por Werner Leber

Quero antes de tudo lembrar que construir uma população com os devidos preparos políticos para iluminar responsavelmente uma civilização, custa caro. Exige muito mais que dinheiro, embora o dinheiro (investimento) seja um elemento indispensável e capitular. Educação exige comprometimento de todos e todas nos mais variados setores. E, conforme meu entendimento, não há outro caminho para lá chegar sem que se transforme a educação no mais íntimo e sagrado compromisso de quem governa e de quem elege os que governam. Educação não é para covardes, não é para politiqueiros, não e para intrusos, não é para aproveitadores, e não é para mentes incautas. Não é pouco o que se exige aqui. Ao contrário da imensa maioria de aduladores que hoje temos, não existe educação eficiente sem sacrifício mental, espiritual e devoção intelectual.

Já vem de tempos que se ouve certas expressões no meio educacional, repetidas alhures com o mais descarado senso comum por professores, professoras, especialistas e demais pessoas ligadas à educação. Entre a mais repetidas está a que diz respeito ao ensinar-aprender e os interesses dos jovens e adolescentes em sala de aula. É comum ouvir-se “que se o estudante não quer estudar no tempo em que está, exatamente, para isso na escola, a vida conserta e exigirá dele aquilo que não aprendeu no tempo devido”.  Isso pode até vir a ser verdade, mas por trás dessa afirmativa há algo encoberto e que precisa ser melhor analisado, pois a fáceis desculpas encontradas não se sustentam diante de um argumento econômico e socialmente relevante. Por que deixar a vida “consertar” se é melhor fazer no tempo devido? Como é sabido, as gerações mais novas, essas que hoje são nossos estudantes e também aquelas que poucas anos atrás estavam aqui entre nós, são exatamente aquelas que irão zelar, organizar, gerenciar, administrar todos os bens de capital e de serviços de que a sociedade brasileira dispõe e também todos aqueles que vieram ser produzidos e agregados. Pois quem serão os futuros funcionários públicos como também os dos empreendimentos econômicos e sociais não públicos? Quem cuidará dos hospitais, da aposentadoria, das escolas, do saneamento básico, enfim, das demandas que virão como eu e todos os que tem aí entre 30 e 60 anos estão a fazer com suas contribuições? Como também fizeram os que já estão aposentados ou falecidos para a minha e a sua geração ter continuidade. Quem pensará o Brasil sob o crivo político senão esta juventude que aí está? A vida conserta, afirma-se facilmente. Boa saída, mas inócua e irresponsável. Sim, conserta, mas a que preço? Quero lembrar que a educação pública tem custos. Não existe educação “gratuita”. Educação pública não é gratuita. É errôneo o termo. Já aí cometemos graves erros porque ser público tem preço e quem paga é o erário, quer dizer todos nós, inclusive os pais dos estudantes que não querem aprender ou se esforçar para sair do modus operandis institucionalizado. Como lembra Kant, “é tão cômodo ser menor, ter tutores que nos digam o que fazer; assim sempre terei razão, porque quando as coisas saírem erradas, a culpa é dos tutores, não minha”. É esse raciocínio que encontramos no mais das vezes por trás da combalida afirmação “a vida conserta”.[1]

