Análise do livro “A carta de Pero Vaz de Caminha” (Douglas Tufano)

Gustavo Uchôas Guimarães

 

A História do Brasil traz em seu jugo uma carga muito grande de experiências vivenciadas por quem aqui esteve, sejam elas experiências positivas ou negativas. A carta de Pero Vaz de Caminha foi uma das primeiras destas experiências que conduziram os rumos de nossa história após a escala de Cabral em nosso país, na sua trajetória rumo a Índia.

Possivelmente, existem outros relatos de exploradores que estiveram no Brasil antes de Cabral (fenícios, egípcios, celtas, irlandeses, entre outros), mas a carta de Caminha acabou sendo o mais famoso relato, por ser o mais antigo já encontrado e por ter sido escrito por um membro de um país forte (muito provavelmente não seria conservado o relato de um africano sobre o Brasil).

O que impressiona em Caminha é a relativa humanidade com que fala das terras brasileiras e dos seus habitantes. É claro que ele não conseguiria fugir da mentalidade de sua época, mas expôs o relato dando um toque mais humano à mentalidade do seu tempo, quando fala da inocência dos nativos e até elogia as mulheres nativas em detrimento das européias. Mesmo com esta simpatia pelos habitantes nativos, ele não deixa de ser preconceituoso (quando diz que os índios eram gente “de pouco saber”) e compromissado com as estruturas institucionais a que estava acostumado (Estado e Igreja). Para a época, era natural ser preconceituoso, tornar “selvagens” os outros povos, querer “civilizar” os diferentes. Caminha seria extraordinário (para não dizer estranho) se em sua carta ele fosse humanitário, defensor da cultura nativa e do meio ambiente que se vislumbrava aos seus olhos. Por isto não podemos fazer uma análise “condenatória” do período em que Caminha viveu, embora os atos praticados pelos conquistadores portugueses e espanhóis sejam para a modernidade um tanto reprováveis, pela crueldade que foi empregada na conquista das culturas da América.

Caminha se mostrou admirado pela nudez explícita dos nativos, o que aos portugueses soava como “falta de pudor”. Os visitantes com certeza se sentiram de volta ao Gênesis bíblico, ao paraíso de Adão e Eva. A nudez dos índios rendeu muitos elogios da parte de Caminha, que comparava as mulheres nativas às moças européias, além de constatar que os nativos não eram judeus (o sinal dos judeus é a circuncisão, que os nativos brasileiros, é claro, não praticavam).

Ao longo da carta, Douglas Tufano, que organizou o texto para a coleção, fez comentários relativos a vários trechos, mas são comentários que apenas complementam informações da carta, e não opinam a luz da mentalidade moderna ou da época. Assim, ele apenas dá informações sobre personagens da carta (Bartolomeu Dias, Pero Escobar, Nicolau Coelho, entre outros) e também sobre aspectos brasileiros destacados por Caminha (nomes de aves, costumes nativos, entre outros).

Marisa Lajolo faz a apresentação do livro, destacando a carta como “certidão de nascimento” do Brasil. Há de se ter um certo cuidado ao se definir a carta de Caminha como uma “certidão de nascimento”. A carta é apenas um documento mais antigo sobre o nosso país, mas a formação do Brasil não é uma trajetória que pode ter o início demarcado na chegada de Cabral e sua frota. As várias culturas nativas já transformavam de algum modo este lugar, mesmo, é claro, sem as pretensões de formar um país (a idéia de país dos nativos era muito diferente da concepção européia, isto se levarmos em conta que talvez não haveria entre os nativos o conceito de país, dadas as formas de organização que eles praticavam). Outro aspecto é a existência de outros relatos escritos pelos comandantes da frota de Cabral, relatos estes que não foram ainda encontrados. Então, a carta de Caminha não foi necessariamente uma “certidão de nascimento” do Brasil, mas um dos primeiros relatos europeus sobre as terras sul-americanas (sem contarmos os relatos de Vespúcio, Pinzón, entre outros que provável ou certamente estiveram no Brasil antes de Cabral).

Na introdução do livro, Douglas Tufano insiste no termo “achamento”, alegando que o Brasil foi encontrado pela frota cabralina. O termo “descobrimento” parece ultrapassado, mas “achamento” não é o melhor termo para substituí-lo. O Brasil não foi descoberto ou achado pelos portugueses, mas já fazia parte da rota de Cabral para a Índia. Isto se supõe por vários fatos, dos quais alguns podem ser mencionados.

Mapas irlandeses do século XIV já mostravam ilhas a oeste da África; Colombo, em sua estadia na Islândia (1487, provavelmente), soube da existência de terras encontradas pelos nórdicos nos séculos X e XI; o Tratado de Tordesilhas fixava em 100 léguas a partir de Cabo Verde o limite entre as colônias portuguesas e espanholas, mas o rei de Portugal brigou até que o limite fosse mudado para 370 léguas (neste caso, o limite caiu na região central brasileira); não eram raros os relatos de povos antigos (gregos e celtas, por exemplo) sobre ilhas a oeste do “Mar Oceano”. Portanto, Cabral não descobriu nem achou o Brasil, mas apenas oficializou a posse de uma terra já conhecida e que Portugal julgava ser sua por direito.

Quando fala da cristianização dos nativos, Caminha escreve: “... a esta gente não falta outra coisa para ser toda cristã senão entender-nos... nos pareceu a todos que nenhuma idolatria ou adoração têm”. É uma frase um tanto “normal” para a época, pois o objetivo dos portugueses era explorar as terras e cristianizar possíveis habitantes das novas terras. Como era o primeiro contato com os nativos, era natural que os portugueses não achassem neles nenhuma religião ou manifestação espiritual (depois de constatarem que não eram judeus). Só depois, com a chegada dos jesuítas, é que foram constatadas formas de respeito a entidades naturais (Tupã, Guaracy, Caipora, entre outros). Os nativos tinham rituais e tradições relacionadas com estas entidades, mas não eram como alguns povos da América Central e do Sul, como os incas e os astecas, que construíam templos, pirâmides e santuários a seus milhares de deuses (Quetzalcoatl, Viracocha, Tezcatlipoca, entre outros).

E os portugueses conseguiram cumprir este propósito, cristianizando os nativos (muitas vezes pela força). Os jesuítas conseguiram inculcar na cabeça dos nativos os princípios cristãos (com destaque para José de Anchieta e Manuel da Nóbrega), mas em muitos casos a cristianização significou a perda da identidade cultural de muitas tribos, como é o caso de muitos povos do grupo Tupi-Guarani, que se incorporaram a nossa sociedade assimilando toda a cultura “branca” (não só a religião). Em outros casos, povos indígenas mantêm contatos com o branco sem se incorporarem à sociedade (os caingangues, por exemplo). Outros povos têm contatos, mas se negam a aprender até mesmo a língua do “branco” (os ianomâmis, por exemplo). E tem aqueles que não conhecem os brancos, mas estes já os conhecem, pelos rastros que deixam na floresta.

Se não é a “certidão de nascimento” do Brasil, a carta de Caminha representa, pelo menos, um prenúncio do que haveria de acontecer com este país. O relato de Caminha e dos comandantes da frota nortearam o início das ações portuguesas em terras brasileiras, iniciando também toda a trajetória de transformações que gestaram o Brasil de hoje, em íntima ligação entre o passado e o presente.      

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

TUFANO, Douglas. A Carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Ed. Moderna, 1999.