ADPF 54: Uma análise acerca dos reflexos da hermenêutica em face do Ativismo Judicial[1].

 

Carlos Eduardo Silva Rodrigues

Stefany Dias Cardoso[2]

José Murilo D. Salem Neto[3]

 

RESUMO

 

O presente artigo busca investigar o papel da hermenêutica frente ao Ativismo Judicial, que se verifica na análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 54, a qual trata da legalização do aborto de fetos anencefálicos. Neste diapasão, a priori, o artigo trata das implicações do Ativismo Judicial em caráter introdutório. Em seguida, explicita a influência da hermenêutica dentro do quadro de proeminência de um dos Poderes. Por conseguinte, considerando tudo que foi analisado, evoca-se o papel da hermenêutica no caso da ADPF em específico. Tal trabalho tem como escopo a Carta Magna de 1988, a despeito desta exercer supremacia no ordenamento jurídico pátrio, consolidar Direitos Fundamentais e estruturar a organização do Estado e dos Poderes.

 

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Hermenêutica. ADPF 54. Direitos Fundamentais.

 

                                              SUMÁRIO

1 Introdução; 2 Ativismo Judicial e suas consequências: uma perspectiva crítica; 3 O papel da Hermenêutica no Ativismo Judicial; 4 A (IN)Existência de Ativismo Judicial na ADPF 54; 5 Conclusão.

 

1 INTRODUÇÃO

 

É sabido que a Constituição Federal de 1988 apresentou diversas inovações em relação ao seu conteúdo, dentre elas pode-se citar a maior participação do poder judiciário, o qual antes desse paradigma era restrito a um mero “aplicador da letra de lei”. Nesta perspectiva, a Corte tem se encarregado de determinar decisões que, para alguns, são inquestionáveis.

Por outro lado, a realidade demonstra um crescente “empoderamento” do Poder Judiciário a despeito dos outros poderes, o que precisa ser encarado como um risco à harmonia de todo o sistema. É bem verdade que por muito tempo o poder Judiciário tinha uma força reduzida frente aos outros poderes, visto que apenas aplicava a letra da lei sem realizar um juízo de valor. E, para enfrentar o óbice, a Carta Maior trouxe a esse poder uma gama maior de funções prerrogativas, permitindo uma redução do formalismo existente e possibilitando aos juízes maior e mais profunda participação nos processos judiciais.

Tanto é verdade que testemunhou-se – desde a promulgação da Constituição de 1988, até os dias de hoje – uma procura e acesso cada vez maior da população ao Judiciário no intuito de ter os seus litígios solucionados. Só que, com esse acréscimo de prerrogativas, o Poder Judiciário tem tentado se sobrepor frente aos outros poderes, gerando uma tensão em todo o sistema, despertando-se, tão logo, para o ativismo do judiciário, de forma que esse procedimento provoca o seu agigantamento.

Conforme Miranda (2014), o conceito de interpretação é de extrema importância à ideia do ativismo judicial, e assim, faz parte desta dar vida nova a um texto morto, já que todo texto possui lacunas interpretativas a serem preenchidas, não diferente seria com o texto legislativo. Sendo assim, o juiz deixa de ser considerado como “mera boca da lei”, passando a aplicar a hermenêutica sob a justificativada existência da necessidade de se lançar mão de uma complementaridade ao ordenamento jurídico, em busca de que se efetivem os direitos através das decisões de cunho político dos magistrados.

No entanto, não se pode olvidar que a omissão do Executivo e Legislativo não deve ser fundamento para que o Judiciário se estenda sob prerrogativas que não são de sua competência, já que a própria legitimidade política do Judiciário o impede de se tornar o ordinário fomentador dos objetivos fundamentais da República brasileira. (BARROSO, 2009)

Nesse sentido, a decisão do STF em relação à ADPF 54 – a qual se deu no sentido da descriminalização do aborto de fetos anencefálicos, tendo como escopo a releitura de alguns artigos do Código Penal – teve grande repercussão. Assim, de um lado têm-se os críticos defensores de que estaria o Judiciáriojá que este deve interpretar as normas adequando-as caso a caso, no entanto, sem adentrar a esfera da atividade legislativa, sob o risco de a ideia de que, ao assumir uma posição ativista, estaria este apenas efetivando a realização da justiça no caso proposto.

