Juliana Fernanda Mafra Soares

O caso em questão trata de uma desistência de Ação de Adoção antes de proferida sentença pelo juiz confirmando a adoção da criança Suzy de 6 anos de idade. O desejo pela adoção foi manifestado pelo casal Barbie e Ken, ambos professores que trabalham tanto no turno matutino quanto no vespertino possuindo horário vago para convivência com a filha somente durante à noite e aos finais de semana. Mesmo com o pouco tempo livre pleitearam na justiça por uma liminar para possibilitar desde logo o convívio com Suzy em sua casa.

Ocorre que Suzy já estava abrigada a 4 anos na instituição e ao ser deferida a liminar somente manteve contato com os pais durante a noite, fato que foi constatado nas 3 visitas da equipe multidisciplinar. Passados 1 ano e 4 meses o casal decide devolver Suzy alegando mal comportamento, rebeldia e ausência de desenvolvimento de laços afetivos entre eles.   

2 QUESTÕES PARA ANÁLISE

2.1 Questão Principal

Quais as medidas (processuais, extraprocessuais e/ ou administrativas) deve adotar o Ministério Público sobre a devolução realizada, e sob quais fundamentos? 

  • O Ministério Público pode propor medidas contra o casal adotante para responsabilizá-los

 

A lei de Adoção n° 12.010 em seu artigo 199, alínea e reserva ao Ministério Público o poder de requerer a instauração de procedimentos para apurar de responsabilidades se constatar o descumprimento das providências nos artigos anteriores, sendo, portanto o órgão competente para tutelar os direitos da criança adotada.

Nesse mesmo sentido o artigo 210 do Eca dispõe no inciso V que uma das competências do MP é “promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência”. Desse modo para tutelar os direitos lesionados de Suzy o MP deverá propor uma (ACP) Ação Civil Pública contra os pais.

A proposição de ACP se justifica pelo fato de que houve uma lesão aos interesses individuais de uma criança (no caso Suzy) por ter sido devolvida foi exposta a situação de rejeição já com idade suficiente para compreender toda a situação. Não restam dúvidas de que Suzy danos psicológicos devido à rejeição da adoção em si que era para a criança um projeto de vida frustrado pela devolução.

 O ECA dispõe em seu artigo 33 que “A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”. Pode-se entender com isso que foi gerado uma expectativa de direitos dessa criança pois com a guarda os pais adotantes ficaram responsáveis por prestar as assistências acima mencionadas e sem fundamentos relevantes para a devolução frustraram a expectativa de Suzi que já estava inclusive adaptada a um determinado padrão de vida mais elevado que o seu antigo. Por esse motivo na Ação Civil Pública o MP poderá pleitear indenização por danos morais em favor da criança em razão do dano psicológico sofrido bem como a prestação de obrigação alimentar até que complete determinada idade onde possa obter seu próprio sustento e também acompanhamento psicológico.

 

  • O Ministério Público não propõe medidas para responsabilização do casal adotante

 

 Partindo do fato de que a adoção ainda não tinha sido realmente concretizada, tendo em vista que a sentença final ainda estava pendente, não estando, portanto adoção concretizada, o que abre margem para o entendimento de que há possibilidade para a desistência da adoção analisados os aspectos formais.

Confirmando o entendimento acima exposto, no julgamento de uma Apelação Civil pública o Tribunal de Minas Gerais entendeu o seguinte:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INDENIZAÇÃO - DANO MATERIAL E MORAL - ADOÇÃO - DESISTÊNCIA PELOS PAIS ADOTIVOS - PRESTAÇÃO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR - INEXISTÊNCIA - DANO MORAL NÃO CONFIGURADO - RECURSO NÃO PROVIDO. - Inexiste vedação legal para que os futuros pais desistam da adoção quando estiverem com a guarda da criança. - O ato de adoção somente se realiza e produz efeitos a partir da sentença judicial, conforme previsão dos arts. 47 e 199-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes da sentença, não há lei que imponha obrigação alimentar aos apelados, que não concluíram o processo de adoção da criança. - A própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência. - Inexistindo prejuízo à integridade psicológica do indivíduo, que interfira intensamente no seu comportamento psicológico causando aflição e desequilíbrio em seu bem estar, indefere-se o pedido de indenização por danos morais. Grifo nosso. (TJ-MG - AC: 10481120002896002 MG, Relator: Hilda Teixeira da Costa, data de Julgamento: 12/08/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/08/2014)

Dito isto fica claro que por não haver ainda sentença efetivando a adoção não há que se falar também nos efeitos dela decorrentes, como determina o ECA em seu artigo 47: “O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.” Grifo nosso. Além disso, de acordo com o julgado acima o estágio de convivência previsto no Estatuto já pressupõe a possibilidade de que haja desistência da adoção enquanto não for prolatada a sentença. 

