÚMEROS REGISTRADOS

(definindo o fenômeno)

O município de Belo Horizonte possui cerca de 6.000 mil mulhe­res atuando na prostituição. Os ei­xos de localização, assim como da própria atividade, obedecem aos critérios de segmentação sócio-econômica, refletindo a divisão de castas observada em nossa socie­dade.

Sua localização no cenário geo­gráfico da cidade obedece também à lógica da valorização imobiliária e da ocupação populacional, defi­nindo-se de antemão, com raras exceções, os preços cobrados pe­los programas, a idade e a estética da prostituta. O espaço onde se exerce a atividade e acesso a ele determinam os produtos e serviços ali disponibilizados.

A mercantilização da prática se­xual torna-se clara, a nosso ver, a partir do momento que, atendendo a demandas específicas dos usuá­rios, são estabelecidos critérios de mercado - muito semelhantes àqueles encontrados nas várias formas de prestação de serviços -para definir preço, produto, quali­dade e tempo médio de utilização (vida útil).

OS EIXOS GEOGRÁFICOS DE LOCALIZAÇÃO

O mapeamento geográfico da prática da prostituição em Belo Horizonte aponta para a existência de quatro eixos básicos, assim di­vididos:

1.EixoCentro-Sul

(Zona Sul: Av. Afonso Pena, Av. Brasil, Av. Cristóvão Colombo, casas noturnas)

Constituído por boates de luxo e prostituição de rua, praticada nas avenidas Afonso Pena, Brasil, Cris­tóvão Colombo e ruas secundárias, onde pudemos observar a amos­tra de melhor estética e, em geral, com o menor tempo de prática. Esse segmento do mercado é con­siderado pelas prostitutas como o de maior rentabilidade. Nele se constata a presença predominan­te de jovens, que exercem volun­tariamente a atividade, alegando que se iniciaram nela em decorrên­cia das situações de pobreza e desemprego.

Essas jovens prostitutas, em sua maioria, são oriundas das regiões Norte e Nordeste do Estado, onde viveram, como é costume para uma larga faixa da população ali resi­dente, graves problemas financei­ros. Em geral, são induzidas à prostituição por pessoas que sobre­vivem da exploração dessa prática. Sozinhas, raramente poderiam se deslocar para a capital, encon­trar um local para morar e iniciar-se em pontos específicos de alta renda para a atividade.

Com características semelhan­tes, sentindo as conseqüências do desemprego e a dificuldade de in­serção no competitivo mercado de trabalho, uma parcela significativa de jovens naturais de Belo Horizon­te também adere à prostituição de luxo (se assim podemos dizer), como opção rápida para a solução de seus problemas - baixos salá­rios ou falta de trabalho.

As jovens prostitutas voluntárias, de modo geral, iniciam sua trajetó­ria pelas casas de luxo, onde reali­zam um número menor de progra­mas, recebendo as melhores remu­nerações. Com o passar do tem­po, frente ao desgaste de imagem junto aos freqüentadores dessas casas e à depreciação estética, migram-se para as rua da Zona Sul.

A perda do local privilegiado para trabalhar é um divisor, iniciando-se aí o processo de depreciação. Na ausência de clientes que remune­rem melhor e da segurança ofere­cida pelas casas noturnas, passam a conviver com a violência das ruas e com a necessidade de realizar um número maior número de progra­mas por dia.

2. Eixo Central

(Região Central: hotéis de alta rotatividade - Rua Guaícurus, Rua São Paulo)

Local onde se concentra o maior número de pessoas militando na prostituição em Belo Horizonte. A distribuição física é definida pela presença única dos hotéis - esta­belecimentos que comportam de 20 a 80 mulheres por turno. Normal­mente funcionam em dois turnos, porém existem registros de hotéis que funcionam em tempo integral (24 horas).

Esses estabelecimentos são classificados pelas prostitutas e pelos clientes em categorias. São definidos como hotéis de primeira linha aqueles onde se concentram as mulheres mais jovens e com me­lhor estética. Nos de segunda linha ("sacolões"), encontramos uma amostra muito diversificada. A de­nominação popular, adotada pelas próprias freqüentadoras, provém da variação (idade, cor, preço, mo­dalidades sexuais, etc) e da quan­tidade de mulheres ali dispostas como objetos e dos baixos preços cobrados.

Tais hotéis são ocupados basi­camente por locatárias que já esti­veram exercendo a atividade em outras capitais ou grandes cidades nordestinas e por antigas militan­tes de boates e ruas da Zona Sul de Belo Horizonte. O desgaste pro­porcionado pelo tempo, a exposi­ção excessiva a agentes nocivos e o estado de acomodação psíquica, quase sempre doentio, estimulam a opção pelos hotéis.

