"Open your mind for a different view…"

Metálica

Resumo

Neste artigo fazemos uma análise da percepção e da subjetividade, tendo como base o filme italiano "Vermelho como o Céu", que conta uma estória, baseada em fatos reais, é um fragmento da vida de um garoto[1] que obtém danos irreparáveis à vista, por um acidente, ao brincar com a espingarda do seu pai. O protagonista é encaminhado a uma escola para cegos, onde tem que se adaptar ao "novo" mundo.Tentamos entender como o filme rompe os limites estabelecidos pela própria obra, em relação a abordagem do real, oferecendo elementos na sua linguagem que agregam com força os ricos exemplos da subjetividade na representação do mundo.Neste sentido, o filme traz à tona o conceito de subjetividade, representando a combinação de preconceitos pessoais do protagonista e das pré-suposições compartilhadas com seu meio antes e depois da perda da visão. Isto nos mostra como os agentes sociais são marcados em sua subjetividade por sua origem e trajetória social.

Palavras Chave: Percepção, Subjetividade, Vermelho como o Céu, Visão de mundo.

Em nossa vida, observamos os fenômenos e buscamos capturar o que "vemos". Existem várias implicações nesta visão. Sabemos da Realidade, existente e independente de nós, mas não podemos visualizá-la, pois a realidade que vemos é construída da combinação de elementos/modelos preexistentes em nosso acervo de conhecimentos, fruto de nossas vivências.

O garoto, personagem do filme, é dotado de uma percepção aguçada; por ser assim, tem destaque na escola e em suas atividades na comunidade; como toda criança normal, gosta das atividades que preencham sua sede natural de descobertas, como o cinema. A escola sempre foi colocada como a principal estimuladora da percepção, ficamos em alguns momentos, negligenciando a infinidade de alternativas pedagógicas que podemos lançar mão para aprimorar o aprendizado. Assim como nos fixamos na visão como a maior "porta de entrada" de informações.

A realidade que temos em mente é uma construção feita por nós mesmos, acostumamos o cérebro com um processo seletivo pelo qual só apreendemos os elementos capazes, de serem organizados e compreendidos mais facilmente. Um sistema de padronização para tornar reconhecíveis os elementos atrapalha por uma característica biológica, a percepção mais especializada, em que todos os sentidos têm "captação" limitada e são condicionados ao processamento mental mais utilizado.

Os recortes que fazemos do mundo não são a realidade, são um tipo de desenho, uma fotografia, uma cena de filme. Não é a própria coisa que está lá, mas algo que interpretamos enquanto sujeitos. Podemos melhorar esta inferência, ainda imaginando o que está fora do enquadramento... Aliás, a própria idéia de quadro, nos sugere isso, uma escolha, um olhar de recorte.

Uma chuva em um filme, pode nos dizer muito mais do que apenas um fenômeno meteorológico, do que o ato de chover em si; então, os recortes da realidade, muitas vezes estão mais próximos do nosso estado de espírito. As cenas em Vermelho como o Céu, estão carregadas de significantes, que brincam com a nossa capacidade cognitiva. Sem dúvida, nas vezes seguintes em que voltemos a ver esse filme, vamos nos deparar com um novo conjunto subjetivo, tanto das personagens, do diretor do filme, quando de nós mesmos.

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. (BACHELARD, 1989, p. 19)

A personagem revolta-se por sua condição, ao perder a visão. Envolto em dificuldades de adaptação, precisa desenvolver formas novas de captar o mundo a sua volta – há uma necessidade de perceber. De refazer-se enquanto sujeito. As novas descobertas lhe revelavam que não perdera tudo junto com a visão: os registros ficaram, as lembranças e a possibilidade de reproduzi-las no gravador "roubado" da sala dos professores lhe davam novas vivências para construir essa nova subjetividade. Utilizava para isso, os outros sentidos – agora mais aguçados – percebidos como vivos, assim como ele.

Quando somos permanentemente privados de alguma capacidade, nos vemos desesperados de conseguir viver normalmente no mundo, quando Mirco se sentiu privado do gravador que "roubara", adoeceu, se retraiu, se isolou. Uma nova "revolta", perder mais uma capacidade de vivenciar..., Don Giulio foi procurá-lo e, ao perceber que ele se escondia ali perto, iniciou uma "conversa" consigo mesmo, fingindo acreditar que o menino não estivesse por lá. Demonstrando um entendimento da realidade e da subjetividade do garoto importantes para conduzir e restabelece-lo.

Sem restabelecer o que perdemos, nossa capacidade de adaptação desenvolve a compensação à privação, a necessidade de ampliar as outras capacidades que restam.A mente terá que reagir como instância padronizadora, recapturando, re-interferindo na realidade de novas maneiras. O que será percebido com as novas formas de captar será apreendido e adaptado com o novo sentido, re-selecionando para absorver, em meio à diversidade de informações, o que é organizável e passível de conexão com as características e conceitos preexistentes na composição de uma nova subjetividade.

Em uma passagem do filme, a personagem tenta explicar ao interlocutor, também cego, como são as cores, associando-as a texturas: agrega-se um elemento percebido com um outro sentido, para auxiliar na composição da percepção, antes feita apenas com o capacidade inutilizada – a visão.

