Ouvi tantas frases profundas ao longo de meu pouco mais de meio século de vida, que se não fosse o escasso tempo, talvez me dedicasse a espalhar todas elas como sementes, uma a uma ao meu modo, ao longo da estrada à qual nem ousaria observar se brotaram ou não em algum momento.

Contudo, para mim, muitas delas permanecem ainda vivas e sem desgaste do tempo... Seja pela ocasião, pela emoção em que foram pronunciadas ou até por seu contexto simples, elas fazem parte integrante de momentos fortemente guardados em meu subconsciente. São como assinaturas em obras primas.

Lembro-me de quando eu ainda era muito jovem e pelejava entre um casamento recente e um trabalho desgastante. Não havia ainda, naqueles anos 80, a tão necessária informatização. 

Os equipamentos mais sofisticados, naquela época, não passavam de máquinas calculadoras com fios grosseiros, normalmente balançando ao lado das grandes mesas, ou a linda máquina de escrever elétrica. Eu ficava maravilhada ao observar a esfera passeando no sulfite, deixando rastros perfeitos e simétricos no papel...

A matéria prima do trabalho bem feito dependia além da energia elétrica ou do sistema que hoje opera quase que a totalidade da informatização. Dependíamos nós, os novatos, daqueles mais experientes que nem sempre se propunham a compartilhar seus segredos profissionais. E, assim formávamos uma equipe nos bons e maus momentos.

É incrível que eu tenha me esquecido, perto de trinta anos depois, o autor daquela pequena frase que ainda hoje permanece em minhas lembranças. Não que fosse um nome incomum, deveria ser Francisco; Chico, ou Manoel; Mané. Na realidade me foge essa informação importante, como muitas que vão enfraquecendo ao passar dos anos.

Seus olhos eram de um castanho desbotado, isso eu me lembro, e brilhavam entre as rugas de expressão, sob grossas sobrancelhas grisalhas. Vestia-se bem, apesar de que a beleza da juventude há muito lhe tivera abandonado. Era um daqueles funcionários antigos, quase parte do patrimonio, conhecedor dos primórdios, das batalhas, dos sucessos. 

E foi poucos minutos antes de terminarmos a sessão exaustiva daquelas sextas-feiras que o supervisor, rapaz novo e bem apessoado, meteu o pé no piso emborrachado da sala de contabilidade e, sem pedir licença, anunciou que o Mané (ou seria Chico?) passaria a liderar toda a seção a partir da Segunda-feira seguinte.

Sem dúvida aquela notícia lhe trouxe satisfação, não só pela discreta melhoria do salário, mas pelo reconhecimento; pela merecida ascenção à posição, cujo mérito a ele pertencia por muitos anos. Notei que ele observou o crachá pendurado no peito e deve ter imaginado que doravante ele deixaria de ser apenas a imperceptível gota no oceano.

Entretanto, tão logo o supervisor nos deu as costas ele pronunciou baixinho: “agora, quando as luzes estão se apagando?”.

Nada respondi, seja pela minha imaturidade na época ou pela falta de sabedoria, mas digeri a sentença que se encalhou em algum lugar em meu ser.

E, como não poderia deixar de ser, fui acompanhando as mudanças da empresa; transferida para outros departamentos; cobrindo funcionários em férias; mudando como se muda quem está em movimento na vida. Não ouvi sobre ele durante alguns poucos meses, até que questionei um  amigo da seção de contabilidade.

Soube com tristeza que, pouco depois da promoção, aquele  que me entristece não lembrar o nome, havia falecido.