Nesses locais, o programa tem seu preço drasticamente reduzido, situação compensada pelo grande aumento da demanda pelos servi­ços. Como conseqüência dessa situação, as mulheres realizam um número absurdo de programas diá­rios, na tentativa de manterem a renda antes auferida.

Aqui devemos ressaltar a ocor­rência do conceito de profissiona­lização da atividade e, por conseqüência, a descoberta da ausên­cia de mecanismos legais para que ela seja regulamentada. A inexistência de uma legislação es­pecífica a respeito contribui substancialmente para a explora­ção financeira.

Desamparadas e temendo sofrer sanções penais face ao estado de clandestinidade, as mulheres se submetem a situações abusivas. Esse estado favorece a destituição psíquica dos princípios básicos norteadores da cidadania e, por conseqüência, dos direitos civis e constitucionais.

Os episódios que caracterizam a exploração são percebidos quan­do avaliamos o montante pago pela locação de um quarto e a forma como esse aluguel é cobrado. A profissional é obrigada a pagar al­tas diárias, geralmente pela utiliza­ção parcial do quarto (um turno: 8 horas), mesmo nos dias em que não trabalha. Na inexistência de regulamentação e de contratos for­mais de locação, a situação torna-se perdulária em todos os hotéis do eixo.

3. Eixo Norte

(Região Norte: Pampulha - Av. Montessi - ruas)

Sua localização afastada da área central da cidade se deve à existência de um grande número de antigos motéis na região. Com o crescimento demográfico local, esses estabelecimentos passaram a servir às diversas modalidades de prostituição, atendendo a uma demanda de usuários que, pela distância, não se direciona a ou­tros pontos onde se exerce a ati­vidade.

Trata-se da amostra de maior diversificação observada. Ali en­contramos várias modalidades de prostituição no mesmo local. En­tre as características básicas do eixo, destaca-se a existência da prostituição infanto-juvenil. Lado a lado, convivem prostitutas de rua, com mais de dez anos de ponto naquele local, jovens recém-iniciadas e travestis.

Sua localização geográfica e o perfil dos usuários propiciam, em geral, uma diferenciação dos pa­drões da trajetória das prostitutas em Belo Horizonte. As delimitações e segmentações financeiras nor­malmente observadas em outros eixos não possuem as mesmas características nessa região.

4.EixoLagoinha

(Região do complexo viário da Lagoinha: ruas Bonfim, Paquequer, Jaguarão e imediações - na mes­ma modalidade incluímos a Av. Paraná e a Rua Guarani)

Nessas regiões encontraremos muitas mulheres nas antigas casas de prostituição (zona boêmia) e outro número significativo delas tra­balhando nas ruas, bares e bote­quins.

No histórico da prostituição e boêmia em Belo Horizonte, regiões que anteriormente eram considera­das nobres hoje sequer guardam resquícios de seu apogeu. Com a evolução dos costumes, a massificação e banalização da prá­tica sexual e o uso em larga escala da prostituição, os hotéis de alta rotatividade, localizados na região centrai da cidade, de fácil acesso, reaparecem no cenário social, pro­porcionando uma inversão no flu­xo de usuários.

Atualmente, concentra-se nes­sas regiões o maior número de prostitutas em final de carreira. Com média de permanência nas ruas já acima de 20 anos, essas mulheres já se encontram bastan­te depreciadas.

Registramos no eixo índices acentuados de alcoolismo, drogadicção, adoecimento mental e mulheres vivendo em situação de miséria, atípica nas outras áreas pesquisadas.

Assim, não mais conseguindo atrair um número de clientes capaz de proporcionar um rendimento que lhes assegure condições dignas de existência, essas mulheres, em sua maioria, são compelidas a residir no local de trabalho.

a divisão em categorias: pseudo-profissionais e episódicas

 

Em geral a prostituição femini­na divide-se em duas modalidades básicas. Na primeira, encontram-se as mulheres que acreditam ter-se profissionalizado na atividade, o que ocorre por volta do décimo ano de atuação. Na segunda, de maior amplitude, enquadram-se aquelas que se utilizam dessa prática em situações episódicas.

Esse significativo grupo episó­dico geralmente inicia suas ativida­des acreditando na prática da ven­da do corpo como meio de obter grandes rendas em um reduzido período de tempo. Também acre­dita que, através da prostituição, estará burlando ou fugindo às re­gras e dificuldades observadas no mercado formal de trabalho (quali­ficação profissional, horários rígi­dos, salários aviltados, etc). Procu­ra, assim, escapar de sua condição sócio-econômica e cultural e modi­ficar seu status, definido pela ca­pacidade de consumo.

Para as mulheres desse grupo, o abandono da prostituição ocorre no momento em que tomam cons­ciência da trajetória inadequada a ser percorrida. Os episódios de violência física, comuns para aque-as que atuam nas ruas, e o adoecimento por DSTs aceleram a decisão de mudar de vida.

