A “vaca” que virou “caviar”.

                Os habitantes da cidade de Maués, um município do Estado do Amazonas, há apenas algumas décadas, tinham o hábito alimentar baseado fortemente na caça, pesca e coleta de produtos da natureza amazônica. Com uma população em torno de 15.000 habitantes – em 1950 – eram comuns, nos vastos quintais das casas, criatórios de quelônios como o jabuti, a tartaruga, o tracajá e outras espécies silvestres.

                O padre Antônio Vieira, citado por Leandro Tocantins em seu livro “Amazônia: Natureza, Homem e Tempo” afirmou: “... para ter o pão da terra, há de ter roça, para comer carne há de ter caçador”, referindo-se aos povos da Amazônia. Sublinha assim, de forma inconteste, a importância dos animais silvestres na alimentação das pessoas que moram nesta região.

                Ainda Leandro Tocantins informa que os próprios indígenas promoviam o criatório e aproveitamento da fauna amazônica, especialmente da tartaruga. Cita, por exemplo, que em 1785, entraram, para o curral da Capitania do Rio Negro, 2.896 quelônios. Se considerarmos que as tartarugas eram colhidas no período que vai de outubro a dezembro, meses em que as praias dos Rios Solimões e Amazonas ficam descobertas, chegaremos a uma quantidade média de 32 tartarugas capturadas por dia!

                Além das tartarugas, que os portugueses chamavam de “vaca cotidiana das mesas portuguesas”, outros quelônios, pacas, veados, antas, cutias, porcos-do-mato (caititus e queixadas) faziam parte da dieta não só dos habitantes de Maués, como de toda a imensa região amazônica.

                Há aproximadamente 33 anos – em 1980 – a população de Maués passou para algo ao redor de 30.000 habitantes. Foram necessários, portanto, 30 anos para que dobrasse de número. Isto corresponde a uma baixíssima taxa de crescimento populacional, o que reflete diversos fenômenos ocorridos no período, especialmente a migração de uma boa parte das pessoas para a capital, atraídas que foram pela instalação da Zona Franca de Manaus.

                Se a população humana levou três décadas para duplicar, os hábitos alimentares destas populações sofreram fortes modificações. A instalação da sociedade de consumo, simbolizada pelo surgimento de supermercados e grandes lojas de eletrodomésticos; a transformação de grandes extensões de floresta em pastagem e a intensificação da fiscalização

do então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, IBDF, hoje Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, IBAMA, sobre a coleta  de quelônios, e vários outros fatores sociais, econômicos e políticos, contribuíram para a drástica mudança. Agora, a proteína animal é adquirida nos açougues e supermercados e o peixe de primeira qualidade foi substituído por peixe de menor categoria, exatamente aquele que não interessa ao exportador. Quem iria imaginar, por exemplo, que iria encontrar nos dias atuais, nos balcões refrigerados dos supermercados paraenses a arraia?

                A tartaruga deixou de ser a “vaca” cotidiana das mesas e virou “caviar”, disputado a peso de ouro pelas classes mais abastardas. Uma tartaruga de tamanho médio, no mercado ilegal, estava cotada em torno de Cr$25.000,00, em janeiro de 1992, cerca de R$60,00 reais nos dias atuais.

                A caça para a subsistência é olhada pelas pessoas que dela não dependem, como um ato criminoso e antiecológico. Por outro lado, o incentivo para a pesquisa em manejo e criação de animais silvestres em cativeiro, que é uma das possibilidades para o suprimento de proteína animal de boa qualidade para as populações locais, é desencorajada pela dificuldade em receber apoio e cumprir com as normas legais vigentes.