"Moça, dá um dinheiro prá mim. Tenho fome."
Eu segui em frente sem sequer prestar atenção à voz daquele menino que a mim pedia alguma coisa.
Mas ele continuou insistindo, pedindo mais uma vez e mais outra e outra mais.
Resolvi então olhar para trás e saber quem era o dono daquela voz pedinte e insistente. Por pura curiosidade e irritabilidade.Nada mais.
Era um garotinho de mais ou menos uns seis, sete anos, franzino, cabelinho escuro, maltrapilho, descalço, sem nenhum traço de alegria ou tristeza. Não esboçava nada. Apenas pedia.
Olhei-o por um tempo, sem nada sentir, a não ser certa repugnância pelo seu cheiro e pelas suas roupas, se é que o que ele vestia, pudesse ser chamado de roupa.
Não sei dizer ao certo o que me moveu a dar atenção e conversar com ele, que de início ficou desconfiado, pois não estava entendendo o que eu queria e nem quem eu era.
Foi difícil para nós iniciar a conversa. Mas depois de algum tempo, fluiu normalmente. Eu desarmei e ele também.
Contou-me que há muito tempo, não sabia precisar quanto, pois na rua não havia tempo, saíra de casa e fora para o mundo, que ele achava mais seguro do que ficar com seus pais, que lhe davam insegurança e medo, muito medo.
Disse que coisas estranhas aconteciam em sua casa. Eram três irmãos. Primeiro o mais novinho sumiu. Não tinha nem um aninho. Era tão bonito... Loirinho, olhos claros, o cabelinho bem liso... Sentiu falta dele, que chorava de noite, atrapalhava seu sono... Mas o amava tanto. Parece que seus pais não se importaram com isso. Eles não choraram nem uma vez. Nem o procuraram. Mas a vida em sua casa melhorou. Por um bom tempo tiveram dinheiro. A fome passava longe. Ganharam roupas, camas novas, uma televisão a cores e tantas outras coisas. Foi um tempo bom... Mas que acabou.
Algum tempo depois, novamente viu seus pais conversando baixinho e olhando para seu outro irmão de modo diferente. Ele não gostou do que viu, sentiu algo estranho no ar. Passados uns dias, seu outro irmão foi embora e ele nunca soube para onde. Procurou-o tanto. Foi na casa de todos os vizinhos e nada do irmãozinho.Chorou muito. Pediu a seus pais que também o procurassem, mas parece que para eles tudo era normal. Tinha a impressão que não gostavam de nenhum deles. Ele continuava sem entender. O dinheiro voltou para casa, mas ele não se sentia feliz. Não tinha com quem dividir os brinquedos que ganhava. Não tinha com quem brincar. Ele, que sempre se sentiu diferente perto de seus irmãos clarinhos. Era a cara do pai, dizia sua mãe. O marronzinho.
Durante algum tempo, ficou quieto, pensativo, tristonho, com os olhos lacrimejantes e eu o respeitei nessa sua introspecção tão dolorida.
Aí então, continuou ele, sentindo muito medo de ser o próximo, em uma determinada noite, esperou que seus pais dormissem, colocou algumas roupas numa sacola, abriu a porta em silencio e foi morar no mundo, que o acolheu a seu modo.
Andou pelas ruas sem destino, sem saber para onde ir. Sentiu medo, fome, frio. Teve sono e não sabia onde dormir. Foi tão difícil para ele... Encontrou um pessoal debaixo de um viaduto, aproximou-se e eles o trataram com indiferença, depois o mandaram embora, brigaram com ele. Seus olhares eram tão gelados que doía na alma.
Continuou seu caminho, até que com tanto sono, usando um papelão como cobertor, dormiu em algum lugar... Acordou com o estomago a roncar de fome. O seu e o dos ratos que por ali passavam. Sentiu medo, mas fingiu para si mesmo que não o tinha.
Quando o dia amanheceu saiu andando novamente. A fome era tanta... A de ontem e a de hoje.
Depois de certo tempo uns homens mal encarados vieram em sua direção. Disseram-se os donos da rua. Eles o alimentaram e ditaram suas leis. Era pegar ou largar e sumir. Começou então a "trabalhar" para eles. Dia e noite. Ficava com quase nada.Passou a alimentar-se com restos de comida, a conviver com ratos, baratas, piolhos. Um dia ofereceram-lhe cola e ele não aceitou. Chamaram-no de menina. Ele sabia não o ser.
E assim, dia após dia construiu sua vida, sendo seu pai, sua mãe, seu irmão...
Mentia para si mesmo que tinha uma família e que ao final do dia voltava para casa e a encontrava, com a mesa posta e sobre ela, um prato de sopa bem quentinha a esperá-lo...

Heloisa/2010