1. APRESENTAÇÃO

Para a lexicografia brasileira, o termo apropriação designa o ato ou efeito de tomar para si ou apoderar-se integralmente ou em partes de uma obra para construir outra. A respeito da apropriação de imagens da história da arte, Richard Arthur Wollheim  (5/5/1923 - 4/11/2003), sustenta que falar sobre o que uma apropriação significa para um artista é falar sobre os sentimentos, emoções, pensamentos despertados nele na medida em que o artista tem certeza de que a imagem ou o motivo apropriado transmitirão esses mesmos efeitos em outras pessoas suficientemente sensíveis e informadas.

É fazer com que uma obra, anterior, seja citada dentro de uma nova obra. Se seguirmos esse raciocínio, a apropriação já existe na arte há séculos, embora o uso do termo seja recente, e foi praticado por artistas tão diversos quanto Poussin, Manet, Picasso. No entanto, o uso do termo, está relacionado ao momento histórico posterior às rupturas modernistas, quando a arte não buscou mais o novo e não se ocupou mais em negar o passado e presente de forma mais livre. A apropriação passou a se apresentar, então, como um conceito importante para a reflexão sobre as artes plásticas do século XX que atualizaram fragmentos de nossa memória artístico-cultural. Tal prática revisa as significações já atribuídas às obras da história da arte e conferem uma maior complexidade aos discursos da arte contemporânea.

A idéia de manter uma relação mais livre com a história é um dos temas dos textos de Walter Benjamim, ao criticar a abordagem linear e unívoca da história – que percebe o passado como algo fechado, que não depende do olhar de quem vê. Benjamim pensou a história como algo que está em constante construção, daí a postura mais solta em relação a ela, sobre o qual podemos dar um “salto tigrino” para trazer para o presente discurso e fatos que ficaram interditos. O que chamamos aqui de apropriação está relacionado com as idéias de Benjamim, principalmente quando esse propõe olhar para o passado, não como ele (supostamente) foi, mas em tudo que ele pode ser desde o presente. As considerações aqui mencionadas e que dizem respeito à arte da  apropriação, são importantes para a compreensão, entendimento e análise da obra de Farnese de Andrade, um artista por excelência, “apropriador” de imagens na elaboração e construção de sua produção artística.

Assim, a partir das leituras de textos teóricos e críticos sobre a arte da apropriação bem como sobre a produção artística de Farnese, pode-se concluir que a pluralidade da sua obra é o da apropriação e que o artista nunca esteve preocupado em se enquadrar em estilos e movimentos artísticos, como citado em suas entrevistas. Analisar sua obra é penetrar num universo de ambigüidades conceituais com uma raiz comum, a da apropriação de uma imagem já consumida e sua introdução num outro tempo expressivo.

Farnese de Andrade, ao que nos parece, soube como ninguém, usar, elaborar, construir, nomear, renomear, (re)significar a arte da apropriação na construção do objeto artístico, daí, a dificuldade em contextualizá-la e compreendê-la conforme a historiografia vigente das artes visuais. Sua obra é singular como dos seus contemporâneos Lygia Clark, Flãvio Shiró, Mary Vieira, Sérgio Camargo Amilcar de Castro, Abrahan Palatinik, entre outros. Farnese 1.  “não é um homem comum. Seu mundo interior e exterior tem muito a ver com estes caminhos inusitados, nos quais flutuam sombras e resíduos de existências consumidas, como citado em entrevista pelo próprio artista”, em depoimento 2.“O ato de criação é um exercício de alegria. A alegria de juntar, de montar e de formar um objetivo, conforme nos comunga o próprio artista:

“A criação é um ato egoísta. Quando trabalho, trabalho para mim. Se afeto as pessoas, mal ou bem, isso para mim é secundário, tudo que já fiz e faço em arte sai de dentro de mim, sou um artista sem pressa. Tem peça que em um dia está pronta, há uma outra, na qual já estou trabalhando faz três anos. Todo o meu trabalho em objetos gira em torno da vida e da morte. Um trabalho que tem muito a ver com o tempo. É uma espécie de busca do tempo perdido (e que nada tem com o tempo perdido de Proust). Estou imobilizando o tempo que não existe”.

Assim, o artista nos fala da imoprtalização de um tempo de não existe (para ele), enquanto para nós, buscamos o tempo todo esse tempo, essa pressa e esse prazer de estudar e pesquisar para melhor conhecer a sua produção artística, só assim, talvez, acalentemos nossas inquietações em comprendê-lo nesse processo de construção, de (re)significação. Trata-se de um processo empolgante, desafiador e instigante, aguça a curiosidade, o gosto pelo novo, pelo desconhecido e inusitado, como na construção, nos mistérios, na surpresa, na incompreensão, no sucateamento fantástico, na figuração andrógina, na prisão e confinamento do ser humano e na re-significação em torno do objeto. Farnese é tudo: vida, morte, tempo, dor, solidão, sensualismo (sagrado), encantamento, fantasia, magia, mistério, depressivo, descontente, criador e reelaborador  do novo objeto artístico.                                            

 Sua obra é exclusivamente uma narrativa autobiográfica. “Embora o relato autobiográfico, que sugiro existir, seja mais intensivo e visualmente evidente num determinado universo, ele é inevitavelmente em toda sorte de manifestação artística. O viés autobiográfico é abertamente explícito nos trabalhos de Frida Kahlo, Cindy Sherman, Armando Reverón, Remédios Varo, Siron Franco, dentre outros; um pouco menos de Francis Bacon, Lucian Freud, Cecily Brown, Daniel Senise e Leonilson.

