Pietro Scola - 2020

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Abuso sexual e a dialética do sujeito objeto

 

O abuso sexual é um ato que existe na humanidade desde tempos primórdios da civilização. Com o passar das eras, tal ato foi mudando de significante conforme as forças sociais e circunstanciais também mudavam: castigo de guerra, correção da sexualidade, reiteração da predominância do desejo masculino em detrimento de qualquer outro.

O objetivo desse texto é aventar alguns dos funcionamentos que estão inclusos nas dinâmicas de abusos sexuais, para isso o instrumento de análise será a psicanálise, revisão bibliográfica como suporte e recortes clínicos como referência.

Com relação as crianças, é necessário salientar que nos primeiros anos de vida o desenvolvimento infantil é a mais importante instância para que a criança venha a ter uma vida psíquica saudável. De acordo com Winnicott (1999), a família tem o papel fundamental para promover e atender às necessidades básicas da criança, oferecendo um ambiente saudável que proporcione o pleno desenvolvimento e suas potencialidades, fazendo com que ocorra um processo interno de crescimento e transmitindo para a mesma confiança e segurança. Neste momento, a criança se encontra frágil e a estrutura psicológica está em desenvolvimento. Devido ao estado de crescimento e desenvolvimento, a criança ao passar pelo trauma do abuso sexual pode ser acometida pelo sentimento de desamparo, bem como desacreditar que o adulto que deveria exercer o papel de proteger e cuidar não o faz, como consequência ocorre a ruptura da função protetiva e de identificação, originando trauma ainda mais profundo pelo fato da criança ainda não ter a estrutura psíquica formada e não saber reagir da forma adequada à situação. (Brandão & Ramos, 2010)

 

O trauma segundo Laplanche e Pontalis (2001) é:

Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 522).

Segundo Freud (1920) a situação traumática provém do excesso de excitação que a experiência externa provoca no psiquismo, possibilitando a não representação mental do evento, com o excesso dessa energia associado à incapacidade de liberação do acontecimento instala-se o do trauma, levando o sujeito o a ativar os mecanismos de defesa que por sua vez impedem que exista uma reorganização saudável na instância psíquica.

Pelos motivos citados acima, Butler (2017) destaca que é necessário sempre haver uma grande cautela quando se fala em sexualidade infantil ou do pré-adolescente, pois por ventura esse tipo de afirmação poderia engendrar uma insinuação de que o sujeito sofredor do abuso sexual teve uma participação indireta no ocorrido. Ela enfatiza que não podemos negar a existência de uma sexualidade nas crianças e pré-adolescentes, mas que devemos ter pleno conhecimento de que essa sexualidade se encontra desorganizada em um corpo e psiquismo impulsivos, sendo dever de um adulto compreender que um pedido sexualizado de um sujeito em idades de formação é paradoxalmente um pedido sempre desconsentido.

Adiante, em "Estudos sobre Histeria" (1990), Freud assinala que se pode comparar as experiências eróticas a momentos traumáticos, porém estabelece uma distinção entre a vivência e a representação. Ressalta, nessa ocasião, que, "embora as representações de cunho sexual não possuam efeitos na vida infantil, as vivências posteriores terão poder traumático quando ligadas às lembranças da infância". Dito de outro modo, no momento da violação que acomete o sujeito, como explanado anteriormente, a libido se encontra em um campo impulsivo, a-significada. O sujeito normalmente não tem sequer a capacidade de nomear o que ocorreu, relatando a experiencia com discursos descritivos, desafetados. Na maioria dos casos o que melhor ilustra essa violência que escapa do acervo linguístico de quem a sofre, é o silêncio, não existem palavras que preencham esse fato, o Real toma conta e o vazio é a melhor explicação. O movimento aqui decorre da transformação do sujeito em puro objeto do desejo do outro. Posteriormente, quando o indivíduo possui um eixo simbólico mais elaborado e consegue fazer uma amarração desse evento e subjetiva-lo, é que finalmente se da conta de que foi objeto do desejo do outro e se assume o abuso.

O trauma ocorrido na infância traz para o adulto graves sequelas, prejudicando a vida psíquica levando a perturbações devido ao ocorrido em seu passado, mortificando assim a relação que tem consigo e com o mundo. Muitas vezes as vítimas não sabem nem ao menos qual seria o motivo desses sintomas e acabam aceitando-os como parte de si, por falta do conhecimento que tais questões podem sim ser compreendidas e solucionadas.