2.2 Questões Secundárias

 a) Foi respeitado o devido processo legal previsto no ECA e a Lei de Adoção, para a apreciação do pedido liminar, audiência de instrução e conclusão dos autos para sentença?

O devido processo legal não foi respeitado no procedimento de adoção do caso em questão se analisarmos o que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente mais precisamente no que dispõe o artigo 168 que prevê a necessidade de apresentação de relatório social ou laudo pericial e ainda que a criança seja ouvida (se for possível) e principalmente a necessidade de abrir vista dos autos ao Ministério Público . A lesão ocorreu no momento em que o laudo da equipe multidisciplinar não foi apresentado ao Ministério Público que é o legitimado para tutelar os interesses e direitos da criança.

Além disso, pode-se considerar que o relatório da equipe multidisciplinar foi negligente tendo em vista que eles souberam desde o início que os pais não teriam tanta convivência diária com a criança durante a semana o que por si só já interfere na construção e fortalecimento de laços afetivos, fato que posteriormente foi constatado.

Outro fator desrespeitado foi não terem oportunizado que a criança se manifestasse sobre a adoção, lesionando consequentemente o disposto no “Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei [...] §1o  Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada.

b) O estudo social realizado da forma descrita obedeceu às previsões e preocupações da Doutrina da Proteção Integral?

Inicialmente faz-se necessário explanar o conceito de Doutrina da Proteção Integral. Ela consiste em que “a família, o Estado e a sociedade devem agir em favor da criança e adolescente de forma a lhes garantir o efetivo exercício de todos os direitos fundamentais, tão necessários a sua formação, independentemente da cor, do sexo, da situação financeira ou da situação física ou mental” (MACIEL, 2010, p.267)

O estudo social realizado neste caso não foi satisfatório para  efetivar a Doutrina da Proteção Integral, pois a equipe técnica fez a primeira visita apenas 4 meses após a liminar ser deferida e somente fizeram averiguações por três vezes, quantidade nitidamente insuficiente para constatar qualquer irregularidade e até mesmo a dificuldade de adaptação da criança e a inexistência ou fraco sentimento familiar ou de laços afetivos.

c) Deve ser permitida a desistência da ação de adoção, pelas alegações apresentadas e depois do transcurso de mais de um ano de guarda provisória?

A desistência da ação de adoção antes da sentença é permitida, conforme posicionamento de alguns Tribunais do país dentre eles o de Minas gerais que afirma “A própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência.” (TJ-MG - AC: 10481120002896002 MG, Relator: Hilda Teixeira da Costa, data de Julgamento: 12/08/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/08/2014).

Depois de passados 1 ano da guarda provisória mesmo sem a existência de sentença concretizando a adoção entende-se que esse lapso temporal foi suficiente para gerar em Suzy uma expectativa de planejamento de vida junto daquela família e a adaptação com o novo padrão de vida, às novas amizades, à escola e todo o ambiente em que passou a viver. Dito isto, frente a essa situação a desistência da Ação de Adoção não deve ser permitida.

d) A devolução de criança em processo de adoção pode dar ensejo a reparação civil? Em que circunstâncias? A situação narrada ensejaria Responsabilidade civil do casal adotante?

O instituto da reparação civil encontra resguardo no artigo 927 do Código Civil, garantindo que todos aqueles que causarem danos devido à prática de atos ilícitos a outrem ficarão obrigados a repará-los.   

No caso em questão pode-se considerar que o ato ilícito decorreu do fato de que “os requeridos buscaram voluntariamente o processo de adoção do menor, deixando expressamente a vontade de adotá-lo, [...] resolveram devolver imotivadamente a criança, de forma imprudente, rompendo de forma brusca o vínculo familiar que expuseram o menor, o que implica no abandono de um ser humano” (TJ-MG, Relator: Hilda Teixeira da Costa, data de Julgamento: 12/08/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL). Ou seja, a conduta dos pais não consiste em uma simples devolução, mas sim em um abandono de uma criança e é exatamente nisso que se configura o ato ilícito requisito para a reparação civil.

Os Tribunais vêm considerando que nos processos de adoção em que a criança é devolvida, os adotantes deverão sim ser submetidos a reparação civil. Vejamos:

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