No primeiro grupo, refiro-me a artistas que se “incluem” pictoricamente na obra, isto é, constroem o auto-retrato ou usam imagens facilmente decifráveis: mãe, pai, criança, casal, amor ódio, vida morte, cópula, simbologia religiosa, raça, parceiros, e correlatos, a ponto de tais imagens, automaticamente, remeterem um dado espectador à sua origem. O segundo grupo, que quase sempre se justapõe ao primeiro, usa os mesmos recursos, com a adição do “outro”, criando dessa forma “situações” tais que o espectador também se vê nelas refletido, ou até se sente parte integrante.  (Cosac, C, 2005: 13-15).

2. INTRODUÇÃO

Para Mário Pedrosa, chegavam à exaustação os movimentos concreto, neoconcreto e o abstracionismo lírico. Eclodia um novo ciclo, ao qual ninguém se aventura a chamar de pós-moderno, a não ser o próprio Mário Pedrosa, que percebia que a ruptura tinha sido plantada com o neoconcretismo. “Hoje, em que chegou ao fim o que se chamou de arte moderna (...) os critérios de juízo para apreciação já não são os mesmos (...). Estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural, radicalmente diferente do anterior e iniciado, digamos, pela Pop-Art”.

A esse novo ciclo de vocação antiarte, chamaria de arte pós-moderna.” O pós-modernismo, circulado nos anos 80 é o nome dado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes, nas sociedades desde 1950. Mas,  existe o medo, o medo de mudança, o medo do novo, uma vontade de participação e de desconfiança geral e, consequentemente a perda do conservadorismo.

As transformações sócio-culturais, fruto do incremento tecnológico que envolveu particularmente o mundo ocidental fizeram com que os “pós-modernos” anunciassem de forma categórica a “morte de Deus” e o predomínio da racionalidade como meio para manter as regularidades sociais na construção de um novo tipo de sociedade, de cultura, enfim, de construção do mundo. Os “pós-modernos” entendem que para interpretar o real, a ciência substituiu a religião, levando à secularização do pensamento e da sociedade. A partir dessa interpretação, há uma espécie de contradição na produção artística de Farnese, onde a presença de elementos religiosos são uma constante, seja nos oratórios, nas imagens de santos da umbanda bem como no universo simbólico dos ex-votos. Esses elementos são por vezes decapitados ou justapostos, como no caso da imagem de São Jorge (Ogum) e São Sebastião, respectivamente. 

Sabe-se que são necessários estudos que privilegiem essa obra e  a produção do artista, pelo seu caráter contemporâneo, por ser uma obra recente (a execução da obra durou cerca de 8 anos), sendo concluída em 1995, uma ano antes da sua morte. Daí, a necessidade de um estudo completo – de análises (histórica, iconográfica e estética), de documentação fotográfica e de buscar, na pesquisa, entrevistas realizadas com o artista. Entretanto, neste trabalho, será privilegiada a exposição da sua análise estética com base na imagem da obra de arte e nos artigos da crítica da arte.

3.ANÁLISE ESTÉTICA

A estética estuda o julgamento de beleza e as emoções, bem como as diferentes formas de arte e do trabalho artístico; a idéia de obra de arte e de criação; a relação entre matérias físicas e as formas visuais nas artes; a realidade de todos os seres e seus significados. Sendo assim, a análise estética deve se envolver com os assuntos de percepção e composição visual, em linguagens sintáticas e semânticas. Na sintaxe visual temos regras para ordenar a composição artística de modo que o discurso faça sentido. A sintaxe visual se ocupa em estudar os elementos de percepção e de composição visual agrupados em segmentos que cumprem funções específicas no discurso e nas relações entre os segmentos. Essa relação, segundo Dondis (1998, p.29), dá-se da seguinte maneira: na análise estética, analisa-se os elementos visuais e seus significados na composição.

A obra do artista brasileiro Farnese de Andrade é ambígua, singular, cada peça é única. Com uma vasta produção na área do desenho, da gravura, da pintura e do objeto (que é o ponto principal desta análise), o artista propõe um diálogo tanto com as vanguardas modernas quanto com o experimentalismo da arte contemporânea. Mas sua produção também estabelece uma forte conexão com outros espaços mais enraizados no nosso passado cultural, a partir do qual utilizam os tantos elementos velhos, gastos pelo tempo e pelo uso, já com um passado inscrito. As gamelas sobrepostas, representam objetos do cotidiano de velhas cozinhas coloniais, armário, espada, fotografia (retrato do avô) resinada e ex-voto escultórico,  antes destinado as questões da fé. Tudo já com um valor afetivo imbricado em suas ranhuras. Com esses elementos carregados de histórias, Farnese criou seus instigantes objetos: assemblages feitas com coisas dentro de coisas, cuidadosamente arrumadas, aprisionadas, afogadas em resinas coaguladas e condenadas a uma eterna solidão. Farnese criou um novo domicílio para esses seres de outrora, que agora, destituídos de suas funções originais, se eternizam como objetos de arte, mas ainda assim evocam segredos e lembranças de um tempo que não volta mais. Na obra de Farnese, esse tempo encontra um espaço de reconciliação, união, integração e  entendimento entre os elementos visuais

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