Em uma época tão fervorosa no que se refere aos acontecimentos políticos, imersa em uma verdadeira crise de representatividade, é fundamental que se discuta o papel da hermenêutica no ativismo judicial que se observa atualmente. Neste diapasão, corrobora-se com a importância científica do paper em questão. É salutar que os operadores do Direito discutam, no meio acadêmico, os impactos que o ativismo judicial gera dentro do ordenamento jurídico pátrio.

Interpretar a Constituição Federal é um dos principais papéis desempenhados pela hermenêutica, que se caracteriza como a ciência da interpretação. Reitera-se tal relevância, pois, quando se evoca a supremacia constitucional que vigora no país. Isto é, todo o corpo legislativo deve obediência aos princípios e direitos fundamentais contidos na Carta Magna. É crucial, por conseguinte, tratar do papel que a ciência da interpretação desempenha em um quadro de proeminência de um dos poderes.

É bastante pertinente perceber o elo entre os poderes e, consequentemente, acompanhar algumas divergências e, com isso, perceber que o povo não deve ter sobre a justiça um olhar de inacessibilidade. A justiça existe para o atendimento de necessidades jurídicas, mas, também, para a promoção de direitos individuais. Diante disso, o presente paper demonstra-se socialmente relevante considerando que apresenta uma fonte passível de ser analisada sob os olhares interessados em entender essa “nova” perspectiva da dinâmica constitucional dando margem a novas discussões e pesquisas sobre o tema.

O interesse pessoal pelo tema desenvolvido está centrado na ideia de que identificar e sopesar os argumentos que envolvem o papel interpretativo que o Judiciário tem tomado para si, incidindo no Ativismo Judicial, é interessante na medida em que pouco têm-se atendado para as consequências negativas decorrentes da ação exacerbada do Judiciário. É preciso que os poderes construam reciprocidades e não um abismo relacional.

Conforme Marconi e Lakatos (2010), este estudo caracteriza-se como bibliográfico, exploratório e documental ao desenvolver-se através de pesquisas e fundamentação teórica encontrada em artigos, monografia e livros, para elaborar uma abordagem fundamentada e crítica a respeito do tema abordado.

 

2 ATIVISMO JUDICIAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

 

A separação dos poderes, para Montesquieu, corresponde à divisão dos Poderes em três esferas, quais sejam: o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Ao primeiro corresponderia o poder de fazer as leis; ao segundo a prerrogativa de julgar as demandas e conflitos entre particulares, e ao terceiro, a aplicação das leis e resoluções geradas pelo segundo, bem como resolução das “ações prontas”, devendo “sempre se ater ao que está disposto na lei”. (MONTESQUIEU, 2000, p.172).

Aliada à função específica, cada poder pode realizar as funções típicas dos outros poderes dentro de sua administração, a isso se chama função atípica. Mas o que mantém esse sistema útil até os dias de hoje é o sistema de Freios e Contrapesos. Por meio dele, cada poder, apesar da autonomia para realizar suas funções típicas e atípicas, é controlado pelos outros poderes. Com isso mantém-se o equilíbrio, já que se evita o exagero na atuação de umpoder, pois os outros irão freá-lo, dessa forma os poderes terminam por trabalhar em harmonia. (PERRET, 2013)

No entanto, a realidade demonstra um crescente “empoderamento” do Poder Judiciário a despeito dos outros poderes, o que precisa ser encarado como um risco à harmonia de todo o sistema e o início do que se pode nomear crise da democracia representativa, já que “a lei, considerada em sua concepção liberal, tinha como característica primária ser a tradução da vontade geral, haja vista ser corporificada pela representação parlamentar” (PINTO; ZANATA, p. 8, 2014).

Nos últimos anos, constata-se que o poder Judiciário vem apreciando matérias que antes pertenciam apenas aos poderes Legislativo e Executivo, matérias que em sua essência dizem respeito à efetivação dos direitos fundamentais. A partir do momento que aceita apreciar matérias que dizem respeito a direitos sociais fundamentais, ele está invadindo a esfera dos poderes realmente políticos, desequilibrando a harmonia dos poderes, e essa invasão está ocorrendo sem que ele tenha legitimidade para isto, visto que não foram eleitos pelo povo, ou seja, não possuem representatividade política.

