ALECRIM DOURADO

 

      Encontrava-me em vias de conclusão de tratamento contra mieloma múltiplo, neoplasia maligna de alta agressividade, terrivelmente dolorosa, que acomete principalmente ossos e medula. Estava no sétimo mês de internação. Já havia passado por dez sessões de quimioterapia com drogas de efeito tão danoso que às vezes me confundia: a doença ou o remédio? A dor, a ruína do câncer ou o efeito devastador da quimioterapia? Desistir? Nunca! Viver é maravilhoso e apenas os que passam por semelhante padecimento compreendem o valor de estar vivo! Restava, para conclusão do tratamento, que me daria possibilidade de sobrevida sem maiores sobressaltos, fazer um transplante de células-tronco da medula óssea. Estudos confirmavam que o melhor doador seria eu mesmo: transplante autólogo, com menor possibilidade de rejeição do material transplantado. Decisão tomada, iniciaram-se os procedimentos para coleta, processamento do material coletado e transplante. Preliminarmente passei por pequeno ato cirúrgico para canular um vaso calibroso, por onde seria feita a coleta de material: a artéria femural direita.  No dia seguinte ao ato, pela manhã, funcionários da unidade de coleta do Real TMO (Centro de transplante de medula óssea do Real Hospital Português de Beneficência em Pernambuco) depositaram  no quarto uma engenhoca metálica que mais se parecia uma pipoqueira ambulante. No início da tarde Dr. Rodolfo Calixto, um jovem médico de valores humanos sublimes e elevados conhecimentos profissionais, que cuidava do meu caso, visitou-me acompanhado de uma enfermeira de sua equipe. Fez exame físico minucioso e autorizou o início da coleta. A enfermeira acoplou em várias partes do meu corpo, um aparato de fios com artefatos nas extremidades assemelhando-se a pegadores de estender roupa. Acomodou uma cânula no cateter instalado do dia anterior, ligou a máquina e começou o procedimento. Prestei atenção a tudo avidamente, num sentimento de medo, mas também de confiança irrestrita.

      A engenhoca produzia um ruído monótono, modorrento, hipnotizante. A enfermeira sentou-se ao lado e passou a folhear uma revista. Tentei puxar uma conversinha para afastar o sono, mas percebi que ela estava mais interessada na revista. As pálpebras foram ficando cada vez mais pesadas, incontrolavelmente pesadas. Fechei os olhos por alguns instantes respirei profundamente, gostosamente. Quando abri os olhos novamente, enfermeira já estava de pé analisando o material coletado.

-Ótima coleta. Parabéns! Exclamou ela.
-Já terminou? Que horas são?
- dezoito horas! O senhor dormiu como um anjo!

      Quatro horas se passaram num fechar de olhos. Lembrei-me que durante a madorna sonhei com minha filha Julia, na época com seis anos de idade. Liguei para ela:

- Sonhei com você, Julinha! No sonho você cantou para mim uma cantiga de roda que aprendeu na escolinha.


- Como era a cantiga?

- Não lembro. Falava de flores, de plantinhas.

- Toda cantiga de criança fala de flores!

- Cante uma pra ver se foi a que sonhei! E ela cantou:

- Alecrim / Alecrim dourado / Que nasceu no campo / Sem ser semeado...

 

      A vida às vezes nos reserva situações únicas e inexplicáveis. Era a cantiga do meu sonho.

 

- Cante mais um pouquinho! Pedi. E ela cantou... Repetiu!... Repetiu...

      A enfermeira me interrompeu:

- O senhor está bem?

- Estou muito bem! – Respondi.
- E as lágrimas?

      Passei as mãos no rosto e percebi filetes de lágrimas quentes rolando sobre a minha perplexidade, meu encantamento.

 

      O transplante foi realizado com sucesso. Dois meses após, recebi alta hospitalar em caráter definitivo.

      Posteriormente, em conversa com amigos, bradei com altivez ilegítima:

 - O ano de 2004 é um capítulo que arrancarei do livro da minha vida!!!

      Um interlocutores replicou sabiamente:

- Não se arrancam páginas de livros! Tira-se o sentido do enredo. Não mutile o livro da sua vida! Cozinheiros famosos usam em suas receitas ingredientes inesperados, ervas amargas, para dar aos seus pratos sabores especiais. As especiarias são sempre amargas ou picantes...

       Hoje Jantarei lombo ao molho de ervas.. de alecrim.

 

Recife, 10 de março de 2011.

 

  • Arionaldo de Sá