Análise dos temas e figuras da crônica A Casa de Rubem Braga

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de estudar a tematização e a figurativização na crônica A Casa, de Rubem Braga, sob o quadro teórico-metodológico da Semiótica de linha francesa. Para tanto, será focado o nível discursivo do chamado "percurso gerativo de sentido", do qual os temas e figuras emergem. Primeiramente será apresentado o texto da crônica na íntegra, de forma a melhor fundamentar a análise que virá em seguida.

A casa
Outro dia eu estava folheando uma revista de arquitetura. Como são bonitas essas casas modernas; o risco é ousado às vezes lindo, as salas são claras, parecem jardins com teto, o arquiteto faz escultura em cimento armado e a gente vive dentro da escultura e da paisagem.
Um amigo meu quis reformar seu apartamento e chamou um arquiteto novo.
O rapaz disse: "vamos tirar essa parede e também aquela; você ficará com uma sala ampla e cheia de luz. Esta porta podemos arrancar; para que porta aqui? Esta outra parede vamos substituir por vidro; a casa ficará mais clara e mais alegre." E meu amigo tinha um ar feliz.
Eu estava bebendo a um canto, e fiquei em silêncio. Pensei nas casinhas que vira na revista e na reforma que meu amigo ia fazer em seu velho apartamento. E cheguei à conclusão de que estou velho mesmo.
Porque a casa que eu não tenho, eu a quero cercada de muros altos, e quero as paredes bem grossas e quero muitas paredes, e dentro da casa muitas portas com trincos e trancas; e um quarto bem escuro para esconder meus segredos e outro para esconder minha solidão.
Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto bem sossegado onde eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas, um canto sossegado onde um dia eu possa morrer.
A mocidade pode viver nessas alegres barracadas de cimento, nós precisamos de sólidas fortalezas; a casa deve ser antes de tudo o asilo inviolável do cidadão triste; onde ele possa bradar, sem medo nem vergonha, o nome de sua amada: Joana, JOANA! - certo de que ninguém ouvirá; casa é o lugar de andar nu de corpo e de alma, e sítio para falar sozinho.
Onde eu, que não sei desenhar, possa levar dias tentando traçar na parede o perfil da minha amada, sem que ninguém veja e sorria; onde eu, que não sei fazer versos, possa improvisar canções em alta voz para o meu amor; onde eu, que não tenho crença, possa rezar a divindades ocultas, que são apenas minhas.
Casa deve ser a preparação para o segredo maior do túmulo.
BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas. 17ª edição, Rio de Janeiro: Record, 2001.

No percurso gerativo de sentido proposto pela Semiótica de linha francesa, as estruturas abstratas formadas no nível narrativo são concretizadas e revestidas de termos no nível discursivo, que constitui o nível mais complexo e concreto do percurso. Enquanto o nível narrativo é composto de estruturas invariantes, o discursivo produz conteúdos variantes a partir dessas invariâncias. Desse modo, pode ser estudado sob duas perspectivas: a sintática, que trata das relações argumentativas entre enunciador e enunciatário e das projeções da enunciação no enunciado, e a semântica, que trata dos procedimentos de tematização e figurativização, responsáveis por dar concretude aos esquemas invariantes e às mudanças de estado do nível narrativo. Os temas remetem a um universo abstrato, conceptual; eles "organizam, categorizam, ordenam os elementos do mundo natural"(FIORIN, 2009). As figuras, por seu turno, pertencem à esfera do concreto e remetem diretamente a elementos desse mundo natural, representando-os e descrevendo-os. Todo texto é revestido de temas, que podem ou não ser posteriormente figurativizados. Assim, a tematização é inerente a qualquer texto, ao passo que a figurativização é facultativa. No entanto, ao analisar um texto predominantemente figurativo, é imprescindível depreender os temas que subjazem às figuras, sob pena de prejudicar sua interpretação.
Para ilustrar os procedimentos utilizados na semântica discursiva, toma-se o texto A Casa de Rubem Braga. Nele podem-se depreender alguns temas que dão suporte à oposição fundamental Exposição X Privacidade, aos quais remetem várias figuras. Ao tema da modernidade e da consequente exposição relacionadas à nova arquitetura das casas, apontam as seguintes figuras: risco ousado, salas claras, jardins com teto, escultura em cimento armado, paisagem, sala ampla e cheia de luz, vidros (no lugar de paredes), alegres barracas de cimento. A essas figuras relaciona-se também o tema da felicidade, associada, no texto, ao amigo que deseja ter um apartamento novo e moderno - como as moradias ilustradas nas revistas -, tendo, para isso, que relegar sua privacidade. Atente-se para o fato de que o arquiteto contratado por esse amigo é qualificado como novo, o que reforça a oposição entre o moderno - associado à exposição - e o antigo - relacionado à reclusão e à privacidade.
No que concerne a esses últimos temas (reclusão e privacidade), podem-se elencar as seguintes figuras, que estabelecem relação de oposição com as figuras citadas anteriormente: muros altos, muitas paredes bem grossas, muitas portas com trincos e trancas, quarto bem escuro, canto bem sossegado, esconder segredos e solidão, sólidas fortalezas, asilo inviolável, andar nu de corpo e alma, falar sozinho, traçar o perfil da amada, improvisar canções em alta voz, rezar a divindades ocultas, túmulo. Subjazem a essas figuras também os temas da velhice, associada ao narrador, que prefere as casas antigas, onde a privacidade é preservada - em contraponto à juventude do amigo, que deseja casas modernas e "abertas" de modo a entrar em conjunção com a modernidade; da solidão, propiciada pelo caráter "fechado" das casas antigas, que possuem muitas paredes, portas com trincos, cantos sossegados etc; e da tristeza ("asilo inviolável do cidadão triste"), em oposição à suposta alegria inerente à modernidade das novas casas. Assim, embora se estabeleça, no texto, uma oposição entre a modernidade das novas casas - cuja arquitetura é mais "aberta", clara e alegre - e entre à antiguidade das velhas casas - mais fechadas, tristes e reclusas -, são estas que propiciam ao sujeito entrar em conjunção com a liberdade, justamente por preservarem sua intimidade, ao contrário das casas modernas. Em seu asilo inviolável, o sujeito pode andar nu de corpo e alma, falar sozinho, esconder seus segredos, desfrutar de sua solidão, bradar o nome de sua amada e para ela escrever canções; enfim, fazer coisas que apenas a reclusão e a privacidade permitem.
Com esta breve análise, observa-se que, isoladamente, as figuras não se relacionam necessariamente aos temas invocados. Na verdade, é o encadeamento dessas figuras em um percurso figurativo ou, em outras palavras, são as relações estabelecidas entre elas que possibilitam a depreensão dos temas que as subjazem, contribuindo, por sua vez, para a formação da tecitura do texto.
Apesar da possibilidade de construção de textos predominantemente temáticos, a representação por figuras de conceitos tematizados no nível discursivo, torna a leitura mais atraente e o processo de interpretação, mais instigante e prazeroso, como bem exemplifica o conto de Rubem Braga.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, D. Teoria Semiótica do texto. 4ª edição, São Paulo: Ática, 2005.
__________. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
BRAGA, R. 200 Crônicas Escolhidas. 17ª edição, Rio de Janeiro: Record, 2001.
FIORIN, J. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto, 2009.