Ao analisar esse cenário político, desperta-se, tão logo, para o ativismo judicial, o que por diversos doutrinadores é designado como “império da toga”. Falando de forma mais específica, Streck (2011) aduz que “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados)” (2011, p. 621)

Sendo assim, destacam-se duas espécies de ativismo, o primeiro nomeado de ativismo inovador, o qual caracteriza-se pela criação de uma norma nova e original pelo juiz. O segundo, chamado de ativismo revelador, pauta-se também na ideia da criação de nova norma original, porém, neste caso, tal criação se dá a partir de princípios constitucionais ou a partir de uma lacuna na norma, neste caso, o juiz está complementando o entendimento da norma (ALMEIDA, 2011, p. [?]).

Há de se analisar se a atual forma de atuação do Poder Judiciário é percebida como uma crise da separação dos poderes ou esse Ativismo Judicial é, na verdade, uma outra responsabilidade do Poder Judiciário e com isso não se estaria diante de uma crise, mas de um aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito (BARBOSA, s/data).

O ativismo demonstra uma postura ensimesmada do poder Judiciário, que tem constituído um obstáculo à participação dos demais poderes. A grande crítica ao ativismo jurisdicional está pautada no déficit democrático que este instaura, já que juízes e tribunais não tem legitimidade para a tomada de decisões. Nesse sentido:

 

É importante destacar que o ativismo deve ser compreendido dentro do cenário histórico do Brasil, pois a tradição autoritária de nosso país encontrou um álibi no ativismo judicial, na medida em que os magistrados decidem com base em seus critérios morais, mas que justificam suas decisões através de uma “aparente” obediência ao direito. Ou seja, temos uma tomada de decisão, que por forma, é investida de juridicidade, o que na verdade apenas serve para a legitimar qualquer tipo de decisão. (TAVARES, 2016, p. 22)

 

De certa forma, acaba-se por atingir o art. 2º da Constituição Federal, o qual expõe que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, ou seja é uma afronta à própria constituição ocasionado pela “intromissão do poder judiciário nos demais poderes da república, ferindo de morte o princípio da separação e harmonia entre os poderes, bem como o estado democrático de direito e a democracia.” (ALMEIDA, 2011, p. [?])

Sendo assim, é válido mencionar o que sustenta Luis Roberto Barroso:

 

o Judiciário tem características diversas da dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados, com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. (BARROSO, 2007, p. 46)

                                

Essa maior participação do Judiciário na concretização de políticas públicas gera uma consequência, que é o esfacelamento da clássica separação dos poderes, pois o juiz está invadindo a função típica do Poder Legislativo por meio da inovação do Direito.

 

É fato que a constituição do Brasil contém um rol de direitos fundamentais-sociais que inexistem em outros países e consequência disso, o fenômeno da judicialização se tornou algo inevitável. Contudo, é imprescindível salientar que o ativismo é uma forma antidemocrática de substituição dos juízos morais, políticos e econômicos – que devem ser feitos pelo Poderes Executivo e Legislativo-pelos do Judiciário. (TAVARES, 2016, p. 23)

 

E isso tudo gera tensões visto que lhe falta representatividade política para tanto. Assim, essa invasão do Judiciário deixa transparecer a crise de representatividade que o país enfrenta, de modo que, assevere-se, não cabe ao juiz decidir pela substituição do que se denomina produção democrática do direito.

 

3 O PAPEL DA HERMENÊUTICA NO ATIVISMO JUDICIAL

 

Quando se fala de hermenêutica, necessariamente se remete à Constituição Federal como mandamento máximo de otimização do ordenamento jurídico, isto é, como o único dispositivo a exercer supremacia frente à uma quantidade exacerbada de produção normativa. Logo, a hermenêutica, ao se configurar como ciência da interpretação, não alcança sentido e concretude sem o seu principal objeto de estudo, a Carta Magna de 1988, a despeito da interpretação das mais variadas normas ser perpassada pelo o que a Constituição explicita na fixação de garantias fundamentais e organização dos Estados e dos Poderes.