Vem à tona nesse momento um elemento essencial para o entendimento do processamento cerebral dos dados que captamos - a memória[2], que virá proporcionar a renovação dos sentidos a cada percepção. Pois a cada experiência, ampliamos nosso acervo de informações e estamos mais hábeis para perceber e modificar a subjetividade num ciclo contínuo. É importante para esta adaptação, a vontade de "abrir-se" para novos estímulos e concepções.

Para entender melhor a percepção do mundo com outros captadores, ou sentidos, devemos a título de experiência exercitar essa percepção diferenciada: Num ambiente familiar, com olhos vendados, ao tatear os objetos próximos, uma vez que temos reconhecido algo da nossa "percepção pessoal", podemos observar na atenção dada para distinguir os objetos, as reações instantâneas que surgem quando os examinamos. Começamos a identificar sentimentos que fornecem sinalizações significantes para qualquer pessoa ao "redescobrir" o que a cerca. Chegamos a perceber o limiar interno e externo do mundo pelos sentidos. Cada pessoa terá uma percepção diferente de acordo com a sua subjetividade.

A dualidade de percepções que definem as vivências pode ser percebida na cena em que Mirco guia sua namoradinha pelos corredores escuros, somente quando alcançam a saída, a menina reassume a missão de conduzir. É com o experimento da privação da visão, que observamos subjetivamente a necessidade de associar toda forma, textura às imagens. Alguns pesquisadores têm estudado a associação de cheiros e sons a imagens ou cores em estados semi-alterados de consciência. Como se estivéssemos presos à percepção do mundo pela visão.

Em algumas passagens do filme, percebemos que mesmo as personagens que nunca enxergaram, tem a necessidade de associar a percepção de mundo à descrição visual. Estaria a subjetividade ligada à percepções imagéticas? O som vem como segundo marco perceptivo para apreender o mundo. Mas não podemos negar que também as sons musicais ou não, nos trazem sentimentos, associam-se a outrascognições. A personagem tem na percepção sensorial o fundamento de todo o conhecimento, é o desenvolvimento da subjetividade, a chave para reformular a vivência no novo mundo – os sentidos parecem distribuir-se numa escala de importância, sem relegar ao esquecimento o princípio da intuitividade que leva a apreensão do concreto ao abstrato e vice e versa.

Vale mencionar que a dimensão da subjetividade é um dos núcleos de exploração da escola para cegos, é com o intuito de anulá-la ou domesticá-la, por meio dos processos de alterações no ritmo, espaço, novos formatos e novas exigências, que a pedagogia da escola redefine a vida para Mirco. Em cada nova vivência e relação, tentava-se fragmentar e enfraquecer sua subjetividade, e numa perspectiva de mobilização o professor o ajuda a fortalecer, e ele próprio começa, por uma necessidade a construir uma nova "visão".

A estória culmina com a apresentação de final de ano para os pais. Estes deveriam ter seus olhos vendados para ouvirem e viverem a dramatização de uma história criada pelos alunos; os pais partiriam de uma outra percepção - ser o outro – alguém comdeficiência visual. Ocorre uma reformulação na própria subjetividade, a forma de cada um perceber a apresentação é evidentemente diferenciada.

Nosso procedimento de seleção muitas vezes é determinado por pré-julgamentos, experiências pessoais de vida e idéias fixas sobre coisas que nos impedem de perceber uma visão diferente, na qual uma melhor abordagem na interpretação poderia oferecer resultados significativos na elaboração do conhecimento. Na vida, a cada contato e percepção dos elementos no mundo novo, um novo sentido se constrói para o ser humano. Entendemos que a subjetividade, trafega por caminhos de múltiplas padronizações e interpretações da realidade. A subjetividade se fragmenta e se reconstrói a cada experiência significante.

Considerações

Acreditamos que o filme, Vermelho como o Céu, pode também ser contemplado como uma metáfora da falta de visão que algumas pessoas têm, e que apesar disto, ocupam (e se mantêm em) funções educacionais ou de poder. Nas relações desencadeadas ou associadas pela subjetividade do padre e do diretor, em suas vivências e em seus conflitos cotidianos, não se excluem discussões em torno do poder, do enfrentamento da autoridade e das tentativas de ruptura pelos questionamentos e demandas trazidos à tona no processo de efervescência política e cultural, onde o estado tinha a rejeição de deficientes como marca, nos anos em que se passa a estória na Itália.

A subjetividade vem a ser o meio em que os processos de representação da realidade se dão pelos elementos criados e que integram o homem e o mundo. Ela aparece até na proposta de representação do real pelo "cinema", que geralmente privilegia a criatividade e a percepção pessoal de mundo por parte do cineasta no processo de produção, filmagem e montagem.


Bibliografia

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 1989.

DAMACENO, Benito. Neuropsicologia da Memória. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. As faces da Memória – Unicamp, 1994.

MERLEAU PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Traduzido por Carlos Alberto Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.

PISANI, Elaine. Psicologia Geral. 8ª Ed. Porto Alegre. Editora Vozes, 1985.



[1] História de Mirco Mencacci, um dos mais talentosos editores de som do cinema italiano.

[2] A capacidade de registrar e evocar informações (Damasceno, 1994).