A pensadora judia e teutoamericana, Hannah Arendt, expulsa da Alemanha por Hitler em 1933, escreveu quando já estava nos Estados Unidos, um texto denominado a “Banalidade do Mal”, no qual ela comenta o caso de Rudolf Eichmann. Eichmann era o Chefe do Serviço Secreto alemão que mandava para os campos de concentração os indesejáveis, entre eles parentes e amigos de Hannah Arendt. No julgamento de 62, em Nüremberg, Eichmann se justificou dizendo que ele só cumpria ordens. Ora, ninguém pode ser tão insano a ponto de não questionar as ordens que recebe. Mas o mundo permite que as pessoas se escondam entre as cortinas e depois alegar que estavam cumprindo ordens. No nosso caso, é parecido. Faz tempo que essa coisa de “a vida conserta” virou uma esfarrapada desculpa de quem pratica o mal sob os auspícios de desculpas incabíveis. Nós também não podemos deixar a coisa continuar como se houvesse forças políticas indestrutíveis, irremovíveis. Pensar assim, é agir na Banalidade do Mal, tendo sempre outrem a quem acusar e a quem utilizar como muleta. Ninguém pode ser desculpado pela sua falta de capacidade de entendimento mínimo. Preguiça mental é muito diferente do que ignorar certas. A pessoa não precisa ser médico para saber que veneno mata, que crianças não podem ser deixadas sozinhas em ruas movimentadas. Os pais adoram reclamar de professores e isso e aquilo.  Mas eu nunca vi nenhum pai reclamar para o seu filho aprender mais, para seu filho deixar o celular em casa, para seu filho respeitar profundamente em lá está para ajudá-lo. Os pais se contentam quando o filho tem onde ficar e pronto. Também nunca vi nenhum sindicato propor uma greve para acabar com a hipocrisia, com as leis, decretos e outras coisas atravanqueiras; nunca vi nenhum sindicato convocar para uma greve a fim de que se possa ensinar mais e melhor. Nunca vi nenhuma reivindicação no sentido de pedir que os professores façam os alunos saber mais, saber melhor, saber em várias e diferentes direções. Nunca vi e não vou ver.

Então como se chegou a essa situação em que se mascara algo socialmente relevante e do qual dependerá a geração que em breve estará idosa? Como é possível que se tenha chegado às raias da insanidade, isto é, da mais completa falta de juízo e responsabilidade a respeito do que implica a continuidade e a segurança das próximas gerações? Ou os alienígenas estão sendo preparados em algum planeta distante e eu e alguns desavisados não estejamos sabendo? Ou a Lua e Marte já estão devidamente adaptados para receber os terráqueos, que em breve partirão daqui e eu não esteja sabendo? Creio que não. Bem, vejamos. Como falei o serviço público, seja ele, por exemplo, o serviço de correio, a polícia, o denit, o inss e muitos outros têm custos. Se fosse “gratuito” por que então as empresas públicas de saneamento cobram taxas pelos serviços que prestam? Por que então se paga contribuição para INSS ou sistema próprio de Previdência? Por que se paga tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria)? Se a sociedade paga, ela precisa também ser corresponsável pelo que pagou e não deixar que engodos fáceis nos tirem a chance de cuidar melhor daquilo que é responsabilidade nossa. E se na minha geração, na anterior também, essa consciência era pequena porque vínhamos de um Brasil com taxas de analfabetismo elevadas, deixar a “vida consertar” vai resolver o quê? Em tempos em que se brada pela responsabilidade em todos os cantos, é mister perguntar que “responsabilidade” está por trás de quem aceita a falácia rasteira de que a vida conserta e arruma aquele e aquela jovem que não quis estudar?  

O custo social e monetário dispendido para “formar” uma pessoa que não quer estudar, e uma que faz o melhor que pode para sair da escola mais preparada, é o mesmo. Vejamos. A quantidade de energia gasta, de salário dos profissionais que na educação trabalham é o mesmo, o gasto com limpeza será o mesmo. O custo da merenda e dos serviços funcionais a ela associados, também serão os mesmos. O que se faz na educação é mais ou menos o seguinte. Você tem um determinado valor para construir uma casa. Você compra os melhores materiais. Se você construir essa casa de modo negligente, sem cuidar, sem se informar devidamente, deixar as coisas ao léu, na mão de pessoas desleixadas e sem interesse, o que você gastará com terraplanagem, com tijolos, com azulejo, com materiais sanitários, com pintura e sistema elétrico e hidráulico será o mesmo.  Uma torneira de ótima qualidade mal instalada trará aborrecimentos. Um reboco mal feito trará problemas, mesmo que seja feito com o mais refinado e melhor cimento existente. Azulejo, seja da melhor qualidade que tiver, se for colocado de modo inadequado, ficará algo tão ruim que deverá ser feito novamente. Não adianta comprar as melhores telhas, se a colocação ficar mal feita, torta, fora de padrão. Vai ter goteira e aborrecimento. Não adianta comprar o melhor cimento e os melhores tijolos, se as pessoas que executarão o serviço forem profissionais descomprometidos ou mal-intencionados. Com a educação ocorre o mesmo. O poder público, os governos têm bons materiais em mãos, mas permitem que se erga as casas todas tortas, desleixadas, para no futuro “a vida consertar”, quer dizer, fazer o mesmo serviço duas vezes. É um desperdício. E o pior é que a sociedade, com o passar do tempo, assim se acostuma e já não consegue imaginar as coisas de outra forma. Falando de modo claro, perde-se a capacidade crítica em todos os sentidos possíveis. Ou como dizem outros: “não conseguem mais pensar fora da caixa”. É, cada um no seu quadrado, como diz aquela música de péssima qualidade. Mas fez e faz sucesso. Deve haver aí alguma identificação, alguma correspondência. O que vocês acham?