No entanto, a acepção da hermenêutica como sendo a mera ciência da interpretação não logra êxito completo, não sendo suficiente para o que o referido ramo de estudo do Direito se propõe a realizar na contemporaneidade. Neste diapasão, Fernandes (2016, p. 158) corrobora que a hermenêutica conseguiu se desenvolver até uma perspectiva mais ampla e complexa, “qual seja a de uma ou um conjunto de teorias voltadas para a interpretação de algo, não apenas de um texto escrito, mas de tudo o qual se possa atribuir sentido e significado, um filme, uma música, uma pintura, até mesmo uma conversa entre amigos”.

Em relação ao ativismo judicial, a hermenêutica é deveras relevante, pois o seu uso, além de buscar ultrapassar uma obscuridade textual ou atingir um ponto de acordo objetivo sobre tal texto, é “condição/possibilidade formadora da nossa própria visão de mundo” (FERNANDES, 2016, p. 159). Logo, para que se entenda até que ponto o ativismo judicial pode ser prejudicial ao ordenamento jurídico e ao meio social, é fundamental que os indivíduos detenham senso crítico, que é desenvolvido sobremaneira com o estudo da hermenêutica e dos seus mais variados artifícios. Estes são utilizados como formas de ir além do óbvio ou do que o senso comum está inclinado a entender.

Streck (2003, p. 258) aduz:

 

“(Re)utilizando as palavras de Eros Roberto Grau na apresentação do meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise – Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito, muito se escreveu e ainda se escreve a propósito da crise do Direito, apresentada agora, definidamente – e sobretudo entre nós, brasileiros – sob feição particular, vale dizer, como crise do Poder Judiciário”.

 

A crise do Direito nos tempos atuais muito se observa no âmbito do Poder Judiciário, e isto se perpetuou cada vez mais com o ideal vigente, que é relacionado aos magistrados como figuras inalcançáveis e superiores aos cidadãos e com a sensação de impunidade e insegurança jurídica perpetrada em toda a sociedade brasileira. O que se observa por parte da população é o constante temor de seus direitos individuais e coletivos serem violados. Paradoxalmente, mesmo havendo um quadro geral de descrença no Poder Judiciário como solucionador de injustiças pelo fato da população argumentar a sua inércia, em muitos casos aquele se mostra ativista. Depreende-se que a atuação extremista para os dois lados diametralmente opostos não é a conduta aconselhável.

Não obstante, a Hermenêutica auxilia no combate a qualquer extremismo, seja atinente à uma atuação exagerada e indesejada do Poder Judiciário, seja em sua inércia, pois o que busca em todo o exercício da jurisdição é atingir o princípio da proporcionalidade. Tal princípio é maculado quando se admite o desrespeito à separação harmônica dos Poderes. Frisa-se que a realização de condutas atípicas pelos Poderes é cabível em casos específicos, notadamente descritos na Carta Magna de 1988, porém o ativismo judicial é uma afronta até mesmo a tais condutas atípicas, pois foge totalmente do controle almejado.

Seguindo a tese procedimentalista, capitaneada por autores como Habermas, Garepon e Ely, faz-se uma crítica à invasão da política e da sociedade pelo Direito (STRECK, 2003). Nesta tônica, frisa-se:

 

“Assim, no Estado Democrático de Direito, muito embora Habermas reconheça a importância da tarefa política da legislação, como crivo de universalidade enquanto aceitabilidade generalizada por que têm que passar as normas a serem genérica e abstratamente adotadas, vê no Judiciário o centro do sistema jurídico, mediante a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação através da a qual releva ao máximo o postulado de Ronald Dworkin da exigência de imparcialidade não só do executivo, mas, sobretudo, do juiz na aplicação e definição cotidiana do Direito” (STRECK, 2003, p. 263).

 

Logo, autores consolidados da Hermenêutica visualizam no ativismo judicial um ultraje à imparcialidade que se requer dos juízes como operadores do direito dotados de imensa influência social. Desta maneira, tal ativismo, segundo a premissa de uma Hermenêutica segundo a lei, ultrapassa o ideal de interpretação extensiva em casos de obscuridade.

 

4 A (IN)EXISTÊNCIA DE ATIVISMO JUDICIAL NA ADPF 54

 

Na ADPF 54, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde pretendia obter interpretação no sentido do enquadramento penal do aborto de fetos anencefálicos, distribuiu-se o feito ao Ministro Marco Aurélio, o qual defendeu a posição e deferiu o pedido liminar da autora. Levado ao plenário, defendeu o Ministro: “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível”, no mesmo sentido, aduz que “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”.