De acordo com Gabel (1997), após a ocorrência de abuso sexual existem diversas queixas somáticas sobre as alterações físicas (persistências de sensações indesejadas, dores abdominais agudas e corporais, crises de falta de ar, enxaquecas e desmaios). Portanto, o abuso sexual pode reverberar no corpo.

Sob outra perspectiva, a angustia e a culpa são os afetos mais predominantes no sujeito abusado. A angústia guardaria relação com esta presença enigmática do desejo do Outro, que irá questionar o sujeito em seu próprio ser de objeto. Afinal, quando o sujeito se torna o objeto do desejo do outro, há um perigo constante de ser "devorado", de se tornar apenas o instrumento do gozo. (Lacan,2005) Como saída, ao sujeito só lhe resta oferecer um pedaço de si na tentativa de apaziguar o Outro, sempre correndo o risco de perder-se por inteiro. Por conseguinte, o sentimento de culpa ocorre quando o sujeito pensa que deveria ter feito algo que não fez do modo que para si seria o mais correto, causando sensação de que poderia ter evitado e/ou por ter tido prazer, levando-o a ter impulsos incontroláveis, punindo-se e/ou passando pela repetição do ato com o sentimento de que é merecedor de tal sofrimento, responsabilizando-se pelo ato ocorrido.

Um efeito de ser visto como objeto do desejo do outro pode ser constatado por um recorte clínico, no qual um paciente de aproximadamente 40 anos apresenta uma compulsão em se prostituir. Após um período de análise, foi constatado de que o paciente, quando criança, era forçado a ter relações sexuais com uma cuidadora, e que nesses momentos ela repetia em alta voz: “é para isso que você serve”. A internalização do desejo do outro como um falso desejo próprio levou o sujeito a repetir esse ato, se colocando como objeto de desejo do outro através da prostituição, além de servir como uma função de castigo, deixando-o exposto a diversas violências e insalubridades que muitas vezes fazem parte dessa profissão. Outro fator importante e que muitas vezes emerge em sujeitos abusados, não é apenas a perda da capacidade de amar o outro, mas o individuo perde fundamentalmente a capacidade de amar a si mesmo, isso se reflete nos hábitos que este paciente tinha de cortar laços amorosos com pessoas logo que eles começavam a se consolidar. Pois não era para isso que ele “servia” ...

A psicoterapia de base psicanalítica tem como objetivo as alterações estruturais e a integração dos conflitos inconscientes recalcados ou dissociados no ego consciente. (Kernberg, 2006). Por se tratar de eventos que trazem múltiplas ambivalências, a análise atua como um espaço onde o indivíduo tem a possibilidade de nomear e (re)significar os eventos vividos. Conclui-se que, além da cena de abuso sexual, há uma história de vida em um contexto familiar específico, denotando marcas psíquicas que antecedem a vivência do abuso. Os abusos podem ser compreendidos como uma falha na função parental e da estrutura social, que não protegeu a criança dos excessos, seja das tensões internas, seja das situações externas, como no caso da violência sexual. Desse modo, o atendimento clínico psicanalítico, por via do processo transferencial, possibilita ao sujeito uma retomada do seu desenvolvimento emocional sem a necessidade das defesas patológicas.

Com amparo no estudo de caso relatado, entende-se que a Psicanálise contribui para o entendimento dos processos mentais relativos ao funcionamento psíquico, sobretudo no aprofundamento do conhecimento sobre a singularidade dos destinos psíquicos dados a vivência traumática, bem como pela valorização e aposta na elaboração psíquica do trauma. (Teixeira & Silva, 2017. p.102)

 

 

Referências bibliográficas

Silva, Roberta Araujo, & Teixeira, Leônia Cavalcante. (2017). Adolescência e o traumático: sobre abuso sexual e as vicissitudes do sujeito. Revista Subjetividades, 17(3), 92-103.

Freud, S. (1990). Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago.

Gabel, M. (1997). Crianças Vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus.

Kernberg, O. (2006) Agressividade, narcisismo e auto-destrutividade na relação psicoterapêutica. Lisboa: Climepsi.

Brandão, P. M. C. J.; Ramos, P.L. (2010) Abuso sexual: do que se trata? Contribuições da Psicanálise à escuta do sujeito. Revista Psicologia clínica, nº22.

Laplanche, J.; Pontalis, J. L. (2001) Vocabulário da Psicanálise. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes.

Butler, J. (2017). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.

Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Winnicott, D. W. (1999). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.