Que hoje não se pode mais cobrar decoreba, ensino fixados em conceitos “imutáveis”, que hoje vivemos mediados pela tecnologia, o que faz do professor e da professora um e uma mediador(a), é muito óbvio. Que o conhecimento hoje não dependa mais do professor somente e dos livros, é muito evidente. O conhecimento pode ser acessado em praticamente todo o planeta por meios da rede web (WWW). Mas daí dizer que não se pode mudar o paradigma e fazer com que as pertinências sejas cobradas para que o adolescente seja melhor testado e saia mais capacitado, é conversa mole, papo de uma sociedade que perdeu a capacidade de entender a principal função dos sistemas de ensino. Para que escola então? Para alimentar as pessoas? Transformar a escola e um posto de assistencialismo para pessoas carentes? Esse não seria o principal objetivo, embora possa e deva acontecer na escola por motivos óbvios.  Mas daí renunciar ao ensino mais incisivo com a desculpa “a vida conserta; a vida arruma”, é inadequado, hipócrita e desculpa barata. E também não vale vir com aquela máxima, também muito usada entre nós: “hoje o diploma não quer dizer mais nada”. Sim, um diploma, por si só, não corresponde ao que ele correspondia há duas ou três décadas. Mas de onde se tira daí a ideia de que cada “um se forma” e que aquele que não quiser aprender “a vida conserta”? É vergonhosamente cômodo falar em “analfabeto funcional”. Mas é um fracasso de todos e todas, sobretudo do sistema de ensino. Ninguém vem à escola para dela sair sem ter aprendido e ser mais preparado. Um analfabeto funcional, no mais das vezes, teve os mesmos 11 ou 12 anos de Educação Básica que os saíram mais bem informados e preparados.  Frequentou as mesmas faculdades e cursos que os demais. Como chegou a ficar assim, sem saber crítico mínimo para os afazeres e desafios em que está envolvido? Já pensou se, por exemplo, as fábricas de automóveis se desculpassem pelos defeitos nos veículos por causa dos robôs? Ou os médicos se desculpassem pelos possíveis erros afirmando que quando se formaram não tinha aparelhos de ultrassom com raios infra-violetas? A culpa não é isoladamente de ninguém, mas coletivamente de todos. Uma mãe ou um pai que pouco se importa com o que o filho faz na escola é um exemplo péssimo. E a falta de desestruturação familiar é resultado, em parte, de um ensino que nos últimos trinta anos utilizou verba à Suíça e entregou resultados à Zâmbia. Todavia, o pior de tudo, foi quando os governos começaram a usar as escolas como plataforma de votos. Em vez de servirem à educação como juraram fazer, dela se serviram nos mais variados sentidos. A ideia básica dessa perspectiva política revela o mais nefasto imediatismo de quem elegemos. Revela o quanto essa gente não tem compromisso com o voto recebido, o que me parece mais ou menos assim: “deixemos a educação ficar agradável e boa para não recebamos críticas e continuemos a ter eleitores”.