É necessário que se atribua um posicionamento acerca da atuação da Suprema Corte quando da análise da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 54, referente ao aborto de fetos anencefálicos em território pátrio e a sua legalização. Tal ADPF teve relatoria do Ministro Marco Aurélio, o qual manifestou voto no seguinte teor: “Julgo procedente o pedido formulado na inicial, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro”.

No mesmo sentido, se posicionaram os Ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Carmen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Em contrapartida, encontravam-se os Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso.

Por fim, decidiu-se pela criação de uma terceira hipótese de impunidade do aborto a ser aplicada mesmo fora do Código Penal, denominada de aborto eugênico, já que o art. 128 prevê apenas as hipóteses de aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vítima) ou aborto sentimental (quando esta decorre de estupro).

No entanto, reza o art. 103 da CF, em seu parágrafo 2°:

Art. 103. (...)

§ 2º declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

 

Desta forma, percebe-se que nem a hipótese de uma omissão legistativa torna a Suprema Corte detentora da prerrogativa de legislar de forma positiva, cabendo a esta, somente, comunicar que tal omissão configuraria uma inconstitucionalidade, e não incorporar o próprio Congresso para produzir a norma.

O sentido que se dá acerca de tal atuação é atinente a sua configuração ativista, isto é, que culmina em uma quebra do ideal harmônico que o Estado deseja conferir aos Poderes em seu funcionamento. Tal quebra prejudica de forma elevada o Direito enquanto Ciência, o que acaba por gerar efeitos no estudo da Hermenêutica, que prega pelo caráter ponderado dos operadores do Direito. Assim, Streck (2003, p. 264) argumenta: “No mesmo diapasão, Antoine Garapon faz duras críticas à invasão da sociedade pelo judiciário, o que, segundo ele, serviria para o enfraquecimento da democracia representativa”.

Costa (2007) aduz que “a primeira coisa a se ter em mente é que uma decisão somente pode ser juridicamente válida quando ela é fundada no ordenamento jurídico positivo.” (2007, p. 34), assim, ainda que não haja uma solução clara e direta para determinados casos, é imprescindível que os juízes venham a decidir os processos tendo como escopo o próprio ordenamento, e não preferências próprias.

Como diante de qualquer tema que se colocasse em pauta, é comum lidar com uma infinidade de opiniões e, estando em uma democracia, cabe a cada um decidir a sua e expô-la, no entanto, no que concerne ao juiz, não cabe a este julgar conforme a própria opinião, mas conforme o direito (COSTA, 2007).

Cabe aqui questionar se sob a justificativa de uma interpretação do ordenamento ou do atendimento de anseios sociais, é aceitável que o judiciário imponha uma nova hipótese de exclusão de punibilidade mesmo sem ter prerrogativa para tal feito.

Se a própria Constituição de 1988, em seu art 2°, sustenta a existência de independência e harmonia dos poderes, chega a ser controverso que o judiciário venha a se revestir da função do legislativo para se apossar da função inerente à produção de normas.

De fato, conforme Costa (2007), não se deve lançar mão de uma visão mistificada do legislador e, além disso, cabe ao judiciário buscar o sentido nas palavras daquele, tendo que ir além da superficialidade da norma, no entanto,

 

essa análise não pode ser uma desculpa para encobrir um decisionismo judicial e, portanto, ela precisa ser feita de acordo com critérios objetivos. Isso ocorre porque, em uma democracia representativa, como a nossa, somente os representantes eleitos pelo povo têm legitimidade para inovar no campo legislativo, o que envolve os Poderes Legislativo e Executivo, mas não o Poder Judiciário. (COSTA, 2007, p. 37)

 

Conforme argumenta Sganzerla, quando se refere aos debates durante a ADPF 54, como argumento dos que eram contrários ao aborto de fetos anencefálicos, frisa-se:

 

“Surgiu em diversos momentos à fala de que a competência para tomar esta decisão não era do Supremo Tribunal, sendo este papel do Poder Legislativo através do Congresso Nacional. Seria uma postura inadmissível o Poder Judiciário ditar o ritmo de um país e sair de sua esfera judicial e interpretativa de lei. Qualquer uma dessas atitudes seria uma forma de ativismo judicial, quebra da separação de poderes e afronta ao Estado Democrático de Direito”.

