RESUMO

Trata-se de estabelecer uma relação entre a estética e a política compreendoas como “partilha do sensível”, que é um conceito de Rancière e, ao nosso ver, inspirado por Kant. Neste sentido, estética é aquilo capaz de te afetar e política são os laços construídos a partir desses afetos. A estética enquanto partilha revela as estruturas sociais e políticas, preservando-as ou criticando-as, ou, mesmo, transformando-as. Para explicitar esses argumentos partimos da estética de Kant, a qual consideramos como fundadora ou fundamento dessa perspectiva, e seguimos até os pensadores Rancière e Hanna Arendt, passando pela importante contribuição de Schiller. Concluímos formulando alguns problemas relativos ao pós-modernismo antropológico que pensa a sociedade enquanto subsistemas tribais. Propomos uma volta a pensar Kant e Schiller para, no diálogo com esses autores, ficarmos atentos às contradições de certas teorias, compreendermos quais são os problemas a serem enfrentados e talvez começarmos a construir uma análise que os supere, transforme a realidade e abra espaço para a reconciliação com o real e a existência plena, numa sociedade multicultural menos conflituosa. Este trabalho é uma continuação e aprofundamento de um trabalho anterior (BRAGA, 2015).

INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido, recentemente, acerca das relações entre estética e política, além de sua influência nos processos de construção da sociabilidade em comunidades. O debate em torno desta questão tem acompanhado uma renovação da concepção de comunidade em relação à própria ideia de sociedade. A concepção de sociedade dominante hoje é a de indivíduos com direitos e deveres, a qual caracterizou a organização das democracias ocidentais. Diferentemente, uma comunidade concebida em torno da partilha da sensibilidade estética e sua comunicação intersubjetiva tem seu tecido social tramado pelas trocas dos afetos. Entretanto, antes de tudo, é necessário explicar qual é o conceito de estética que estamos usando. Trata-se de uma estética da recepção de matriz kantiana na qual o julgamento estético é uma experiência de natureza subjetiva, mas que, ao mesmo tempo, compõe o que podemos chamar de senso comum ou gosto. Segundo Kant um julgamento estético é um julgamento “cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo” (2005, §1, p. 48). Assim, Kant parte do sujeito e sua interioridade para deduzir e colocar em evidência a presença da comunidade. Esta presença tem por condição um julgamento que pertence ao sujeito e é indiferente à existência do objeto, porque o que importa é o que descubro em mim mesmo, pela representação que tenho da coisa ou “como ajuizamos na simples contemplação” (2005, §2, p. 49). Kant chama de “desinteresse” esta abstinência teórica e prática do julgamento estético que não procura nem conhecer, nem realizar o objeto, que, portanto, remove tanto o conceito como a lei, preservando uma ideia de liberdade abismal, fundamental. Trata-se de uma relação não instrumental, na qual se respeita a integridade e o ser do objeto fruído na contemplação estética. O objeto é respeitado como possuindo um valor-em-si e sua representação em mim é a fonte do juízo estético. É uma relação que promove uma satisfação “pura e desinteressada” que se expressa no julgamento estético, portanto não instrumental, nem mercadológica. A passagem da experiência estética subjetiva para uma dimensão universal se dá na medida em que essa experiência, por sua própria natureza, necessita ser compartilhada. Temos um impulso para compartilhar nossas experiências estéticas, sendo legítimo acreditar que o outro possa ter a mesma experiência que tivemos e desenvolver o mesmo gosto. Assim o gosto torna-se um senso comum estético devido à partilha de certas experiências intersubjetivas que agregam uma coesão social em torno desses gostos. Comunidades organizadas segundo o gosto mostram uma diferença, um deslocamento em relação aos privilégios dados para as regras e leis abstratas na construção da coesão social. Ao contrário, as comunidades estético-afetivas (de gosto) dirigem sua coesão para posições mais concretas, mas próximas das percepções sensíveis e dos afetos partilhados pelo conjunto da coletividade. Trata-se então de um deslocamento das concepções da sociedade de direitos para a da comunidades estético-afetivas e isso é uma mudança radical na forma como compreendemos e experimentamos a sociedade. Como exemplo, citamos o deslocamento que algumas correntes feministas (GILLIGAN, 1982, 2011) e ecológicas (BOFF, 1999) realizam ao propor o “cuidado” como paradigma ético para a sociedade, em vez do paradigma atual que é a “justiça” e a “legitimidade”, ambos ontologicamente jurídicos. Podemos notar que no debate contemporâneo sobre a questão da sociedade vem se destacando uma certa concepção de comunidade que se contrapõe à ideia da sociedade como fundamentalmente estruturada no direito (sociedade de direitos). Nessa transição de concepções existe a importante questão da passagem de uma concepção formal e abstrata das regras de coesão social em direção a uma posição mais concreta e próxima das percepções estéticasafetivas que passam a ser compartilhadas pelos membros de determinado grupo ou comunidade. O imaginário comunitarista encontra seus fundamentos nas condições de sensações e prazeres compartilhados no interior de uma determinada coletividade. Compreende-se então que o deslocamento das fontes teóricas conduz a um renovamento importante: a própria ideia de comunidade e seus jogos comunicacionais torna-se alguma coisa nova, impensável algumas décadas atrás. Essa passagem da experiência estética para um conceito de política como relacionamentos sociais de base estéticoafetiva está muito presente em vários pensadores contemporâneos. Em nosso caso vamos nos concentrar em dois deles: Hanna Arendt e Jacques Rancière. Defenderemos que os dois pensadores têm uma ligação com a estética kantiana, naturalmente reinterpretada segundo os interesses e originalidades de cada um deles. Também tentaremos algumas reflexões sobre as consequências de se pensar a sociedade segundo os paradigmas desses pensadores. [...]