ALVOROÇO DA TEMPESTADE
Edevaldo Leal


Ninguém percebe. O menino está desassossegado e sua inquietude esconde múltiplas surpresas. O menino veste-se de forma adequada : o uniforme bem passado , os sapatos impecavelmente engraxados e os cabelos bem penteados. Nem ele mesmo, e ninguém , suspeita da luz, a luz que, bruxuleante, teima não se apagar; e da noite, a longa e indescritível noite de vendavais. Ele mete a mão na mochila e toca em algo lá dentro. Retira a mão e fecha a mochila lentamente. 




O som da campainha, anunciando o recreio, o recoloca de volta às proximidades da luz. Nesse momento, algo dentro dele o empurra para perto da professora. Olha bem dentro dos olhos dela e pergunta: “ A senhora já magoou seus pais algum dia?




Que pai ou mãe nunca foram magoados por um filho ? A professora ajeita-se na cadeira. Sem entender a pergunta ou a razão mais profunda da indagação , responde-lhe com a moral teológica que manda os filhos obedecerem aos pais. E cita Mateus 15: 4: ” Porque Deus ordenou : Honra a teu pai e tua mãe; 
e:
Quem maldisser a seu pai ou sua mãe seja punido de morte”.




Na cantina, o menino compra um lanche. E, enquanto dura o recreio, chama a atenção com gargalhadas em conversas com colegas de sala. Quem leria, em seus olhos alegres, o sinistro alvoroço da tempestade, os pontos de sombras e vagos raios de luz?




A professora esforça-se fazendo esboços no quadro, mas seu pensamento está na pergunta do garoto. Somente um erro de avaliação justificaria preocupar-se com um aluno nota dez na matéria dela e na vida. O garoto revive, mentalmente ,fragmentos de uma cena: “Segunda-feira . É noite alta. O quarto... Pela manhã, as aulas no colégio. O retorno para casa...”. 
– Perfeito! – Exclama .




A professora agradece o que, para ela, é um elogio à aula de matemática. O menino abre novamente a mochila . Lá dentro, seus dedos acariciam o objeto cuidadosamente guardado.




Distraído, atravessa a rua pouco movimentada. Um caminhão quase o atropela. Era meio dia e um sol pálido, como o de um fim de tarde de inverno ,dava, à paisagem , um tom de melancolia.




Às 8 horas da manhã de terça-feira a polícia vai à casa do sargento. Ninguém atende aos chamados. Só um gato preto espia do alto do muro. A porta é arrombada. O sargento está na sala, morto, de bruços. Próximo, tombada sob os joelhos, a mulher dele e mãe do garoto.




O rosto de um investigador se contrai. O garoto está morto, perto dos pais. Visível, a marca de um projétil de arma de fogo na têmpora esquerda do menino. Um perito para e se demora diante do cadáver. Retira do bolso um bloco de papel e faz umas anotações : “ Projétil único. Orifício de entrada: tiro à curta distância. Orla de enxugo. Orla de contusão. Aréola equimótica. Zona de tatuagem. Orla de esfumaçamento. Zona de chamuscamento . Lesao pérfuro -contusa...”. E confidencia ao delegado presente no local do crime, enquanto retira, cuidadosamente, o dedo do menino do gatilho da pistola ponto 40:
– O tiro foi quase encostado. 
– Suicídio? – pergunta o delegado.




O perito nada responde. Olha a posição dos corpos várias vezes, se agacha para ver de perto as lesões nas outras vítimas e observa, detalhadamente, o local do crime. Faz novas anotações e sai. Em sua cabeça, várias indagações, que seriam resolvidas no laboratório de perícias criminais. Entre elas, uma, porém, nem os mais sofisticados exames poderiam revelar.

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