 

Como se observa do trecho transcrito da obra, não se manifesta nenhum juízo de valor acerca da defesa ou não da matéria em si, pois isto não é mérito do presente artigo. Todavia, um dos argumentos que devem ser levados para o centro da discussão sobre ativismo judicial e que foram levantados pela parte contrária à legalização de abortos de fetos anencefálicos é a competência para apreciação da matéria. Tal competência, pois, não é do Judiciário, devendo ser submetida ao Congresso Nacional, pela sua função típica de elaboração de leis e pelo fato da representatividade na Câmara dos Deputados e Senado Federal ser maior, tendo em vista que o modelo que vigora normalmente é o de eleições diretas.  Não obstante, o fato da pauta envolver um bloco de direitos fundamentais – sendo assunto de grandes repercussões - majora ainda mais a sensação de atuação precipitada do Judiciário.

 

5 CONCLUSÃO

 

Por meio do presente paper é inviável esgotar o leque de informações a despeito do ativismo judicial, independência dos três poderes e, consequentemente, da aplicação da hermenêutica nesses casos. Entretanto, isso nunca foi uma expectativa criada. A grande preocupação consistiu em elaborar um artigo que pudesse demonstrar aos seus leitores a incongruência que afeta a dinâmica tripartite. Aquilo que deveria ser harmônico e coerente tem se tornado uma disputa por meio da qual decide-se qual poder tem mais “voz”, contexto que põe em xeque a ordem democrática de um Estado Democrático de Direito.

No entanto, para que se obtenha o mínimo de discernimento acerca da situação que assola o ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se indispensável lançar mão do estudo da hermenêutica e de seus diversos artifícios, de modo que, como ciência da interpretação, esta possibilitaria entender o caminho interpretativo pelo qual perpassam as decisões judiciais atuais, nas quais se percebe cada vez menos embasamento no próprio ordenamento e cada vez mais nas preferências próprias de quem julga.

É através da própria hermenêutica que se torna factível observar que no julgamento da ADPF 54 a mais alta Corte de Justiça do país, ao decidir, se distanciou dos ditames da Constituição, de modo que indiscutivelmente revestiu-se daquela postura denominada de ativismo judicial, atribuindo a si própria a prerrogativa de exercer funções legislativas.

 

REFERÊNCIAS                                                                           

 

COSTA, Alexandre. Razão e Função Judicial na Hermenêutica Jurídica. Disponível em: < http://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/2910/2514>. Acesso em: 22 de Agosto de 2016.

 

BRASIL. Constituição Federal (1988). In: Vade Mecum Saraiva. 23. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, 12 de abril de 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf>. Acesso em: <02 de outubro de 2017.

 

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 8. Ed. ver. Ampl. E atual. – Salvador: JusPODIVM, 2016.

 

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 172. Disponível em: . Acesso em: 19 de março de 2016

 

STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. Disponível em: . Acesso em: 02 de outubro de 2017.

 

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Disponível em: . Acesso em: 22 de Agosto de 2016.

 

PERRET, Marcelo Lopes. Montesquieu e a Divisão de Poderes (Sistema de Freios e Contrapesos), 2013. Disponível em: .Acesso em: 19 de março de 2016.

 

TAVARES, Ranna Paula Miranda. O Ativismo Judicial a partir de uma crítica hermenêutica do direito: uma constante ameaça à democracia e à autonomia do direito. Disponível em: . Acesso em: 03 de setembro de 2017.

 

SGANZERLA, Rogerio. Ativismo ou Separação de Poderes? Até onde o aborto pode ponderar? Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=7164e1051f613361>. Acesso em: <01 de outubro de 2017>.

 

PINTO, Taís. ZANATA, Mariana. Ativismo Judicial: Uma análise crítica da judicialização da política como instrumento democrático de concretização dos direitos fundamentais. Disponível em: . Acesso em: 22 de Agosto de 2016.

 

ALMEIDA, Vicente Paulo de. Ativismo judicial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2930, 10 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 de Agosto de 2016.

 

 

[1] Check Final do Paper Institucional apresentado à disciplina Hermenêutica, Lógica e Interpretação Jurídica da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco– UNDB.

[2] Alunos do quinto período do Curso de Direito da UNDB.

[3] Professor, orientador.