Porém, parte significativa delas se manterá na atividade, passan­do a se intitular "profissionais do sexo". Nesse segmento, observa­mos altos índices de desorganiza­ção psíquica, situação associada ao comprometimento afetivo e das funções adapto-sociais. Aqui ob­servamos que a aceitação torna-se passiva e fatores mesógenos decorrentes de seu modo de vida, como o estresse e a auto-violação psíquica, não mais são perce­bidos na rotina de trabalho. So­mente o risco de dissociação gra­ve, como o extermínio, é notado como não natural e digno de aten­ção. O fenômeno psicológico da institucionalização é claramente percebido. Surgem então as pre­ocupações relativas à legalização da profissão e aos direitos previdenciários.

A partir de dois anos de atuação como profissional do sexo, e com a falta de qualificação escolar e de experiência trabalhista com regis­tro formal, a inserção no mercado de trabalho torna-se praticamente impossível. A permanência na pros­tituição surge como única opção viável. A inexistência de políticas públicas de amparo a essas pes­soas leva a um sombrio prognósti­co sobre sua situação, a ser confir­mado brevemente.

Sob essa ótica, devemos enfatizar que os cursos profissiona­lizantes proporcionados pelo pro­grama "Construindo a Cidadania" a 150 profissionais do sexo obtive­ram, na categoria de prostitutas antigas, excepcionais resultados*. A continuidade do programa signi­ficará para um grande contingente de mulheres a possibilidade única de ruptura com esse estado de le­targia e adoecimento.

O NÚCLEO FAMILIAR E O ESTADO CIVIL

O estado civil das mulheres que praticam a prostituição seguirá a lógica determinada pela idade e pelo estado de amadurecimento emocional, assim como pelo códi­go de conduta vigente no meio.

O perfil básico da amostra apon­ta a idade média de 21 anos e a inexistência de vínculos afetivos formais (a maioria é composta de mulheres jovens e solteiras). Nes­se segmento, as preocupações estarão voltadas basicamente para a obtenção de renda, não se de­monstrando interesse pelo estabe­lecimento de relações afetivas du­radouras.

No ambiente da prostituição, a manutenção de vínculos afetivos quase sempre estará ligada ao surgimento da figura do explorador (agenciador, cafetão). Em face do preconceito social, raramente ve­remos indivíduos que se interes­sem afetivamente por pessoas que praticam a prostituição. São inúme­ros os exemplos de prostitutas que se envolvem emocionalmente com

parceiros e que, levadas pela carência afetiva, se tornam vítimas da exploração.

No código de ética e conduta da prostituição, se assim podemos nos referir às regras observadas, o envolvimento afetivo com clientes ou terceiros é encarado como transgressão grave, sinal de fra­queza. Porém, na prática, observa­mos que, quando destituídas do papel de profissionais do sexo ou de mulheres vividas, essas pes­soas desejam estabelecer relações afetivas, que incluem vínculos du­radouros e até constituição de um núcleo familiar formal, de respeito e aceitação social.

Nesse tópico perceberemos uma significativa mudança nas relações e costumes familiares tradicionais. Na amostra global, 11,3% são ca­sadas ou amasiadas, integrantes de um núcleo familiar. A prostitui­ção, como se poderia supor, não é definida pela situação de desem­prego do parceiro (77,1% deles possuem atividades no mercado de trabalho), mas como opção para aumentar a renda familiar. Os índi­ces de prática da prostituição por outros membros da família, de 26,3%, parecem demonstrar que existe um estímulo à atividade.

concluindo parcialmente

Esta breve análise prepara o campo para que outros profissio­nais possam, cada um em sua es­pecialidade, explicitar suas idéias dentro da temática proposta. O material disponível é suficiente para a confecção de alguns livros, com descrições e análises aprofundadas, sem restrições de espaço.

Pretendemos, no formato da re­vista, constituída por textos objeti­vos e de menor porte, atingir um universo maior e mais diversifica­do de pessoas, inclusive as profis­sionais do sexo, retornando a elas uma pequena parcela do rico ma­terial que nos foi oferecido.

Gostaríamos ainda de fomentar o interesse pela realização de pro­gramas de intervenção psicos-social nesse grupo, especificamen­te nas áreas de Saúde Pública, Tra­balho, Seguridade Social e Segu­rança Pública. Parte significativa dos problemas existentes nesses campos resultam do desconheci­mento observado sobre a temática.

Estamos fornecendo, através de nosso banco de dados, parcialmen­te publicado, números precisos so­bre o fenômeno, que, trabalhados, poderão gerar novas leituras e compreensões. A formulação de políticas públicas que atendam às necessidades da categoria só se tornará viável a partir do conheci­mento da questão.

Desta forma, resta-nos o dever de convidar o leitor, agora ciente de nossas restrições, a descobrir, atra­vés dos textos seguintes, novas interpretações para um antigo fe­nômeno social.