Educação que forme melhor custa mais em termos políticos e não elege demagogos. Escola Privada tem clientes pagadores; escola pública tem clientes cativos uma vez que a escola não “reprova mais tanto quanto anos”, o que a torna agradável e bem vista aos olhos de governantes. Esse pensamento comum foi lentamente sendo introduzido em nossas cabeças, nas cabeças de pais e mães, enfim, foi sendo lentamente orquestrada até criar uma espécie de consensão comum, do qual já ninguém duvida ou nem sequer lembra como foi institucionalizado. Partidarizar a direção escolar foi só uma consequência desse processo. Esperavam o quê? A meu ver, tem um item aí. Realizar eleições para Diretor Escolar com o esdrúxulo e quimérico discurso da Democracia e da “vontade da comunidade” é tão somente mais um pedaço da hipocrisia estendida sobre o abismo. E por quê? Simples. Porque nesse cenário ela nada resolve. Nada ou qualquer coisa é a mesma coisa, eis a questão! Como lembra Goethe, até uma folha de papel serve para quem está afundando. A educação não pode ter dono, senão ser um bem público e de responsabilidade pública de todos. Falamos em Ensino Público, mas o que temos é um Ensino Público prisioneiro de governos, de sindicatos, de gente incauta, de gente irresponsável, de gente que não quer pensar, e também de gente hipócrita a quem o modelo está a servir muito, e bem. Analfabetismo não pode ser desculpa para não se conseguir fazer dos sistemas de ensino pessoas mais bem preparadas em todos os sentidos possíveis. Um estudante só poderá ser ajudado nas escolhas se lhe for oferecido e cobrado o tanto que possa lhe levar a ter opções. Quem não pensa e se nega a estudar e ainda é amparado por desculpas desse tipo que estou a mencionar, não tem escolhas. Escolhas e opções só surgem para quem tem boa vontade. “Prepare-se para ser discípulo que o mestre aparece”, diz um provérbio chinês.

Estou a sugerir que nos contaram uma historieta e nós acreditamos. O que hoje está em nossas mãos (estudantes) não nos dá nenhuma razão para dizer que não se deve fazer no tempo hábil o que há por fazer. Que as pessoas têm ritmos de aprendizagem diferentes, nada tem a ver com desleixo, com a hipocrisia aceita de “que a vida conserta”. O conserto que a vida trás tem o custo de ter de construir a casa duas ou três vezes apenas por fata de cuidado. A vida conserta, mas até lá a pessoa já cometeu inúmeros erros que custaram caro para si e para todo o círculo de quem com ele convive.  E tem mais. Nós não podemos esperar que as escolas particulares resolvam o problema. As escolas privadas de melhor calibre, e são poucas no Brasil todo, preparam seus estudantes para objetivos específicos, que são os vestibulares mais concorridos nas Unis mais badaladas. No Brasil há vários tipos de escolas privadas. Apenas umas poucas redes têm afinco e cobrança maior que as escolas públicas. Achar que a escola privada é sempre boa, conforme o senso comum, é mito, é mentira, é falácia. Há escolas particulares que empatam com as piores públicas.

Quero voltar à construção da casa. Nas escolas públicas estão os profissionais licenciados para a educação. na educação privada há mais bacharéis que professores licenciados. E há também muitos que não tem formação alguma. Pessoas com meia faculdade fazendo gracinhas em cursos e por aí vai. É no ensino público que estão os melhores profissionais. Então o que está havendo? Uma série de profissionais trabalham nos dois modelos de gestão escolar. Não pode ser só falta de conhecimento de professoras e professores. É, como falei, uma culpa coletiva da qual só nos livraremos quando despertarmos um dia e dizer: nós somos capazes. Sem as máscaras ideológicas que só nos dividem e pouco agregam. Eu posso ser do Partido Verde, do Partido das Piabas, do Partido das Prostitutas, do Partidos dos Piedosos, do Partido das Florestas Ombrófilas, do Partido de sei lá o quê. Eu posso ter as ideologias que quiser e ser contra as que eu quiser também. Os outros podem ser contra tudo que penso, contra uma série de ideologias que tenho. Mas nenhuma ideologia pode ser maior que a ontologia: o ser de nossa educação. 

 

[1] Kant escreveu um texto em 1778 chamado: Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Cito aqui a ideia e não a passagem literal. Há muitas traduções deste texto em português e é muito conhecido por estudantes de filosofia, de direito e de ciências sociais.